Isolamento, dívida e baixa qualidade de vida nos conjuntos habitacionais do Rio

Adéle Smith – RioOnWatch

Era bom demais para ser verdade. Quando Isabella Ribeiro recebeu as chaves de um elegante apartamento de dois quartos em abril de 2015, desatou a chorar “de alegria”, disse Isabella, que morou durante toda a sua vida–56 anos–em uma favela. O governo federal fez com que ela se tornasse a feliz proprietária de um apartamento de 45m2 em um prédio de cinco andares recém-construído.

No conjunto habitacional Colônia Juliano Moreira, construído em território anteriormente pertencente a donos de escravos, as ruas eram pavimentadas, a água corria, haviam grandes latões de lixo cor de laranja do lado de fora e um sistema de esgoto. “Era lindo” lembra Isabela. Ela não poderia imaginar os acontecimentos que se seguiriam. Após um ano e meio, ela se encontra ameaçada de ser despejada por falta de pagamento. “Recebo cartas ameaçadoras, telefonemas sem fim, alguém do banco me chamou de vagabunda ao telefone!” ela diz, desanimada. Caixas com remédios para pressão estão espalhadas na pequena sala, onde se encontra uma pequena estátua de Jesus Cristo.

2,6 milhões de beneficiários de habitações populares

Da Isabella é uma das 2,6 milhões de famílias selecionadas de acordo com critérios financeiros e de saúde para se beneficiar do Minha Casa Minha Vida, programa social de habitação lançado em 2009 pelo ex-presidente Lula para, como disse na época, para “tirar as pessoas dessa m****”.  Ao escapar de [precárias] favelas onde estiveram confinadas durante gerações, estas pessoas em más condições de moradia supostamente escapariam da miséria. Grandes programas contra a pobreza, liderados por Luiz Inácio Lula da Silva, deram grandes esperanças aos cidadãos do país, onde a desigualdade impera. O programa de transferência de dinheiro Bolsa Família, notadamente, é o programa social mais reproduzido no mundo.

Embora não seja inovador nem original, o Minha Casa Minha Vida se tornou, em sete anos, o programa social de habitação mais ambicioso no Brasil desde o fim da ditadura, com 4,5 milhões de pequenas casas e apartamentos entregues ou em construção. Houve certo impacto sobre o déficit habitacional, mas o impacto sobre a pobreza é questionável. O futuro do programa é incerto. Com o fim do milagre econômico brasileiro e a imensa decepção quanto à Presidente Dilma Rousseff, as críticas engessaram as políticas sociais de esquerda, consideradas caras demais. O governo de Michel Temer pretende reformar o Minha Casa Minha Vida.

No Rio, o programa teve uma particularidade adicional nas Olimpíadas. A prefeitura do Rio usou o programa, com exagerada falta de transparência, para deslocar moradores de favelas [em muitos casos funcionais] que foram destruídas para os Jogos Olímpicos. O Prefeito Eduardo Paes prometeu habitação compensatória grátis, deixando a responsabilidade de pagar o financiamento da propriedade ao município ao invés de aos proprietários. Mas na Colônia, os moradores continuaram a receber avisos de débito dos credores e agora são chamados de “maus pagadores”.

Longas filas de espera

No entanto, o programa, melhor conhecido pelo seu acrônimo MCMV, é generoso. É subsidiado em até 95% pelo estado para quase a metade dos seus beneficiários, aqueles com renda muito baixa como Isabella (menos de R$1.800 por mês). Também é muito popular. As filas de espera são longas. Mas depende de uma parceria público-privada entre o governo federal e o setor imobiliário, facilitada pelas autoridades locais. Em outras palavras, as empresas de obras públicas escolhem terrenos com baixo valor de mercado na periferia das cidades e visam torná-los lucrativos. Isso nem sempre contribui para o bem-estar da população.

Na Colônia, hoje, há lágrimas no escritório da síndica Julia de Oliveira, que atua tanto como segurança, quanto como Madre Teresa. Os lembretes dos credores estão longe de serem os únicos problemas. Assim como em outros projetos do MCMV, a palavra “conta” produz ansiedade em todos. Apesar do seu desenvolvimento desenfreado e fora do padrão, as favelas tinham um lado bom: as pessoas não eram arruinadas financeiramente. Aqui, naturalmente, paga-se por tudo: gás, televisão, internet, e também taxas de eletricidade e condomínio.

E ao se mudar para o subúrbio, isolado e longe do centro da cidade, muitos perderam os seus empregos. Francisca Bezerra, dona de casa, nunca voltaria para a sua favela, mas precisou desistir da internet e agora está impedida de ter acesso a crédito. Um estudo recente de sociologia da Escola de Economia de Londres demonstra as crescentes dificuldades financeiras em um número maior destes projetos.

Isabella Ribeiro era costureira na favela. Ela alugou um ateliê perto da Colônia, mas acabou desistindo, incapaz de enfrentar as dificuldades financeiras que isso acarretou. A sua máquina de costura e os carretéis de linha estão acumulando poeira em um canto. Esses projetos são construídos apenas para habitação, não para fins comerciais ou de serviços. No entanto, como diz o ditado, a necessidade é a mãe da invenção; assim podemos ver, aqui e ali, placas nas janelas oferecendo pequenos serviços, tais como cabeleireiros e manicures, como na favela.

Isolada por uma via expressa, Colônia foi construída na Zona Oeste do Rio, sem acesso às linhas do metrô. É distante da Zona Norte e do Centro da cidade, onde se encontra a maior parte dos empregos. O número de ônibus tradicionais foi reduzido e os novos, embora mais rápidos, são bem menos frequentes. “Também estamos aguardando a clínica que nos foi prometida. A mais próxima se encontra a uma hora de carro”, diz Ariana, mãe de um menino de 5 anos. E, para piorar, os cortes de água e luz são frequentes. No meio da conversa, a síndica Julia de Oliveira parou a conversa para impedir a entrada de um agente da distribuidora local de água, que veio cortar o fornecimento sem aviso prévio.

“É uma luta constante”, ela explica depois de convencer o homem a deixar de fazer o seu trabalho. Os moradores se recusam a pagar as contas da água que lhes foi prometida de graça. Julia de Oliveira culpa a crise econômica pela degradação dos serviços municipais. Por outro lado, outros moradores suspeitam do desprezo do governo pelos “pobres”. O projeto de habitação vizinho Parque Carioca, apresentado como “modelo”, já se encontra em um estado medíocre. A piscina, destinada para os moradores, encontra-se abandonada.

“Infelizmente o programa MCMV reproduz esquemas de segregação e injustiça social”, diz Meg Healy, pesquisadora e colaboradora da organização não-governamental Comunidades Catalisadoras. Estaria a Colônia correndo o risco de se transformar em uma favela a longo prazo? “De jeito nenhum, as pessoas encontraram a sua dignidade aqui”, afirma Julia de Oliveira com otimismo. Sem marido ou filhos, mas com dois empregos diferentes, ela passa bem os seus dias, mas reconhece que o efeito conjunto da crise econômica e da solidão é um fator de insegurança. “É mais difícil para aqueles que não podem ou não querem trabalhar”, ela diz.

Um plano visando sustentar o setor imobiliário

A ex-relatora especial da ONU sobre o direito à moradia adequada, Raquel Rolnik, teme que o programa criará “futuros guetos de pobreza”. Autora do recente livro Guerra dos Lugares, ela considera que ele é “principalmente um sucesso para os setores de obras públicas e financeiro”.  É importante lembrar a origem deste plano, lançado no meio da campanha eleitoral, que de acordo com Raquel, foi apresentado como uma política de habitação social e tinha como objetivo maior apoiar o setor de construção e enfrentar a crise financeira global de 2008.

“De qualquer maneira não é um programa de habitação social”, ela repete, dizendo que os interesses dos especuladores imobiliários são “incompatíveis” com os dos moradores. Hoje, o setor de obras públicas está pressionando o governo para mantê-lo. “Não seria sensato reduzir ou interromper um programa de tamanha envergadura”, confirma o presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi), João Paulo. R$300 bilhões (US$92 bilhões) foram investidos desde 2009.

De tamanho modesto e menos isolada do que os outros, a Colônia é uma versão “light” destes complexos gigantes construídos no Brasil, mas é o mesmo modelo de construção encontrado praticamente em todos os lugares. Numa tarde como hoje, Patricia Fernandes encontra-se na parte de baixo do seu prédio, matando o tempo junto com seus vizinhos. Como não há bancos, sentam-se no chão. Aparentemente o arquiteto do complexo optou por um projeto minimalista.

Um toque de amarelo e rosa aqui e ali alegra o complexo. Mas Colônia poderia ter mais árvores, neste país onde tudo cresce tão facilmente. No horizonte, os morros verdes nos lembram que é a natureza, e não a arquitetura, que torna o Rio uma das cidades mais lindas do mundo. Quando o tédio no complexo é demais, os moradores acabam no sofá assistindo novelas–Patricia e sua filha amam “Meu Coração é Teu”. Não há água quente na cozinha, nem espelho no banheiro, nem lâmpada no teto, mas a tela de plasma é sagrada no Brasil.

A jovem tem um apartamento idêntico ao de Isabella Ribeiro mas a família Fernandes está amontoada. Seis pessoas neste apartamento de dois quartos: ela, seu marido, seus filhos de 11 e 18 anos de idade, e sua irmã, que divide uma cama de solteiro com seu filho de 5 anos. Patricia não é conhecedora de arquitetura, mas não entende porque todos os apartamentos são construídos com uma grande abertura na parede da cozinha sem uma janela para complementá-la. O quadro é o mesmo nos outros complexos. Quando chove, é preciso enxugar o chão. As chuvas tropicais no Brasil podem transformar a cozinha numa piscina se não houver cuidado.

Diferente dos outros moradores, ela não tem o problema de pisos que afundam ou rachaduras nas paredes. A qualidade da construção MCMV é constantemente alvo de crítica. Em 2013, um projeto de habitação recém-construído precisou ser demolido antes que os novos moradores entrassem. Ao caminharmos pela Colônia nos perguntamos: quantos anos levarão até que o lugar se torne decrépito?

Regras severas, clima pesado

Durante as conversas com os moradores, um assunto surge com frequência. Um apartamento novo e limpo ao invés de um casebre esquálido é uma ideia maravilhosa no papel. Mas, na realidade, esses novos projetos causam uma transformação profunda no sistema urbano e nos estilos de vida. A higiene e a boa iluminação são muito apreciadas, mas a austeridade e o ar pesado nem tanto.

Não há música nem churrascos ao ar livre que eram o charme da vida comunitária nas favelas. Há uma cerca alta ao redor da Colônia, e cada prédio só pode ser acessado por interfone. Somente convidados podem entrar aqui. As regras são severas, as vezes arbitrárias.

Alguns não se adaptam bem. Patricia precisou abandonar o seu cachorro, Jack. “Preferia voltar para a favela. A casa da família era maior e mais confortável. Sentíamos-nos mais livres”, ela explica. Alguns já alugaram o seu apartamento para voltar à favela ou ganhar um dinheiro extra. Outros estão pensando em vender, apesar de ser proibido por dez anos: um aspecto da habitação social que não é muito “social” em si.

A segunda parte do programa é reservada às pessoas de classe média com rendas de US$540 a US$1.900 por mês, aquelas para as quais o governo Temer pretende dar prioridade. Elas têm uma ampla escolha de localização geográfica e apartamentos de qualidade ligeiramente melhor, mas são menos afetadas pela falta de moradias e de qualquer modo estão confinadas a grandes parcelas monolíticas. Pelo menos o programa MCMV permitiu-lhes o acesso ao crédito no mercado imobiliário, realmente um progresso no Brasil, admite Raquel Rolnik.

Muitos consideram que, para um programa tão vital ao desenvolvimento urbano no Brasil, o MCMV sofre de um sério déficit democrático. Daniel Ferreira, um senhor jovial com mais de sessenta anos, sempre morou na favela. Ele levou 20 anos para construir a sua casa de 57m2 e criou seus filhos nela. O governo ofereceu-lhe um apartamento de 45m2–uma redução de 12m2. Ele recusou. “Porque somos pobres, as pessoas querem que aceitemos qualquer coisa enquanto a Prefeitura e os construtores especulam às nossas costas. Isto não é democracia”, diz Daniel.

O presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), Sérgio Magalhães, é da mesma opinião. A cidade, defende ele, deve ser construída de maneira inclusiva. No entanto, nem os planejadores urbanos nem os arquitetos, nem aqueles mais preocupados estão realmente associados ao programa, que por força é conduzido pelos empreiteiros imobiliários e pelo governo. “80% das moradias no Brasil foi construído por pessoas frequentemente muito pobres, sem qualquer ajuda. As favelas são o resultado direto disso. Oferecer-lhes o modelo MCMV é falta de respeito”, afirma Magalhães, que defende a urbanização das favelas.

Na verdade é um desastre para o futuro das cidades, ele acrescenta. “A expansão horizontal das cidades em detrimento da densidade populacional, sem a infraestrutura ou os serviços que a acompanham, é uma bomba-relógio social, urbana e ambiental”, ele conclui do seu escritório no Rio. Os governos às vezes têm memória curta.

A política de habitação social dos anos 60 no Brasil, da qual o MCMV é considerado uma cópia quase perfeita, deu origem, durante duas gerações, às comunidades segregadas de exclusão e violência como a Cidade de Deus, imortalizada no filme de Fernando Meirelles. Colônia foi construída perto dessa imensa favela. Traficantes de drogas perambulam ao redor dos novos projetos de habitação e a milícia extorque os moradores, que têm medo de falar. Em Colônia, a violência já faz parte do cotidiano.

Lucas Mezes, um carpinteiro de 20 anos de idade, nunca imaginou que o acesso à propriedade traria um custo humano tão significativo para a sua família. Ele e seus dois irmãos, Thiago, 18, e Mattheus, 21, todos se tornaram proprietários de apartamentos idênticos. Dois na Colônia, e um no Parque Carioca, a alguns quilômetros de distância.

No passado, a família Mezes morava em uma favela que era considerada bem calma, a Vila Autódromo, agora símbolo de resistência contra as Olimpíadas. “Era um pequeno paraíso”, lembra Lucas, cujo rosto foi desfigurado do olho até o queixo devido a um acidente de motocicleta. Quando a sua casa foi destruída, o seu pai, um pescador na lagoa, nunca se recuperou, conta o rapaz. A família de cinco pessoas foi separada geograficamente, todos arbitrariamente. Para os três rapazes, que são muito próximos, isso foi difícil.

No mês passado, o filho mais velho, Mattheus, foi morto na Colônia com quatro tiros nas costas após um desentendimento. Lucas agora é responsável pela sua família. Um fardo pesado para um rapaz de 20 anos de idade. “Meu sonho hoje é que a minha vida não se descontrole”. Mas Lucas manteve a alegria de viver típica dos brasileiros: está convencido que a sua família tem futuro no projeto de habitação.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

2 × 5 =