A Organização Internacional do Trabalho pediu que o governo brasileiro envie mais explicações sobre os impactos da aplicação da Reforma Trabalhista até o mês de novembro para que possa avaliar se ela fere a Convenção 98, que trata do direito de sindicalização e negociação coletiva. A entidade ainda não decidiu se a reforma está de acordo ou contra as normas internacionais ratificadas pelo país, ao contrário do que circula nas redes sociais.
A OIT não tem poder de condenar um país, mas fazer recomendações. Caso recomende que o Brasil deve alterar algum ponto da reforma, juízes brasileiros podem utilizar a declaração para embasar sentenças na direção contrária à Reforma Trabalhista – uma vez que a convenções ratificadas tem força de lei. Pelo menos, até que o entendimento seja pacificado, provavelmente no Supremo Tribunal Federal.
Para tratar do assunto, o blog entrevistou Ronaldo Fleury, procurador-geral do Trabalho, que acompanhou os debates sobre o tema na Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra, na Suíça, na semana passada.
O chefe do Ministério Público do Trabalho criticou que associações empresariais estejam divulgando que a OIT chancelou qualquer coisa. ”Basta ler o que as conclusões para entender que o Comitê de Normas da OIT não decidiu nem que a reforma violou, nem que não violou a Convenção 98. Mas pediu mais informações para que possa decidir isso.” Na opinião dele, por ter sido aprovada sem diálogo social e por permitir negociações que piorem a vida do trabalhador, ignorando a lei, a Reforma Trabalhista desrespeita o documento ratificado pelo país.
Entendendo a disputa
Uma batalha sobre a Reforma Trabalhista tem sido travada, há mais de um ano, no âmbito da OIT. De um lado, sindicatos querem que a agência das Nações Unidas declare que a reforma fere a convenção porque teria sido aprovada sem a participação efetiva dos trabalhadores e por permitir que negociações entre patrões e empregados sejam colocadas acima do que prevê a lei – mesmo em prejuízo ao trabalhador. Do outro, governo, com apoio de empregadores, defende que a reforma não vai contra nenhum acordo internacional adotado pelo país e rechaça o que chamou de interferência com viés político.
A OIT é a única agência tripartite da ONU, na qual governos, empregadores e trabalhadores têm, em tese, o mesmo peso. Denúncias de descumprimento das convenções – que tratam de assuntos tão diferentes quanto a proibição do trabalho escravo (Convenções 29 e 105) quanto a consulta a comunidades tradicionais sobre impactos causados por grandes obras (Convenção 169) – podem ser feitas por qualquer um desses grupos à organização.
Um Comitê de Peritos, formado por reconhecidos especialistas de vários países, recebe as denúncias e analisa seu teor. As procedentes são colocadas em uma ”lista longa”. Daí, o Comitê de Aplicação de Normas cria, a partir dessa relação, uma ”lista curta” com casos que serão analisados por eles durante a Conferência Internacional do Trabalho, realizada, anualmente, entre os meses de maio e junho. Essas listas não significam condenações, mas apenas que o caso é cabível de ser discutido.
A Reforma Trabalhista entrou na ”lista curta” e foi debatida. Governo, trabalhadores e empregadores bateram boca em Genebra. O ministro do Trabalho, Helton Yomura, fez duras críticas aos peritos, dizendo que a OIT pode se tornar ”irrelevante”, e atacou sindicatos. Empregadores brasileiros apoiaram a posição do governo e sindicalistas, criticaram a reforma e o que chamaram de posição violenta do governo.
A decisão do Comitê de Aplicação de Normas é de que o governo brasileiro ”forneça informações e análises sobre a aplicação dos princípios da negociação coletiva livre e voluntária na nova Reforma Trabalhista” e ”forneça informações sobre as consultas tripartites com os parceiros sociais sobre a Reforma Trabalhista” até novembro deste ano. Dessa forma, o Comitê de Peritos irá analisa novamente o caso, tomar uma decisão e encaminhá-la ao Comitê de Normas par avaliação em junho de 2019.
Segue a entrevista com o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, realizada nesta segunda (11):
Há associações empresariais que estão divulgando que a decisão do Comitê de Normas significa que a OIT declarou que a Reforma Trabalhista não fere suas convenções. Isso procede?
Lembro que, no ano passado, quando o Brasil não havia sido incluído na ”lista longa”, governo e empresários alardearam que a OIT teria concordado com a Reforma Trabalhista, chancelado a proposta. O próprio relator, deputado Rogério Marinho, afirmou que a OIT ao não incluir o Brasil na ”lista longa”, teria chancelado a reforma – e vimos, depois, que isso não era verdade. Agora, o mesmo discurso de que OIT ao não recomendar expressamente a revogação da reforma, no que diz respeito ao negociado sobre o legislado, também teria concordado com ela. Basta ler o que as conclusões para entender que o Comitê de Normas da OIT não decidiu nem que a reforma violou, nem que não violou a Convenção 98. Mas pediu mais informações para que possa decidir isso, o que espero que aconteça em 2019.
O Comitê de Normas da OIT deu até novembro para que essa manifestação sobre mais informações. O que inclui não apenas o governo brasileiro, mas também empresários e sindicatos. O Brasil desrespeitou a Convenção 98 da OIT com a reforma?
Na opinião do Ministério Público do Trabalho, que é a minha também, a Reforma Trabalhista seja na falta de diálogo social prévio, seja na possibilidade de negociação para piorar o mínimo legal (o que chamamos de mínimo civilizatório), ofende a Convenção 98, que foi ratificada pelo Brasil. O Ministério Público do Trabalho expediu uma nota técnica tanto no momento em que foi apresentado o projeto de reforma quanto durante o processo de sanção da lei. Então, nós alertamos o Poder Legislativo e o presidente da República a cerca disso.
Essas manifestações serão colhidas pelo Comitê de Peritos que enviará sua posição ao Comitê de Normas, que, por sua vez, pode analisar o caso em junho de 2019. Essa demora de um ano não aumenta a incerteza sobre contratos de trabalho?
O governo brasileiro vai ter que prestar informações até novembro e o Comitê de Peritos vai fazer uma nova análise, somando-se as novas informações ao que já foi feito. Fatalmente, o Brasil vai estar na ”lista longa” da próxima Conferência Internacional do Trabalho. E muito provavelmente estará na ”lista curta”. E isso é algo que gera mais insegurança jurídica ainda, não só para os trabalhadores, mas também aos empregadores. Um dos motivos sempre alegados para fazer a Reforma Trabalhista era a insegurança jurídica. E, com esse posicionamento da Organização Internacional do Trabalho, que a reforma trouxe muito mais insegurança do que segurança jurídica.
Houve um duro debate na OIT sobre o caso, em que o governo brasileiro fez sérias acusações contra as Nações Unidas, questionando inclusive sua lisura e competência. O senhor acompanhou o caso?
Essas acusações feitas pelo governo brasileiro são extremamente sérias, graves, afirmando, inclusive, que os peritos da OIT teriam sido cooptados. E que estariam utilizando o seu poder para interferir em questões político-partidárias no Brasil. Essas são acusações muito sérias e o governo deveria ter apresentado elementos bastante fortes para subsidiar acusações desse tipo. Mas não mostrou nada, apenas a velha ladainha de que quem não concorda com a Reforma Trabalhista é porque é ”ideológico” e ”político-partidário”. E não por que tem uma visão técnica contrária. Na análise do Ministério Público do Trabalho, o Comité de Peritos foi extremamente técnico e sua avaliação não teve viés político.
Isso traz impactos negativos à imagem do país?
O governo brasileiro, ao fazer uma série de acusações graves no sentido de que sindicalistas não trabalhavam, chegou à gafe de citar Mussolini [ditador italiano, que teve papel-chave na ascensão do fascismo]. E não é de bom tom, na Europa, citar nem Mussolini, nem Hitler, para justificar qualquer coisa. Misteriosamente essa citação de Mussolini, junto com uma série de acusações, sumiram dos anais oficiais da Organização Internacional do Trabalho. No discurso entregue pelo governo brasileiro, isso não aparece. Menos mal para o Brasil.
Do meu ponto de vista particular, a visão de um técnico do direito e não de alguém que exerce diplomacia e negociação internacional, lamento profundamente o posicionamento do governo brasileiro que deixou de lado os argumentos técnicos, deixou de lado sua explicação do porquê da reforma, do por que ela seria boa e correta, para simplesmente fazer ataques desprovidos de qualquer senso jurídico e eu diria até irresponsáveis.
Reformas que reduzem a proteção à saúde e segurança dos trabalhadores em nome do crescimento econômico estão em andamento em outros países. Como o senhor vê a acusação de setores empresariais de que a OIT ”protege” o empresário europeu e ”pune” o brasileiro ao analisar esta e não as outras reformas?
As reformas feitas em vários países de fato agravaram – e muito – a situação. O exemplo típico é a reforma que inspirou a nossa, a espanhola, que está trazendo prejuízos gravíssimos. A ponto do novo primeiro-ministro espanhol deixar claro, em recente entrevista, que revogará a reforma. E o presidente do Banco Central Europeu ter afirmado que a Espanha é o país que mais está tendo dificuldades para sair da crise em razão do excesso de flexibilização das leis trabalhistas. Esse excesso, que houve na reforma espanhola e na nossa, mas também na mexicana, entre outras, traz consequências à saúde do trabalhador e até risco de morte. Um exemplo gritante disso é um dos dispositivos da nossa reforma que tentar ”reformar a natureza” ao afirmar que jornada de trabalho não tem nada a ver com saúde e segurança do trabalhador. É um dispositivo visível e bizarro. E que tem sido amplamente condenado por todos que têm um mínimo de senso de humanidade.
Não tenho conhecimento de proteção ou diferenciação dos países europeus em detrimento aos países da América do Sul. É outra acusação feita sem apresentar base prática. Talvez se os empresários demonstrassem em números as violações que não são analisadas pela OIT ficaria mais fácil entender esse argumento. O fato é que, na média, os países europeus contam com respeito maior à humanidade do trabalhador. Outros países do mundo discutem redução de jornada, como a Austrália, situação muito diferente da do nosso país, que agora permite jornadas de 12 horas. Ou no caso de ”pejotização” [os críticos à reforma afirmam que ela facilitou a fraude da contratação de empregados como empresas individuais para cortar custos], de jornadas ilimitadas e sem qualquer piso salarial, podendo ganhar até menos do que o salário mínimo.
Então são situações bem diferentes que estão sendo comparadas para tentar justificar a nossa reforma. Gostaria de ver nossos empresários e nosso governo contestando o posicionamento técnico.
—
Imagem: O procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury. Foto: Geraldo Magela/Agência Senado