O Brasil possui um sistema penitenciário falido que precisa ser repensado

Qual seria a solução para o nosso modelo penitenciário? Reconhecer que soluções demagógicas não funcionam é o primeiro passo para acharmos a resposta dessa pergunta.

Por Eduardo Migowski, no Voyager

“A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade regra geral.”
(Walter Benjamin)

Introdução

Passamos atualmente por uma crise política que está se tornando um caos social. Iniciamos 2017 observando na televisão, atônitos, a matança nos presídios. Manaus, Roraima e Natal. O caos era nacional. Prisões tão superlotadas que, simplesmente, era impossível manter os presos dentro das celas. Eles ocupavam todos os espaços e organizavam a convivência dentro desses locais. Como chegamos a essa situação limite?

A prisão nasceu no século XVIII, como forma de manter o equilíbrio social. O delinquente era visto como um perigo aos demais e, portanto, alguém que precisaria ser isolado. O problema é que essa lógica se inverteu. O encarceramento em massa, somado ao tratamento desumano, permitiu que o crime se organizasse dentro desses locais, como forma de suprir as necessidades básicas dos detentos. As maiores facções criminosas do Brasil nasceram dentro das penitenciárias e comandam de lá um “exército” de criminosos. As prisões já faz algum tempo têm ajudado mais na proliferação da delinquência do que na sua eliminação.

Entender como chegamos nessa situação não é tarefa fácil, mas fundamental para buscarmos saídas. Muitas das soluções apontadas, como trabalho forçado, pena de morte ou redução da maioridade penal, podem levar a um aprofundamento dos problemas. Nossa vida não melhorará com demagogias.

A questão é mais séria e complexa do que querem crer alguns. Colocar, por exemplo, um menor de idade em cadeias comuns, fará os custos desse modelo falido disparar e ajudará apenas as quadrilhas a recrutarem novos membros. Apesar de já ter se tornado um clichê, nunca é demais lembrar que um preso custa três vezes mais que um aluno de educação básica. Colocar jovens em jaulas em detrimento das salas de aula é, portanto, fazer uma escolha pela barbárie, dentro e fora dos presídios. “Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios.” (Darcy Ribeiro).

Outra solução mágica que entrou na moda nos últimos tempos é a privatização. Há um problema? Privatiza que melhora. Esse é o mantra daqueles que têm preguiça de pensar. Esquecem, contudo, que uma privatização pode elevar o custo por preso em duas vezes o valor atual, sem necessariamente ganhar em eficiência. Mas há ainda algo mais perverso nessa lógica. Vamos transformar o sofrimento humano em lucro? Queremos resolver o problema dos presídios superlotados remunerando empresários para encarcerarem? Mas prender é tarefa do poder público. Sim. Mas o que temos visto não é a iniciativa privada subornando o poder público para atuar em favor dos interesses privados? Isso aconteceu nos Estados Unidos, país que inclusive está revendo esse modelo de privatização, o que nos levaria a crer que não poderia se repetir no Brasil?

Este assunto é muito complexo. Já erramos demais nessa área, estamos no limite, não há mais espaço para amadorismo. Antes de pensar em qualquer solução, precisamos conhecer o problema. Entender o que é “poder punitivo” e como ele se estruturou no Brasil ao longo do tempo.

Sei que há muitos textos por aí com respostas prontas e acabadas. Então serei bem sincero: não conheço as soluções. Escrevi esse artigo para entender esse caos, não para resolver tudo.

Se você, como eu, está na dúvida e busca compreender o mundo em que vivemos, ótimo, podemos seguir em frente. Caso você já tenha todas as respostas, aviso: o texto não é pequeno, não é simples e é inconclusivo. Não perca seu tempo.

O Poder Punitivo: Duas Concepções de Direito Penal

“O Direito Penal é como o Junior Baiano, chega sempre atrasado e com violência.”
(Autor Desconhecido)

O crime é uma afronta à ordem estabelecida e, por isso, passível de punição. Mas, a forma como o castigo será realizado, muda dependendo da época e da sociedade. Vou dar dois exemplos.

Durante o Antigo Regime, a figura do rei estava ligada à sabedoria e a justiça. O rei era sábio, por isso, justo. Se o monarca era justo por natureza, sua vontade tinha força de lei. Desrespeitar a lei, portanto, seria uma afronta ao poder soberano. O que fazer com indivíduos que se colocam contra o poder régio? Simples: vinga-se. Essa era a lógica dos famosos suplícios, que eram realizados em praça pública, à vista de todos, como espetáculo.

A ordem havia sido colocada em cheque por um indivíduo. Como a relação soberano/súdito não era simétrica, a penalidade deveria ser implacável. O sofrimento do apenado, diante das mais cruéis torturas, representava a assimetria dessa forma de poder. Por tal motivo também, a sentença não acabava com a morte do criminoso. O peso da justiça sobre o corpo servia para marcar a desproporção entre súdito e soberano.

Com o advento do iluminismo, essa noção de poder foi questionada. A soberania passa a ser percebida como um pacto entre indivíduos. A lei, nessa nova formulação, seria então a expressão da “vontade geral”. A justiça teria como justificação o reestabelecimento do equilíbrio social. Ora, se a soberania é um “pacto”, o marginal é definido justamente como aquele que não respeita tal acordo. É, portanto, uma ameaça não ao monarca, mas aos demais indivíduos. É um inimigo interno. O que fazer nesses casos? Simples. Basta afastá-lo dos demais. Impedi-lo de romper novamente o pacto.

É dessa racionalidade jurídica que nasce o encarceramento como principal mecanismo de punição, em substituição aos suplícios.

Há uma enorme diferença entre esses dois modelos. No primeiro, julga-se um ato. O atentado ao poder régio. No segundo, ao contrário, o que está em discussão não é apenas a ação, mas a pessoa que a cometeu. Tenta-se compreender as circunstâncias em que determinado crime foi praticado e, principalmente, qual a possibilidade dele se repetir.

Diante dessa reformulação teórica, nascem duas concepções concorrentes a respeito do Direito Penal. A primeira, cuja inspiração é Hobbes, parte da noção de que a função das penalidades é evitar a famosa “guerra de todos contra todos”. Ou, numa lógica liberal, evitar que a liberdade de uns prejudique a de outros. Nesta perspectiva, que trabalha com a noção de sujeito de direitos e de isonomia legal, o aparato jurídico submeteria a todos de forma igualitária, regulando e regrando a interação entre os agentes econômicos.

Essa é a visão mais usual do “poder punitivo”, porém, há outras. Segundo o filósofo francês Michel Foucault, o Direito Penal seria um mecanismo de controle social. Fascinado pela pesquisa em arquivos históricos, Foucault, ao analisar o Código de Instrução Penal de 1808 e o Código Penal de 1810, percebeu algumas preocupações centrais colocadas pelos legisladores. Em primeiro lugar, eles tinham a percepção de que uma guerra estava em curso na França, não uma guerra hobbesiana (de todos contra todos), mas, sim, entre setores sociais. Este embate seria entre ricos e pobres, proprietários e despossuídos, patrões e empregados.

Foucault também afirma que já havia o entendimento na época de que as leis penais são feitas por uma parcela da população, mas são destinadas a outras pessoas, ou seja, aqueles que sofrem os efeitos do Código Penal não são aqueles que o formulam. Nas palavras de um deputado francês da época: “As leis penais, destinadas em grande parte a uma parcela da sociedade, são feitas por outra. Admito que elas afetam a sociedade inteira; nenhum homem tem a certeza de sempre escapar ao seu rigor; contudo, é verdade que a quase totalidade dos delitos, é cometida pela parte da sociedade à qual o legislador não pertence”.

O terceiro aspecto, destacado por Foucault, é o princípio da vigilância universal. A vigilância incessante seria a estratégia usada para evitar os delitos antes que eles fossem praticados. A possibilidade de estar sendo observado faria com que o possível criminoso passasse a regrar a si mesmo. A partir do século XVIII, o espetáculo converte-se em vigilância. Não são mais os sujeitos que observam a ação do poder sobre os corpos, como nos suplícios, mas o “olho do poder” que passa a observar os corpos de modo individualizado. “Os senhores podem julgar que nenhuma parte do Império carece de vigilância; que nenhum crime, nenhum delito, nenhuma contravenção deve ficar sem processo, e que o olho do gênio que sabe animar tudo abarca o conjunto dessa máquina, sem que possa escapar-lhe o mínimo detalhe.” (Napoleão Bonaparte).

Como podemos observar, há uma flagrante contradição entre a justificação do aparato penal e as estratégias de controle. A teoria legalista do Direito Penal, de matriz liberal, subordina o ato de punir à existência de uma lei específica, que transforma determinado comportamento numa infração. A vigilância, ao contrário, trabalha com a probabilidade da delinquência ser praticada, ou seja, sua esfera não é o que se faz, mas o que se é ou o que se possa fazer. Este é um problema que a teoria penal tradicional, de matriz hobbesiana, não consegue explicar.

São dessas contradições que nasce a interpretação do Direito Penal, que entende o funcionamento do aparato jurídico como um mecanismo de controle social, não de justiça. Assim, a função do poder de polícia não seria o de acabar em definitivo com a delinquência, mas administrá-la. Mantendo-a em níveis aceitáveis. Foucault também lembra que, caso uma sociedade resolva zerar os casos de ilegalidade, o controle exigido seria tão forte que os membros dessa comunidade não o suportariam e o problema seria agravado.

Outro exemplo interessante é a forma de atuação das polícias. Os responsáveis pela segurança trabalham com as chamadas “manchas de criminalidade”. Quanto mais escuras são as manchas nos mapas, maior o número de delitos e, portanto, maior é a necessidade de um reforço no policiamento. O fato das manchas serem menos escuras, porém, não quer dizer que não haja crimes, mas, sim, que esses delitos estão sendo mantidos sob controle, ou seja, administrados.

Seguindo essa mesma linha, o sociólogo Loic Wacquant percebeu que nas últimas décadas a população carcerária dos EUA cresceu de forma vertiginosa. O número dos delitos, contudo, permaneceu constante. Por que numa época se prende mais do que em outra sem que haja necessariamente um aumento da ilegalidade? E, mesmo que haja tal aumento, por que em determinados momentos se comete mais crimes que em outros?

Olhando para a história dos códigos penais brasileiros também podemos perceber a fraqueza da justificativa liberal. Praticamente toda a legislação penal brasileira foi instituída em momentos de instabilidade ou mudança de regime político. O primeiro Código Penal (1830) foi promulgado cerca de oito anos depois da independência. É interessante notar que, após o Sete de Setembro de 1822, o inimigo era externo, no caso, Portugal. Não havia a necessidade de leis repressivas ou estas não eram prioridade. Em 1830, o quadro era diferente. O Primeiro Reinado estava em crise, Dom Pedro I estava prestes a abdicar do trono. A década de 1830 também seria a das Revoltas Regenciais, muitas delas separatistas. Enfim, um período de enorme instabilidade.

Em 1890, um ano após a Proclamação da República e um ano antes da Constituição, foi escrito o segundo Código Penal. Se o compararmos com o Código Civil, que ficou pronto apenas em 1916, podemos ter noção da rapidez com que as leis criminais foram produzidas. Por quê? Para evitar a guerra de todos contra todos? Óbvio que não. O objetivo era consolidar o novo regime e, para isso, seriam necessários instrumentos legais para reprimir os descontentes. Esse era o pensamento em 1830, em 1890 e em 1940, quando o Estado Novo também criou o seu Código.

O tempo do Direito Penal é mais acelerado porque ele é regido pelas vicissitudes do poder. Ele acompanha os desdobramentos políticos. Justiça e política são instâncias imbricadas da realidade. Somente um olhar mais amplo, que leve em conta as relações de poder, nos permite entender as contradições dos sistemas jurídicos. A fraqueza da definição tradicional de justiça, que trabalha com modelos teóricos idealizados, sem muita constatação empírica, está justamente na tentativa de separar essas duas esferas. Um país dificilmente mudará seu Código Penal em função de um aperfeiçoamento das Ciências Criminais, normalmente, essas transformações ocorrem em momentos de ruptura política.

Portanto, para compreendermos minimante um determinado sistema de penalidades, é preciso fazer cinco perguntas fundamentais: 1) Quem formulou o Código Criminal; 2) Qual o fundamento dessa legislação; 3) A quem ela se destina; 4) Quais as estratégias de controle adotadas; 5) Quais os seus efeitos?

Abaixo, partindo dessas indagações, tentaremos entender a formação da “razão punitiva” brasileira e como chegamos ao impasse atual.

Das Ordenações Filipinas ao Código Criminal de 1830

Há uma visão estereotipada do brasileiro como um povo pacífico, alegre e tolerante. Tal interpretação da nossa cultura, contudo, não se confirma em nossa história. Fomos uma colônia de Portugal e um país formado pelo trabalho compulsório, escravo. Tais características impuseram um rígido sistema de hierarquias que, obviamente, era sustentado por leis penais extremamente rigorosas.

As Ordenações Filipinas, que vigoraram de 1603 até 1830, com certeza deixariam os eleitores de Bolsonaro orgulhosos, caso estes conheçam a história. O famoso livro V do mais longo Código Penal brasileiro descrevia as possíveis penalidades:

“… morte natural, morte natural com crueldade, morte pelo fogo até ser feito o condenado em pó para que não tivesse sepultura ou memória, açoites, com ou sem baraço, pregão pela cidade e vila, degredo para galés, África, Índia, Brasil ou, ainda Costa do Marfim, para fora do reino ou para vila do bispado, mutilações ou cortes das mãos, da língua, queimadura com tenazes ardentes, confisco, multa, capela de chifres na cabeça (para os maridos que condescendiam), polaina ou enxaravia na cabeça”.

A legitimação desta modelo é a do poder de soberania, discutida anteriormente. A figura real concentra a unidade da lei e das armas. É o monarca que impõe as normas e os castigos. “A teoria do poder real e seu exercício supõe sua articulação com um saber, com a sabedoria. Assim o poder e a sabedoria se unem no exercício da real justiça.” (Manuel Barros da Motta).

As Ordenações foram instituídas num período histórico conhecido como União Ibérica, em que o rei da Espanha era o mesmo de Portugal. Portanto, não é difícil entender a quem essa legislação se destinava. Em primeiro lugar, ela visava impedir as revoltas separatistas e a restauração da dinastia portuguesa. Fato que ocorrera em 1643, com a ascensão dos Braganças. Internamente, as Ordenações tinham a finalidade de manter a ordem social, a escravidão e a hegemonia da fé católica. Ora, num contexto marcado pela ausência de direitos, onde era negada a humanidade de grande parte da sociedade, a violência extrema era a única forma de impor o controle.

O medo é um sentimento importante para compreendermos a psicologia social brasileira. A violência, quando praticada de forma sistemática, forma uma espiral de selvageria. Basta olhar as revoltas camponesas do Antigo Regime. Ou, num exemplo mais famoso, a Revolução Francesa. O povo que é tratado a ferro reproduz essas práticas quando resolve se sublevar contra as instituições.

No caso brasileiro, o grande número de escravos e a possibilidade deles se revoltarem sempre assombraram os “homens bons”. Como os historiadores têm mostrado, casos de revoltas escravas colocavam os habitantes da colônia em desespero, mesmo que esses eventos acontecessem em locais longínquos, como no Haiti. A brutalidade com que a Revolta dos Malês foi reprimida, por exemplo, só é compreendida tendo em vista esses temores.

A violência extremada dirigida a um grupo social gera medo, o medo produz paranoia que, por sua vez, impõe mais violência. Esse círculo vicioso, com efeito, esteve presente em quase toda a história brasileira e até hoje nos atormenta, legitimando um “Estado de exceção permanente” nas periferias das grandes cidades.

Com a independência, os ventos do iluminismo chegaram ao Brasil. Porém, em forma de brisa. As Ordenações Filipinas passaram a ser questionadas pela crueldade e vários projetos mais “humanitários” começaram a ser pensados. Em 1830 foi promulgado o primeiro Código Criminal do Brasil pós-independência. Curiosamente, o que animou os legisladores não foram os debates esclarecidos sobre Direitos Humanos, mas o conturbado momento político. O Império estava em total desordem, com sério risco de fragmentação. A década de 1830 seria marcada pelas chamadas revoltas regenciais. O objetivo dessa nova legislação, portanto, não era humanizar as penas, mas reestabelecer o equilíbrio político.

O mais importante a ser destacado é que esse Código Penal marcou o nascimento da prisão no Brasil. Até 1830, o aprisionamento era a maneira de guardar o prisioneiro até que ele sofresse as sensações estabelecidas, ou seja, não era exatamente uma forma de castigo, mas a maneira de impedi-lo de fugir até que este fosse punido. Com o Código Penal é inaugurado no Brasil o aprisionamento como principal forma de punição. Essa lógica, apesar de cada vez mais estar sendo questionada, ainda é hegemônica atualmente.

A Casa de Correção da Corte foi a primeira instituição carcerária construída nesses moldes. A ideia era humanizar as sentenças e, como o próprio nome sugere, “corrigir” os infratores. A inspiração arquitetônica foi o famoso projeto carcerário de Jeremy Bentham, o Panóptico. O projeto do Panóptico previa uma torre central cercada por celas que eram distribuídas de modo que um único vigilante pudesse observar todas as dependências do presídio. Quem estivesse na torre poderia vigiar qualquer preso, porém não poderia ser visto por ele. Assim, os apenados teriam a sensação de estar sendo observados 24 horas por dia, independente de haver ou não alguém na torre de controle.

O projeto também previa locais iluminados, arejados e limpos para o cumprimento de uma pena mais humana. Por isso, o local escolhido para a construção do presídio foi o bairro do Catumbi, por princípios de saúde e higiene, pois o local ficava em uma “meia de uma colina”, mas também por ficar próximo à corte. A ideia era que este modelo “humanitário” de punir ficasse à vista de todos, como símbolo dos novos tempos que estavam sendo vislumbrados.

Nada, porém, aconteceu como planejado. A começar pela execução do projeto que não conseguiu reproduzir o “efeito panóptico”. Por mais que reformas fossem feitas, havia “pontos escuros” que não podiam ser vigiados por um único olhar. As questões humanitárias também não foram observadas, logo a penitenciária se transformaria num depósito de seres-humanos.

A Casa de Correção da Corte talvez seja o maior símbolo da falência do nosso modelo prisional. Não apenas por ter sido a primeira, mas por ter perdurado no tempo, concentrando em sua história todas as contradições e os fracassos deste sistema. Em 2010, a antiga prisão, que se transformara no Complexo Penitenciário Frei Caneca, foi finalmente desativada. Aquilo que no começo foi pensado para ser um local limpo e seguro, quando fechado no século XXI, estava completamente superlotado, com celas em que seres-humanos, segundo relatos, disputavam espaço com “ratos do tamanho de gatos”.

É preciso destacar que o poder disciplinar não se limita à prisão, mas ao que Foucault chamou de “arquipélago carcerário”, que inclui outras instituições como as casas de recolhimento, os orfanatos, as escolas e as cidades operárias. No Brasil, foi construído a Casa de Correção da Corte, uma albergaria para mendigos, um asilo e uma colônia penal em Fernando de Noronha. Conformando o primeiro dispositivo disciplinar brasileiro.

Resta responder a uma pergunta. A quem este sistema era destinado? O livro “Crítica da Razão Punitiva”, escrito pelo filósofo brasileiro Manuel de Barros Motta, reproduz vários documentos oficiais da Casa de Correção da Corte, como anexo ao texto. Por meio deles, podemos ter uma noção do perfil dos prisioneiros. A maioria dos detentos contava entre 21 e 40 anos. Eram solteiros. Eram também classificados como escravos ou “Africanos libertos” (escravos alforriados). Em suma, a prisão era povoada por homens negros em quase sua totalidade. O que nos leva a conclusão de que esse modelo servia para o controle da escravidão e, principalmente, para disciplinar os negros libertos, que não estavam mais sob a tutela de um senhor.

A execução de Tiradentes se deu sob a égide das Ordenações Filipinas. Imagem: Voyager

O Debate criminal na Primeira República e a situação atual do sistema carcerário

“Um bom sistema carcerário desempenha um papel essencial na limitação dos problemas do presente, sendo função essencial do Poder Público. Mas o Estado não se limita a prender, a sequestrar os delinquentes, a privá-los de liberdade. A função de punir é uma função cientificamente realizada, que recorre à ciência e à sociologia. Ante o progresso destas, o Direito e o dever do Estado perseguem um fim mais amplo, um fim mais nobre, outro fim mais humanitário, mais social, que não é assinalado apenas aqui, mas por acordo universal, que é a correção, a regeneração do delinquente.”

Gostaria de propor um exercício. A citação acima, retirada da fala de um Ministro da Justiça, está propositalmente sem o nome do autor. Você saberia me dizer a época e o governo no qual ela foi realizada?

Campos Salles? Castelo Branco? Itamar Franco? No fundo não importa. Esse é o discurso padrão sobre o sistema carcerário. Qualquer ministro, caso recebesse essas palavras de um assessor, assinaria sem pensar duas vezes. O autor do trecho foi Francisco de Assis Rosa e Silva, que não era o Santo, mas o último Ministro da Justiça do Império. Nossa racionalidade penal se consolidou no final do século XIX.

Em 1890 o ilustrado Ministro Campos Salles, promulgou o Primeiro Código Penal republicano. É interessante notar que a ânsia punitiva era tanta que o Código Penal ficou pronto antes da Constituição. De novidade, porém, quase nada. A legitimação teórica não era mais o iluminismo, mas o cientificismo que, como vimos, já estava presente no final do Império. A prisão como modelo principal de punição já existia. O discurso de reabilitação dos presos, também. Assim como o caráter “humanitário” das penas. O novo Código apenas consolidou as tendências que já vinham sendo percebidas desde 1830. O poder disciplinar seria disseminado por todo território nacional.

Mesmo assim, o Código de 1890 não deixa de ter a sua importância, afinal, como disse Manoel de Barros Motta: “Na verdade, tanto num código como no outro, a pena de encarceramento, isto é, a prisão, é a pedra angular do sistema punitivo. Mas, no sistema anterior, havia o castigo de escravos, a pena de galés e também a pena de morte. Nesse sentido, a República significa uma mutação importante nos modos de punir, consagrando ainda mais a prisão como o centro do sistema de punição”. Mesmo que já estivesse sendo gestado há algum tempo, a atual “razão punitiva brasileira”, nasceu em 1890.

O perfil dos prisioneiros também pouco mudou. Os presídios continuaram a ser preenchidos com homens, jovens e negros. Com o fim da escravidão as cidades receberam um excedente populacional. As primeiras favelas começaram a ser formadas no Rio de Janeiro. Era a essa população, que antes era classificada como “africanos livres” e que seria chamada de vadia (esse termo também era usado no Império) na República, que a legislação penal era destinada. E foram os “vadios” que lotaram as prisões.

Hoje, 127 anos depois, qual a situação do sistema carcerário? Segundo dados apurados pela Revista Nexo, 96,3% dos presos são homens. Os negros representam 67% do total. A proporção de presos sem ensino fundamental completo é 25 vezes maior que a média geral da população. A incidência de HIV é 65 vezes maior que a média brasileira. De tuberculose, 38 vezes. Em 1990 o Brasil contava 90 mil detentos, agora são 646 mil. Um aumento de 483% em menos de três décadas. A maioria está presa por tráfico, pequenos roubos e furtos. Os crimes contra a vida não chegam a 15% (assassinados e latrocínios). Em média, 40% sequer foram julgados. Em Manaus, estado em que ocorreu a chacina no início deste ano, 60% dos detentos ainda não foram condenados. No ranking mundial, o Brasil possui a terceira maior população carcerária (a cada 100 mil habitantes). Está em sétimo lugar em números de presos sem julgamento. E ocupa a quarta posição no ranking de superlotação.

Olhando para esses números, fica evidente que esse modelo é insustentável. Cada preso custa em média 3000 reais aos cofres públicos. Nos presídios privatizados e terceirizados, esse valor pode dobrar. Após a matança do início de 2017, o governo anunciou mais de 400 milhões de reais em investimentos que, segundo especialistas, só diminuiria o déficit em 0,4%. E mesmo que o governo resolvesse zerar a carência de vagas, quando as obras ficassem prontas, após bilhões investidos, o déficit seria ainda maior e novos investimentos seriam necessários. Em termos mais simples, estamos “torrando dinheiro” para “enxugar gelo”.

Como vimos no início do texto, a justificação de tal política é a utilidade social. O criminoso é um inimigo interno e, por isso, deve ser afastado do convívio público, isolado. O problema é que esse isolamento não existe. As duas maiores facções criminosas do Brasil, Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital, foram formadas dentro das penitenciárias. É dos presídios também que elas comandam grande parte das suas operações criminosas. Grande parte dos membros dessas quadrilhas também são recrutados no cárcere.

Prendemos jovens por pequenos furtos e os transformamos em criminosos profissionais nas penitenciárias. O modelo disciplinar nunca funcionou no Brasil. A organização no interior dos presídios é feita pelos próprios presos. O aprisionamento, que fora pensado para manter o equilíbrio político, tornou-se um dos principais focos de instabilidade e da nossa insegurança. Esse modelo já se esgotou. É preciso procurar alternativas.

Considerações Finais: Criminalidade e o Caos Urbano

“As grades do condomínio são para trazer proteção, mas também trazem a dúvida se é você que está nessa prisão.” (Minha Alma, O Rappa)

Como vimos, prendemos cada vez mais. A violência, porém, não para de crescer. Para sair desse círculo vicioso é preciso, em primeiro lugar, reconhecer que o encarceramento em massa está produzindo mais criminalidade. Portanto, não é a solução.

Nossa cultura política foi formada pelo medo e pela repressão. Penas rigorosas sempre foram a regra na sociedade brasileira. E elas nunca resolveram nada. Vivemos com medo. Por isso temos dificuldade de perceber o problema. Toda vez que um menor de idade comete um crime cruel, gritamos pela redução da maioridade penal. Reclamamos dos Direitos Humanos. Dos políticos. Das leis. Do Estatuto da Criança e do Adolescente. Da esquerda. Das universidades.

Reclamamos muito, mas refletimos pouco. Onde esses menores seriam encarcerados? Qual o custo? Não paramos para pensar se a prisão realmente torna a sociedade mais segura. Não refletimos sobre o perfil desse criminoso. Agimos de forma reativa, motivada pela comoção momentânea. Assim, não pensamos o problema de forma estrutural e não percebemos a sua complexidade. Deixando espaço para todo tipo de demagogia que prega “soluções mágicas”, mas que na verdade só agrava os conflitos. Não viveremos em paz enquanto estivermos clamando por vingança.

Olhando para a história, fica claro que as soluções apontadas pelos demagogos e pela histeria coletiva já foram aplicadas e não obtiveram êxito. Quer a pena de morte? Olhe para as Ordenações Filipinas. Duvido que o mais sádico dos “cidadãos de bem” tenha tanta criatividade para a crueldade. Quer trabalho forçado? Isso também não é novidade, a Pena de galés é muito mais antiga do que você imagina. Quer a redução da maioridade penal? Saiba que, segundo o Código Penal de 1890, só era inimputável os menores de nove anos. Essas medidas, repetidas a exaustão pelos aproveitadores, estão na verdade na raiz do caos em que vivemos.

Quais seriam as alternativas? Sei que você está se fazendo essa pergunta. Porém, vou decepcioná-lo. Não saberia responder. Como disse, o problema é complexo e envolve questões sociais, políticas, culturais, econômicas etc. Seria muita pretensão da minha parte querer resolver tudo em poucas linhas. Prefiro deixar as soluções simplistas para a bancada da bala. Recuso-me a cair nesta armadilha.

Mas é possível apontar alguns caminhos. Se analisarmos nossos Códigos Penais, fica claro que eles foram motivados por pressões políticas momentâneas. Porém, a médio e longo prazo, independente do Código, a parcela da população que sofreu as sanções previstas, pouco foi alterada. Os presos da Casa de Correção da Corte, como mostrado, eram homens, negros e com baixa escolaridade. Esse é exatamente o perfil dos atuais detentos, em proporções diferentes.

Diante disso, há duas conclusões possíveis. A primeira, racista, que eu espero que já esteja superada, é achar que os negros são mais propícios ao crime. Se você pensou nessa hipótese em algum momento da sua vida, saiba que esse raciocínio foi responsável pelas maiores tragédias da história.

A segunda, que na verdade é a única que pode ser considerada, é pensarmos que a baixa escolaridade, as condições de vida que a população negra está submetida, as oportunidades que damos aos nossos jovens e a forma racista como a legislação penal é aplicada, são carências sociais que possuem sérias consequências para todos. Vivemos em sociedade. Compartilhamos os mesmos espaços. Um ensino público ruim não afeta apenas os alunos das periferias. Entrincheirarmo-nos em fortalezas, cercadas de seguranças e câmeras, irá apenas piorar nossas angústias.

Se definirmos o Direito Penal como uma forma de controle social, analisando a população carcerária ao longo do tempo, reconheceremos que essa legislação existe para disciplinar uma parcela específica da população. No fundo, clamamos por leis mais rígidas porque sabemos que não seremos afetados por elas.

Por que isso acontece? Alguma vez você fez essa pergunta? Disciplinamos e punimos esses homens porque não os integramos à sociedade. Primeiro, eles são marginalizados, depois se tornam marginais. Não seria esperado que homens mantidos à margem da sociedade se comportem à margem da lei? Por que não conseguimos perceber um fato tão simples? O ódio cega e quem não enxerga corre o risco de cair sempre nos mesmos buracos. O problema é que eles estão cada vez mais fundos. A frase de Joaquim Nabuco, do final do século XIX, virou uma maldição nos séculos seguintes: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.”.

Estudando o pensamento jurídico do século XVIII, Foucault escreveu: “Quanto mais fraca uma sociedade, mais facilmente ela é posta em risco por um crime, e mais pesada é uma penalidade.”. A histeria coletiva é reflexo das nossas fraquezas. Estamos doentes, o crime é apenas um dos sintomas. Precisamos, portanto, de uma reflexão profunda sobre o modo como vivemos. Apontar culpados e eleger inimigos é apenas uma maneira de cavarmos mais fundo o poço em que entramos.

Um Direito Penal cada vez mais cruel pode até saciar nosso desejo por vingança. Pode nos dar a sensação de segurança. Mas tudo isso é falso. Dura pouco. No dia seguinte tem mais um programa do Datena e as angústias voltam. Infelizmente, temos poucos casos de sucesso na história brasileira. Nosso passado mostra mais o que não deu certo. Erramos mais do que acertamos, esse é um fato difícil, mas que é preciso reconhecer. Não iremos melhorar a nossa vida seguindo as mesmas trilhas. É preciso procurar novos caminhos, tatear no escuro. Para isso, é preciso demolir as certezas, as soluções prontas e as demagogias. O problema existe, nos afeta e precisamos encará-lo, não há como fugir eternamente.

Está com dúvida? Angustiado? Não consegue ver alternativas? Ótimo! Esse é o primeiro passo. Agora, sigamos em frente.

Para Saber Mais

Clarisse Maia & Flávio Neto & Marcos Bretas – História das Prisões no Brasil
Michel Foucault – Vigiar e Punir
Michel Foucault – Microfísica do Poder
Michel Foucault – Sociedade Punitiva
Michel Foucault – Segurança, Território e População
Michel Foucault – A Verdade as Formas Jurídicas
Manuel Barros da Mota – Crítica da Razão Punitiva
Raul Zaffaroni – O Inimigo no Direito Penal
Georg Rusche & Otto Kirchheimer – Punição e Estrutura SocialDados Sobre o Sistema Carcerário Brasileiro
Revista Jota – Casa de Correção da Corte: o que mudou de 1850 para cá – https://jota.info/justica/casa-de-correcao-o-que-mudou-de-1850-pra-ca-22012017
Jornal da Lei – De Olhos Fechados Para a resocialização – http://flip.jornaldocomercio.com.br/edicao/impressa/2418/08-11-2016.html
Revista Nexo – Dados do Sistema Carcerário Brasileiro (parte 1) https://www.nexojornal.com.br/grafico/2017/01/04/Lota%C3%A7%C3%A3o-de-pres%C3%ADdios-e-taxa-de-encarceramento-aqui-e-no-mundo
Revista Nexo – Dados do Sistema Carcerário Brasileiro (parte 2) https://www.nexojornal.com.br/grafico/2017/01/10/O-acesso-a-educa%C3%A7%C3%A3o-e-servi%C3%A7os-nos-pres%C3%ADdios-do-Brasil
Revista Nexo – Dados do Sistema Carcerário Brasileiro (parte) https://www.nexojornal.com.br/grafico/2017/01/18/Qual-o-perfil-da-popula%C3%A7%C3%A3o-carcer%C3%A1ria-brasileira

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

10 − nove =