Notas de uma mulher negra no 8 de março

Consideram o verbo “malungar”, de origem africana. Ela ajuda a enxergar lacunas existentes nas lutas feministas, antirracistas e nas políticas de classe

Por Layla Maryzandra* – Outras Palavras

As narrativas que acompanham o surgimento do Dia Internacional da Mulher são consequências de múltiplos fatos históricos. Relacionam-se a lutas pelos direitos sociais e políticos de mulheres que começaram na segunda metade do século 19 e nunca se interromperam. É um dia legítimo de memória e continuidade daquelas que rasgaram as mantas instauradas pelo patriarcado, impulsionando perspectivas para um debate inicial de gênero.

No entanto, as mulheres que instigaram esse debate neste período são as mesmas que foram formadas para não refletir, em primeira instância, sobre as desigualdades raciais e de gênero, e até mesmo de classe. Teve pouco ou nenhum impacto em suas reflexões o que ocorreu às mulheres negras entre os séculos 16 e 19 nas Américas, no período de tráfico negreiro, ou o que ocorreu pós-abolição no Brasil. Isso revela o abismo que o racismo provoca mesmo em mentes que buscam emancipação de um grupo oprimido.

Transgredindo as fronteiras instauradas pelo racismo, a mulher negra já trazia elementos ancestrais que dialogam com o que a gente conhece hoje como interseccionalidade, através de uma herança malunga, que recriou laços políticos e estratégias de sobrevivência.

E por que falar em herança malunga? Como isso dialoga com o movimento de mulheres no dia 8 de março e, ao mesmo tempo, com uma ruptura das lógicas coloniais? Bem, primeiro é importante compreender que a palavra “malungo” vem de uma perspectiva epistemológica afrocêntrica. Articula referências que ainda estão longe de ser aceitas no mesmo prisma dos modelos judaico-cristão e anglo-saxões, mas exprimem de fato o que é a organização política de negros em diáspora.

“Malungo” vem dos povos de matriz bantu da África Central e Oriental, particularmente os falantes das línguas kikongo, umbundu e kimbundu. Entre seus vários significados, que dependem do tempo e lugar, está “companheiro de viagem”, termo utilizado pelos negros escravizados para tratar os que estavam na mesma situação, nos navios negreiros.

A interseccionalidade é uma teoria que explica como diferentes estruturas de poder interagem na vida das minorias, especialmente mulheres negras. O nome foi dado pela afroamericana Kimberlé Crenshaw em meados dos anos 1980. O conceito refere-se à continuidade de antigas articulações dentro do movimento de mulheres que sentiam a necessidade de pensar para além das lentes coloniais.

Elas compreenderam o verbo malungar muito cedo, e levaram isso para a organização política de mulheres negras, com um olhar interseccional: é por meio do companheirismo, ou da irmandade, construída a partir da perda, da ruptura, mas também da transgressão identitária, que a ação ancestral de sobrevivência, incorporada em diáspora, vem sendo costurada. A travessia entre África e América propiciou violências, mas também desencadeou solidariedades entre grupos que poderiam ser inclusive inimigos étnicos em suas respectivas regiões na África.

Nota-se então a malungagem ativa na organização política de mulheres negras, pois as companheiras de viagem ainda navegam em um mar racista, sexista e classista, que estrutura suas vivências de forma subalterna. Mas as malungas ainda emergem na luta, respeitando as experiências comuns e distintas de cada uma.

É a consciência coletiva da mulher negra que traz a ruptura das invisibilidades, que chama atenção para as lacunas existentes na luta de mulheres, do negro e nas políticas de classe. Assim, temos a insurreição de quem não tinha direito nem ao próprio corpo, mas que recriou no infortúnio a emergência de outras subjetividades, trançadas com o termo da interseção nas demandas.

É a malunga pondo ordem na casa. As experiências comuns entre as mulheres não podem desconsiderar as desigualdades existentes no interior deste grupo.

Quando as mulheres negras chamam atenção sobre interseccionar as lutas, elas demonstram que apesar de estarem num espaço extremamente marginalizado, esse mesmo espaço faz com que visualizem a sociedade de outra forma. Isso é herança malunga, é ver para além das brechas do navio, são os elementos simbólicos de sua origem reacendendo em suas memórias através do discurso político.

Assim a mulher negra foi convivendo com esses saberes simbólicos, que foram se organizando e reorganizando, tanto para dentro do movimento de mulheres como para fora, em combate numa conjuntura que nunca foi favorável a elas. O próprio 8 de março ainda não é um dia que todos os movimentos de mulheres negras sentem-se confortáveis para chamar de seu, e para atribuí-lo a uma luta histórica sua também, devido a deslegitimidades e silenciamentos ainda presentes no movimento de mulheres.

No entanto, nota-se uma renovação nas demandas desse dia de luta. Mesmo que a inclusão das demandas, discutidas pela interseccionalidade, não estejam no formato ideal, já se alcança aos poucos o que se espera. É possível que a Marcha de Mulheres Negras, ocorrida em novembro de 2015 com presença de cerca de 40 mil mulheres, tenha contribuído para dar um fôlego a isso no Brasil. O slogan dessa marcha foi: “Contra o racismo e pelo Bem-Viver”, com uma carta que resume tudo que o Estado deveria ter feito há 130 anos, pós-abolição. São demandas a que o movimento social, seja de mulheres, negro, LGBTI, ou qualquer outro que tenha mulher negra, deve se ater.

As malungas provocam uma crítica radical de mudança social, suas demandas de outrora não deixam de ser demandas atuais.

No chamamento da greve internacional para este dia 8 de março de 2017 estão envolvidos pelo menos 30 países. Boa parte deles vive um contexto de retrocesso político, o que só fortalece o contexto levantado pela carta da Marcha de Mulheres Negras no Brasil – além de marchas e protestos ocorridos recentemente na Argentina e nos Estados Unidos.

A greve internacional de mulheres representa um passo importante para um novo ciclo de legitimação das demandas de povos historicamente discriminados. O slogan “Se nosso trabalho não vale, produzam sem nós”, há de se refletir que o trabalho em massa está nas mãos desses povos, sobretudo das mulheres negras.

As vozes malungas estão ecoando seus saberes e conhecimentos, legitimando e partilhando uma nova ordem para instauração de outra matriz civilizatória. Qualquer avanço adquirido por mulheres negras nunca será um avanço individual; o avanço delas é a transgressão de toda uma sociedade.


*Pedagoga afrocentrada. Atualmente atua como educadora no Inesc, junto ao projeto ‘Hub das Pretas’. É ativista e coordenadora do Fórum de Juventude Negra do DF e Entorno – Fojune.

Foto: Marcha das Mulheres Negras, em Brasília, novembro de 2015. Quarenta mil pessoas sugerem que é preciso conecatar feminismo com lutas de classe e antirracistas

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

5 × two =