Para Combate Racismo Ambiental
As comunidades Remanescentes de Quilombos em todo Brasil experimentam, na pele, há incontáveis séculos, o peso da humilhação, quer de raiz material quer cultural, que lhe é imposta pela elite perversa do país.
Desde os primórdios do ciclo de acumulação primitiva de capital, para o qual o agente escravizado, seja africano ou indígena, ressumou como principal instrumento e vítima, seja pela marginalização posterior ao início do processo de industrialização e urbanização do país, essas comunidades – assim como todas as comunidades tradicionais deste rincão – conhecem bem os severos efeitos de todo esse processo de inauguração e desenvolvimento do capitalismo tardio e dependente, estruturado na exclusão e humilhação desses vastos estratos sociais.
Aprenderam a conviver com um mais recente fator de agudização dos processos de criminalização contra si instaurados pelas instituições jungidas ao chamado “sistema de justiça”, que corporificou-se, ao longo do século XX e início do XXI na criação, sempre pela lógica hegemônica da ideologia da “natureza intocada”, de unidades de conservação de proteção integral, como parques estaduais e nacionais, a restringir, ainda mais, os limitados modos de reprodução cultural e material dessas comunidades, cujos territórios ancestrais são sobrepostos por tais parques, adensando o caminho de sua dissolução social.
Mas, de qualquer forma, ainda que através do concurso de pouquíssimos parceiros institucionais, capazes de lhes disponibilizar alguma espécie de mecanismo de luta e respeito por sua cosmovisão atrelada aos valores libertários do etnodesenvolvimento, as Comunidades Quilombolas – herdeiras de ampla reivindicação em face da injustiça histórica que marcou sua ascendência – ainda alimentavam laivos de crença de que, pelas ferramentas jurídicas enfeixadas em um utópico Estado Democrático de Direito, tivessem alguma chance de fazer com que seus direitos fundamentais ao desenvolvimento em bases etnoterritoriais autônomas pudessem, um dia, enfim, serem efetivados, e que, como agrupamentos humanos especiais, fossem portadores do direito basilar ao respeito por suas origens étnicas.
Mas a decisão, simbólica e desastrosa, do dia 11.09.2018, proferida pela 1ª turma do Supremo Tribunal Federal, livrando o candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro, de qualquer responsabilidade criminal por racismo dardejado especificamente contra tais comunidades, sepultou, de vez, qualquer possível crença na relevância do direito face a esses agrupamentos tão fundamentais para a conformação do Brasil enquanto nação.
Jair Bolsonaro, indisfarçado representante de uma triste mas lamentavelmente significativa fração social que viceja no lodo do fascismo mais desabrido deste conturbado país, em uma “conferência” proferida no Clube Hebraica do Rio de Janeiro em abril de 2017, enunciou, dentre outras ofensas às comunidades afrodescendentes que “(…)eu fui em um quilombo em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem. Mais de um bilhão de reais por ano gastado (sic) com eles”.
Esse, um resumo da ignominia massivamente reproduzida acerca do discurso preconceituoso, e portanto de ódio, proferido por esse personagem que, na atualidade, potencializa-se, diante do avantajado processo político onde a indigência cultural campeia errante, com reais possibilidades de ser içado, pelo voto popular, ao cargo de presidente da República.
Esse fator – reais possibilidades de ascensão do fascismo a cargo dessa envergadura – é o viés que realça com mais vigor a gravidade das ofensas raciais que serviram como objeto ao referido julgamento.
Em resumo, por três votos a dois, a maioria dos ministros da Corte Suprema isentaram o candidato ultradireitista de qualquer risco de subordinação à necessária e educativa responsabilização criminal, ao entoarem o mantra que susteve seus votos, fincados no discurso vazio de que a propagação, pelo acusado, das ofensas acima demarcadas – e que, por notório, são constantes na exposição pública da retórica de ódio a minorias repetidamente proferida pelo aludido presidenciável – não extrapolaria os limites da “liberdade de opinião, palavra e votos inerentes ao cargo de parlamentar” de que Bolsonaro é titular.
Em um contexto de sinistro crescimento de sentimentos de repulsas contra minorias e frações sociais vulnerabilizadas pelas desigualdades intrínsecas ao capitalismo inane implantado, desde sempre, no país, igualar a manifestação impregnada de preconceito que conduz e alimenta a jornada política desastrosa de Bolsonaro ao exercício do direito de “liberdade de expressão”, equivale à afixação do último prego no caixão de qualquer laivo de credibilidade que as massas populares possam direcionar às instituições ligadas ao “sistema de justiça”. Não à toa que a imagem do Judiciário e outras instituições congêneres, em pesquisas recentes, esteja afundada no volume morto da descrença popular.
*Wagner Giron de La Torre, é Defensor Público no Estado de São Paulo, atuando na orientação e defesa jurídica de várias Comunidades Quilombolas no Litoral Norte de SP.
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Foto: Daniel Ferreira /Metrópoles