Em artigo, o advogado Eduardo Fernandes comenta o caso em defesa dos direitos quilombolas, que será julgado pelo TRF
por Felipe Milanez — CartaCapital
A agressão aos direitos territoriais das comunidades quilombolas tem mais um capítulo nesta semana: o julgamento pelo Tribunal Regional Federal (TRF) do Nordeste sobre o reconhecimento da terra do quilombo Acuã, no Rio Grande do Norte (RN).
Junto de Acuã estão outros 23 quilombos, movimentos sociais e, sobretudo, a garantia dos direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988. Contra o quilombo estão os representantes da Casa Grande, que insistem em modelar o colonialismo no Brasil para que nada mude com relação às injustiças históricas e desigualdades sociais.
No artigo abaixo, o advogado Eduardo Fernandes, professor da Universidade Federal da Paraíba e doutorando na Universidade de Coimbra, comenta o caso em defesa dos direitos quilombolas. Junto meu grito para aumentar o eco: #SomosTodosAcuã
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Por Eduardo Fernandes de Araújo*
Nesta quarta-feira, 21 de junho, o destino das terras quilombolas estará sendo julgado pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região, pelo exame dos direitos territoriais da Comunidade Remanescente de Quilombo Acuã. O “caso Acuã” mobiliza 23 comunidades quilombolas do Brasil que enfrentam um fazendeiro, a Sociedade Rural, e a sanha ruralista contra as terras tradicionalmente ocupadas no País.
Em 2004 a comunidade quilombola de Acauã, localizada no município de Poço Branco (RN), recebeu a certidão da Fundação Cultural Palmares e, no mesmo ano o INCRA iniciou o procedimento para titulação de 540 hectares, onde vivem cerca de 60 família. Conforme o relatório do INCRA, o momento fundacional da comunidade é constituído a partir de laços de parentesco e alianças políticas com demais grupos na região:
“Segundo a história oral, aquela área teria sido descoberta no passado por José Acauã, um escravo fugido de outras terras. (…), no ano de 2008, “o Incra publicou portaria de reconhecimento dos Territórios Quilombolas, mesmo ano em que a Presidência da República decretou a desapropriação da área por interesse público e para fins sociais”.
Após a publicação do decreto de desapropriação, o fazendeiro recorreu à Justiça Federal do Rio Grande Norte buscando discutir o valor atribuído das terras, a anulação do processo administrativo e, em ato contínuo, solicitou a declaração de inconstitucionalidade do Decreto n°4887/2003.
Os argumentos da ADI n°3239/2003 que estão elencadas no “Caso Acauã”, diz que caberá ao TRF 5° Região, no julgamento previsto para o próximo dia 21 de junho, decidir sobre mais um incidente de inconstitucionalidade, com mais de 23 comunidades de todo Brasil, que estão habilitadas no processo enquanto amicus curiae.
As associações quilombolas, redes de direitos humanos, organismos universitários, movimentos sociais e diversos setores do Estado atuam junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) e aos TRFs na defesa da constitucionalidade do Decreto 4.887, destacando-se a Justiça Global, Terra de Direitos, Rede de Justiça Social e Direitos Humanos, Comissão Pastoral da Terra, a Comissão Pró-Índio, CONAQ, Via Campesina, Movimento Negro Unificado, Educafro, Instituto Socioambiental, Instituto de Pesquisa Direito e Movimentos Socais, Procuradoria do INCRA, Advocacia Geral da União, Procuradoria Geral da República, Defensoria Pública da União, Rede Nacional de Advogadas Populares e outros.
Racismo jurídico
Todo julgamento que trata a questão quilombola traz consigo as teses contrárias à autodeclaração e ao acesso à propriedade coletiva. Tentam destruir o que prevê a Constituição de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e o Decreto 4.887 de 2003.
Este decreto, no mesmo em que foi promulgado, foi alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n°3239/2003) no Supremo Tribunal Federal, pelo Partido Democratas (DEM, antigo PFL, ARENA). E junto do DEM, amicus curiae, a Sociedade Rural Brasileira, a Associação Brasileira de Celulose e Papel, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil e outros.
Latifundiários, políticos e grupos econômicos utilizam a mesma estratégia jurídica buscando a minoração de direitos, no TRF 4° Região, no “Caso Paiol da Telha” (Paraná), a manutenção da constitucionalidade foi possível após forte mobilização social, política e jurídica.
É preciso descolonizar nossas reflexões e ações.
A ideia de que um quilombo é igual ao outro ou que as trajetórias das formações territoriais e identitárias devem conter elementos autoexplicativos é uma não história, a dimensão do quilombo enquanto “fugas das senzalas”, “dos fenótipos africanos” e “da memorização temporal de 1888” evidenciam que ainda estão em curso o uso da definição de quilombos de acordo com o Conselho Ultramarino (1740).
O problema, segundo escreveu Alfredo Wagner, no livro Quilombos: identidade étnica e territorialidade, “não é discutir o que foi, e sim discutir o que é e como essa autonomia foi sendo construída historicamente” . No mesmo sentindo, o historiador Flávio Gomes mostra que tais perspectivas negam e simplificam outros processos de formação das comunidades, entre elas a “interiorização dos libertos dentro de latifúndios, da compra, doação e herança de terras”.
Estas percepções simplistas anulam a capacidade política de compreensão destas comunidades, encobrem as relações e acordos com os abolicionistas, encobrem a participação das(os) negras(os) nas revoltas populares, negam um saber-fazer reflexivo em movimento, encobrindo a inteligência dos indivíduos e comunidades quilombolas.
O conceito usual no meio acadêmico e jurídico sobre comunidades quilombolas é a formulação da Associação Brasileira de Antropologia: quilombo é “uma herança cultural e material que lhes confere uma referência presencial no sentido de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico.”
A Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), criada em 1996, sinalizou 2.000 comunidades quilombolas no Brasil, os opositores se manifestaram, designando os quilombos enquanto “invenções legislativas”, denominaram a CONAQ de “MST dos Negros”, “A Revolução Quilombola: Guerra Racial, Conflito agrário e urbano, Coletivismo.”
O Estado brasileiro, entre 2001 – 2011, reconheceu 1.228 comunidades quilombolas, destas, 1.017 receberam as certidões de auto-reconhecimento da Fundação Cultural Palmares (FCP). Atualmente são 2.648 comunidades, 2.336 receberam certidões, a CONAQ assinala um número superior a 4.500 comunidades.
O Instituto de Colonização e Reforma Agrária, em relatório de 2015, aponta que entre os anos de 2005 – 2015 foram abertos 1.516 processos de reconhecimento, demarcação e titulação, destes, apenas 189 Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) publicados, 63 Decretos de desapropriação por interesse social e 190 Títulos emitidos, os números contabilizam os anos de 1995 – 2015.
A Região Nordeste tem a maior incidência de comunidades, até o momento estão certificadas 1.381 comunidades, de um total de 1675 pedidos de reconhecimento, alguns casos são considerados “emblemáticos”: Sibaúma e Acuã (RN); Conceição das Crioulas e Itacuruba (PE); Gurugi, e Caiana dos Crioulos (PB); Alcântara (MA); São Francisco do Paraguaçu e Rio dos Macacos (BA).
Carlos Marés, na obra Direito Constitucional Quilombola (2015), aponta que, na história brasileira, as comunidades quilombolas são invisíveis para a justiça e para a sociedade em geral. Tais situações trazem para o cotidiano uma questão social, política, cultural e institucional que enquadra o passado – presente – futuro do Brasil.
As mobilizações políticas e jurídicas em curso do “Caso Acuã” e pela garantia da constitucionalidade do n°4887/2003 são pedagógicas. No campo jurídico, pode auxiliar a superação de uma cultura de favor, pela cultura de direitos, como escreve José Geraldo de Sousa Júnior. E para Givânia Silva (2012), é a educação enquanto luta para concretização de políticas públicas, de acesso ao território, da vivência de identidades e local de exercício da memória permanente.
A manutenção da titulação da Comunidade quilombola e da manutenção da constitucionalidade do Decreto 4.887 de 2003 é imprescindível para que outros cantos de Acauã expressem a experiência da liberdade, o reconhecimento da identidade e a existência da territorialidade.
#SomosTodxsAcauã #Decreto4887/03Fica.
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*Eduardo Fernandes de Araújo é professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutorando no Centro de Estados Sociais da Universidade de Coimbra.
Foto: Momento fundacional da comunidade é constituído a partir de laços de parentesco e alianças políticas com demais grupos na região.