Delegado viu pessoas baleadas ainda com vida no dia do massacre de Pau D’Arco

Ainda serão interrogados 16 policiais réus pelo assassinato de 10 trabalhadores rurais na fazenda Santa Lúcia

Lilian Campelo, Brasil de Fato

“Tinha que ter uma história só”, foi o que ouviu o delegado da polícia civil, Valdivino Miranda da Silva, ao chegar no acampamento da fazenda Santa Lúcia em Pau D’Arco, no Pará, de um dos policiais em  24 de maio de 2017, data do registro de óbito dos 10 sem-terra assassinados durante ação policial.

De capuz e óculos de sol, para proteger a sua identidade, Valdivino foi o primeiro policial a ser interrogado durante a audiência de instrução e julgamento nesta segunda-feira (16) no Fórum de Redenção (PA), onde está o processo que apura o massacre de Pau D’Arco.

O delegado Valdivino e o investigador da polícia civil, Nonato de Oliveira Lopes, estão sob a tutela do Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita) e colaboram com as investigações sobre o assassinato de nove homens e a presidenta da Associação dos Trabalhadores Rurais Nova Vitória, Jane Julia de Oliveira, única mulher assassinada.

Durante o interrogatório o juiz César Leandro Machado, que conduz o processo, pergunta:

── Quando o senhor chegou na sede o que viu?

── Quando cheguei vi a Jane, de olhos abertos

── Estava morta?

── Estava

Durante o depoimento Valdivino narrava os fatos e respondia às perguntas do juiz. Segundo ele três equipes, entre policias civis e militares se dividiram ao chegarem nas proximidades da fazenda. Como não haviam encontrado os trabalhadores rurais a equipe conduzida pelo coronel Carlos Kened Gonçalves de Souza seguiu por uma trilha para dentro da mata em busca dos trabalhadores. O objetivo da ação policial era o executar 14 mandados de prisão de suspeitos pela morte de um segurança, que prestava serviços de vigilância na fazenda.

De acordo com a denúncia do Ministério Público (MP), a equipe do coronel era composta unicamente por policias militares: o tenente Rômulo Neves de Azevedo, os cabos Cristiano Fernando da Silva, Welinton da Silva Lira e os soldados Rodrigo Matias de Souza, Jonatas Pereira e Silva e Neuily Sousa da Silva. Ainda segundo o MP o grupo foi o primeiro que teve contato com os sem-terra e “o responsável, de início, pela abordagem violenta às vítimas”.

Valdivino ainda relatou que ao chegar ao local observou que tinha pessoas baleadas e com vida. Porém, ele não recorda ao certo quais seriam as pessoas e disse que em nenhum momento os policias prestaram socorro às vítimas.  De acordo com o MP, as quatro pessoas seriam Wedson Pereira da Silva, Hércules Santos de Oliveira, Ronaldo Pereira da Silva (marido de Jane Julia) e Antônio Pereira Milhomem.

O delegado lembra que naquele momento a tensão aumentou sobre a equipe que ele estava comandando, havia uma cobrança para que todos saíssem do local com uma única versão, de que houve confronto com as vítimas.

Segundo o MP, o acordo foi selado quando o policial civil, Nonato de Oliveira Lopes, segundo Valdivino estava na equipe com ele, “efetuou dois disparos em duas vítimas selado de maneira tenebrosa o pacto”.

Nesta terça-feira (17) o segundo a ser interrogado é investigador da polícia civil. Ao longo da semana ainda serão ouvidos 15 policias, 13 PMs e 2 civis.

O advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Marabá, Batista Afonso, informa que concluído a fase de instrução irá restar ainda os depoimentos dos peritos, ao final de todo o tramite legal de alegações finais o juiz dará a sentença, que pode ser de pronuncia, encaminhado os acusados para o tribunal do júri, ou de impronuncia, quando o juiz entende que não há elementos suficientes para submeter o réu ao tribunal.

Pau D’Arco e Eldorado dos Carajás

Para Batista a individualização das condutas [que é a identificação da participação dos acusados no massacre de Pau D’Arco] foi um avanço significativo no processo de investigação em comparação com o Eldorado do Carajás, onde 21 sem-terra foram mortos no dia 17 de abril de 1996 durante uma ação da polícia militar para desobstruir um trecho da rodovia PA-275, que estava ocupada por trabalhadores para reivindicar reforma agrária.

“No curso das investigações e no caso de Pau D’Arco a gente conseguiu fazer o que não foi possível fazer no caso de Eldorado, que foi a individualização das condutas, ou seja, dos 29 policiais que participaram da operação, quem realmente estava na cena do crime, e quem realmente apertou o gatilho”, esclarece.

Em Eldorado, Batista relata que não foi feita perícia no local no crime nem a reconstituição; assim como não foi possível identificar as armas que os policias carregavam, porque a cautela, documento que contém o registro da arma que o policial carrega em uma ação, não foi localizada e “sem individualização, eles [policias] acabaram se beneficiando dessa falha e conseguindo a sua absolvição”.

Cenário bem diferente sobre as investigações de Pau D’Arco. Além da perícia no local do crime e nos corpos e reconstituição o advogado da CPT destaca que a participação da Policia Federal foi importante.

“No caso de Pau D’Arco, sabendo que tinha a participação da Polícia Militar e da Polícia Civil, fizemos toda a pressão possível para que a Polícia Federal entrasse no caso; o que representou uma mudança significativa”, destaca.

Ainda segundo Batista as investigações sobre o massacre de Pau D’Arco “possuem um conjunto probatório muito forte sejam de provas materiais e de testemunhas” que colaboram em definitivo sobre a participação dos principais acusados nas mortes dos dez trabalhadores rurais e diante desse conjunto ele não tem dúvidas que os acusados serão levados ao tribunal do júri.

Edição: Juca Guimarães.

Imagem: Enterro de vítima do massacre. Corpos dos trabalhadores rurais foram entregues para as famílias sem cuidados de conservação. Foto: Repórter Brasil

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