Andrew Toshio Hayama: “Unidades de conservação em territórios quilombolas: Conflitos socioambientais e atuação da defensoria pública”

Tania Pacheco

Faz pouco mais de um mês, registramos com alegria neste blog o lançamento de um livro que com certeza se transformará numa das referências para quem defende os direitos dos povos indígenas em nosso País –  Direitos territoriais indígenas: uma interpretação intercultural, de Júlio José Araujo Junior. Hoje, com igual prazer, anunciamos outro lançamento, desta vez tendo como tema os direitos dos quilombolas – Unidades de conservação em territórios quilombolas: Conflitos socioambientais e atuação da defensoria pública, de Andrew Toshio Hayama, já em pré-venda no link.

Se no primeiro caso o autor é um procurador da República ligado à 6ª Câmara do MPF, neste segundo temos um Defensor Público. Nos dois, pessoas cuja atuação este blog acompanha há anos, com igual respeito e admiração. Basta, aliás, jogar seus nomes no nosso mecanismo de busca para facilmente localizar inúmeras notícias nas quais eles aparecem, em diferentes ações e lugares, mas sempre dignamente defendendo a Constituição, a justiça e os direitos.  Sempre honrando de forma exemplar o que deveria ser a atuação do Ministério e da Defensoria Públicos.

No “Prefácio” que postamos abaixo, Carlos Marés fala exatamente sobre a complementaridade das atuações desses dois organismos. No livro, Toshio com certeza vai muito além, colocando a questão no seu devido contexto já a partir do título: ao contrário do que dizem, escrevem, defendem e até julgam muitos, não são os territórios quilombolas centenários que caem de repente sobre as recentíssimas unidades de conservação.

Não tenho dúvidas de que, nestes tempos nauseantes que vivemos, a obra nos traz mais um pouco de alento, de garra e de luz!

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PREFÁCIO: Os direitos e as garantias dos direitos

Por Carlos Marés

No processo constituinte, em 1988, os povos indígenas mantiveram uma mobilização constante pelos seus direitos. Além de reivindicar direitos originários sobre as terras e os direitos de existir enquanto povo, coletivo, mantendo a organização social, cultura e modos de vida, entenderam que era necessário se preocupar com as formas de fazer reconhecer estes direitos frente a um Estado que se fundamenta em regras de papel e altamente judicializado. Por isso insistiram num artigo 231, que garante e descreve os direitos, e num artigo 232, que reconhece legitimidades processuais para defendê-los em Juízo.

Surgiu uma grande dúvida no movimento indígena e seus apoiadores. Apesar das legitimidades do artigo 232, como fariam os povos mais isolados para defender em juízo seus direitos se mesmo legitimados teriam que ser representados por advogados contratados? As dificuldades seriam imensas mesmo que houvesse, como de fato havia e sempre os haverá, advogados dispostos a trabalhar pro Bono que conseguem meios para deslocamento, etc. É que a simples assinatura de uma procuração torna intransponível o acesso ao Judiciário, sem falar na deficiente boa vontade de interpretar quem pode representar legitimamente esses direitos apesar da abertura da regra estabelecida no artigo 232: “os índios, suas comunidades e organização são partes legítimas…”

Quem poderia, então, representar, como advogado sem procuração, esses direitos? Qual seria o porto seguro para os movimentos indígenas, comunidades, povos e indivíduos chegarem às portas nem sempre abertas do distante e necessário Judiciário? A resposta surgiu mais ou menos pronta da boca dos assessores e rapidamente assumida e defendida pelos movimentos: o Ministério Público Federal. Não foi difícil convencer a forte representação do Parquet que atuava já em defesa destes direitos e assim logo se fixou o disposto no artigo 129 entre as funções institucionais do Ministério Público “defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas”. Estava resolvida a questão, sem papéis, sem burocracias, sem surpresas, os legitimados “índios, suas comunidades e organizações” poderiam superar a reserva funcional de somente ingressar em juízo por meio de advogados.

Depois da Constituição, outros povos, animados pelo reconhecimento de direitos, começam a sair da invisibilidade a que estavam submetidos e que muitas vezes se submetiam para proteção e garantia de existência. As razões da saída da invisibilidade provavelmente não se deram por que entenderam que a garantia de direitos era melhor do que o isolamento em que se encontravam. Mas exatamente pelo contrário, estavam sendo descobertos pelo impiedoso avanço da fronteira agrícola que na maior parte das vezes não chega pelos tratores que rasgam a terra e semeiam grãos, mas por tratores de esteira que devastam as florestas, as transformam em pastos ou constroem represas enormes alagando a vida das comunidades e povos que estavam muito bem, sem fome e felizes, em lugares de difícil acesso. Estes povos não eram, necessariamente, indígenas. Eram quilombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos, beiradeiros, seringueiros, castanheiros, babaçueiros, geraizeiros, faxinalenses, fundos de pastos e quantos outros coletivos que se formam e formaram para defender o modo de vida, a tradição, os usos e costumes que garantem a vida sem fome e sem luxo que é capaz de manter o sorriso quase permanente nos lábios e um sono sem medo apesar dos ruídos e ameaças da natureza amiga, próxima e aliada.

O avanço da maldade, porém, contra os escondidos, invisíveis, silenciosos, também se deu com um discurso aparentemente do bem, com o nome de preservação, conservação ou proteção da natureza. Poderia ser só uma ironia, mas com a destruição da natureza organizada pela agricultura movida a combustíveis fósseis, químicos venenosos e sementes inventadas, rapidamente não sobrou mais nada de natureza e a Lei teve que intervir para salvar o muito pouco que restava. E o que restava eram as terras manejadas tradicionalmente pelos invisíveis, de difícil acesso, e, então, os destruidores acharam que os cuidadores não poderiam ficar ali. O risco de aprenderem a destruir com os vizinhos era grande demais! Teriam que ser expulsos para as terras devastadas, de preferência como obreros, já que não sabiam dirigir grandes tratores nem manejar venenos, a favela era seu destino.

O estabelecimento desse conflito socioambiental então se deu. Os invisíveis, porém, tinham direitos e logo, ao serem visibilizados pela alça de mira da destruição, tiveram que aparecer, confessar sua vida coletiva e irmanada com a natureza, tiveram que mostrar sua cara quilombola, ribeirinha, camponesa, pescadora, caiçara. E quem os defenderia se na Constituição só se havia falado de defesa de indígenas? Os dois lados do Direito se apresentavam mais uma vez. Na Constituição, Leis e Tratados Internacionais estavam os direitos chamados de substantivos, materiais, quer dizer, garantem que estes povos têm direito à vida e ao território; mas a forma de sua realização, o formal, adjetivo, processual, aquele que obriga o Estado e particulares por decisões judiciais que dizem o direito, ficaria por conta de um sistema elitista, inatingível, negador.

É aí, nesse momento, que aparece a Defensoria Pública que estava anunciada na Constituição para todos os que não conseguem atingir o intangível Judiciário, mas ainda não estava nem construída, nem pronta para agir, por isso os indígenas insistiram no Ministério Público e, por um lapso, os outros povos ficaram sem a proteção. É verdade que o Ministério Público pode agir em defesa destes povos ainda sem a expressa referência constitucional, mas é verdade também que a Defensoria Pública se parece mais com escritórios de advocacia, independente, ágil, atuante. E, para sorte destes povos, além de contar com os pro bono, que sempre existirão, e seus advogados “tribais”, que estão se formando, podem agora contar com as Defensorias Públicas.

Este livro trata destes conflitos socioambientais e de como a Defensoria Pública agiu para tentar resolvê-los. Bem escrito e estruturado, o autor é um Defensor Público, Mestre em Direito Socioambiental, protetor dos povos e da natureza. Vale a pena lê-lo!

Comments (1)

  1. Poxa, emocionado de ler seu texto! Que a obra siga seu curso de instrumento de luta dos Povos e Comunidades tradicionais em face do racismo ambiental e da violação de direitos fundamentais em nome da “conservação”!

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