Tupi, or not tupi that is the question. Por Nurit Bensusan

“Depois que os brancos chegaram a minha aldeia se acabou. Agora vou para a cidade, pacificar os brancos”, Cacique de Marabá, personagem do filme Bye bye Brasil

No ISA 

O Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade é composto de 51 aforismos, que poderiam ser distribuídos nos 52 anos que separam sua publicação do lançamento do filme Bye bye Brasil, de Cacá Diegues, em 1980. Assim, de aforismo em aforismo, desembocaríamos na obra cinematográfica, na tentativa de entender de que país parece que desistimos. O Manifesto de Oswald de Andrade pregava a originalidade possível do Brasil, a ideia de que outro caminho poderia ser trilhado, numa amálgama resultante de “desvespuciar e descolombizar a América e descabralizar o Brasil”, mas absorvendo a técnica, de modo a saltar do passado para o futuro, despindo-nos de um presente colonizado.

“Será esse o Brasileiro do século XXI?”, pergunta Oswald de Andrade, contemplando as possibilidades desse futuro antropófago, indagação ecoada na dedicatória do filme – “ao povo brasileiro do século XXI”. Mas quem é esse brasileiro do século XXI, a quem ambos se referem? Vale, ainda acrescentar a essa mistura, antes de acionar o liquidificador e ver resultado, alguns versos do poema Hino Nacional de Carlos Drummond de Andrade, de 1934: “Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”

Ou talvez, antes ainda de apertar esse botão do liquidificador, deveríamos nos debruçar sobre a questão que o pensador indígena Aílton Krenak apresenta em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”: se somos mesmo uma humanidade, uma vez que estamos nos descolando da Terra e que “os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. Esta é a sub-humanidade: caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes. Existe, então, uma humanidade que integra um clube seleto, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais rústica e orgânica, uma sub-humanidade, que fica agarrada na terra.”

Sub-brasileiros e pós-brasileiros

Será que, ao batermos tudo isso no liquidificador, teremos uma resposta única? Ou será que os brasileiros não existem, há apenas sub-brasileiros e pós-brasileiros?

Aqueles que eram a esperança do novo, aqueles que poderiam oferecer, de fato, outra forma de ver o mundo, que recusaram o projeto colonial e resistiram por centenas de anos, se consolidaram no alvorecer deste novo milênio, quase 100 anos após o Manifesto Antropófago e 40 anos depois do lançamento do Bye bye Brasil, como sub-brasileiros.

O país que emergiu depois de colocar a Amazônia em seu mapa – mas ainda não em seu imaginário, onde ela só ocupará o lugar de lenda – não tem lugar para a diversidade, não tem espaço para outras formas de viver. Os pós-brasileiros, por outro lado, são aqueles que, sem nunca conhecer o Brasil, espetados com suas ilusões no litoral, de costas para a floresta, para o Cerrado e para o sertão, decidem que o Brasil antropófago, o Brasil indígena, o Brasil africano, o Brasil biodiverso e o Brasil criativo já ficaram no passado e que agora somos cristãos, conservadores, monocultores, cinzas, sem graça, nem charme.

A relação entre o Brasil – ou um brasil – e os povos indígenas que vivem aqui emerge como uma questão ainda candente, tanto no Manifesto de Oswald de Andrade, cujo tom é dado por seu terceiro aforismo (“Tupi, or not tupi that is the question”), quanto no encontro dos artistas da Caravana Rolidei com índios que seguem para a cidade, na rodovia Transamazônica, em Bye Bye Brasil.

Poucos anos depois do lançamento do filme e exatos 60 anos após o Manifesto Antropófago, em 1988 uma nova Constituição inaugurou o que parecia ser uma nova forma de lidar com essa questão: reconhecer os direitos territoriais dos povos indígenas como direitos originários, existentes independentemente de qualquer outra legislação, a partir da crença que o país poderia abrigar uma diversidade de formas de estar no mundo, desde índios isolados até índios médicos, professores e advogados, que não por isso deixam de ser índios. A ideia de adeus a um país que desaparecia e uma saudação a um Brasil novo que emergia pareceu, brevemente, fazer sentido. O brasileiro do século XXI poderia, enfim, existir.

O projeto do pós-Brasil

Não tardou, porém, que o projeto do pós-Brasil reagisse: por que conservar florestas se elas podem virar pasto para os bois e ração para porcos chineses? Por que tantas terras para povos indígenas, se podemos usá-las para produzir mais bois e mais ração para porcos chineses? Emergiu o mais cruel do argumentos, o do “marco temporal”. A ideia é que o direito aos territórios indígenas só valeria para quem estivesse em suas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Mas e se muitos tivessem sido expulsos por meio de inúmeras e inenarráveis violências de suas terras e ali não se encontrassem, por razões óbvias, nessa ocasião? Esses, então, perdem seu direito ao território.

O pós-Brasil deseja mais que isso: eliminar qualquer possibilidade de existir diversidade. É um projeto em todas as dimensões, porque não admite diversidade de formas de estar no mundo, boicotando, ameaçando e amputando os direitos dos povos indígenas e outras comunidades locais e colocando suas vidas em risco cotidianamente; não admite diversidade de paisagens, trocando florestas, áreas úmidas, cerrados e sertões por monoculturas que não alimentam nem a alma, nem o corpo; não admite diversidade de pensamento, empurrando todos para uma forma monotônica de existir; não admite, enfim, que embaixo desse parangolé colorido que é o Brasil deveriam existir vários brasis, convivendo harmonicamente.

Assim, nada de brasileiros do século XXI. Não somos brasileiros, não há Brasil. Um nome em um mapa não faz um país, pode designar apenas um monte de ruínas. Bye bye Brasil.

Imagem: Oswald de Andrade, em 1920 | Domínio público / Wikipedia

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