Indígenas de recente contato do Vale do Javari são contaminados pela Covid-19

Por Steffanie Schmidt, no Amazônia Real

Manaus (AM)  Os Tson wük Dyapah, povo de recente contato que habita a Terra Indígena Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas, foram contaminados pelo novo coronavírus. Um adulto e duas crianças da etnia testaram positivo para a Covid-19, de acordo com informações da Associação Kanamari do Vale do Javari (Akavaja) e da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). É um número preocupante, já que eles somam apenas 46 pessoas, o que significa que 6,5% da população dos Tson wük Dyapah foi contaminada nos últimos dias.

Sem comunicação, as organizações indígenas demoram dias para confirmar número de doentes e problemas como falta de medicamentos e de assistência médica. A aldeia Jarinal, onde os Tson wük Dyapah vivem junto com uma comunidade de indígenas Kanamari (autodenominados Tüküna), está localizada às margens do rio Jutaí, na parte sul do Vale do Javari.

A liderança Kora Kanamari alertou para a condição de extrema vulnerabilidade do povo Tson wük Dyapah e para os riscos de a doença infectar mais pessoas da etnia. Segundo ele, o atual grupo de 46 pessoas é o “que restou” da época em que o povo foi impactado por atividades da Petrobras, na década de 80, na área do rio São José, território tradicional dos Tson wük Dyapah. Anos depois, eles foram obrigados a abandonar o local e passaram a morar em Jarinal, com os Kanamari. Os Tson wük Dyapah têm pouco mais de 40 anos de contato.

“Os Tson wük Dyapah precisam ser olhados com mais atenção. Eles são muito poucos. É preciso salvar os 46 que sobreviveram. São pessoas especiais, diferentes. Eles vivem com os parentes Kanamari na aldeia Jarinal, mas são diferentes até nas características físicas de nós; até na fala”, disse ele à Amazônia Real.

Nesta mesma região do Vale do Javari, há também grande concentração de diferentes grupos de indígenas isolados, segundo a Funai, motivo de preocupação e denúncia feita por organizações representativas dos indígenas locais.

“O primeiro caso de contaminação foi confirmado pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e expõe o quão despreparado está o governo para lidar com essa pandemia em nosso território. Também é nessa mesma região que estamos denunciando há cinco meses a volta de balsas garimpeiras ilegais na área de ocupação dos índios isolados Korubo e Warikama Dyapah”, afirma nota assinada por Univaja e Akavaja no dia 22 de outubro.

“A aldeia Jarinal não tem médico, só tem enfermeiro e técnico. O meu receio é que venha ocasionar um surto naquela região uma vez que quando o distrito (Distrito Sanitário Especial Indígena) fala que tem um, a aldeia toda já está infectada. Foi assim com as demais”, afirmou o presidente da Akavaja à Amazônia Real, Higson Dias Kanamari.

“Mesmo no silêncio, a doença se alastra no Vale do Javari. Há uma negação de todos os casos aqui por parte da Sesai. O Dsei diz um número, mas os casos são mais de 10 vezes o que está no boletim. A nossa maior preocupação é com os Tson wük Dyapah. Jarinal é uma das aldeias mais distantes. Há ausência total do poder público”, disse Kora Kanamari.

A TI Vale do Javari está na jurisdição de quatro municípios do Amazonas: Atalaia do Norte, onde fica a maior área, Benjamim Constant, Jutaí, São Paulo de Olivença, localizados no Alto Rio Solimões. O município mais próximo de Jarinal, no entanto, é Eirunepé, que fica a 40 minutos por helicóptero da sede. Para se ter uma ideia da distância, a pé, o trajeto é de 25 quilômetros do município até o início do rio Jutaí. Mas o principal meio de locomoção entre a aldeia e a sede do município de Eirupené é via fluvial. De barco, são mais de três dias de viagem, segundo informações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que realizou uma expedição em outubro de 2018, junto à Funai e um grupo de 17 Kanamari para fazer o registro da localização da aldeia.  

O documento das organizações aponta ainda “a negligência do governo federal” diante das denúncias feitas em junho de 2019 a respeito da presença de pelo menos cinco dragas para extração de minério dentro da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Cujubim, no limite da terra indígena a sudoeste, na bacia do rio Jutaí, afluente da margem direita do rio Solimões. A irregularidade dentro da RDS é preocupante uma vez que ao norte, o Vale do Javari faz fronteira com outro território, a Terra Indígena do Biá. Até o momento, de acordo com a nota das organizações indígenas, nenhuma providência foi tomada.  

No boletim da Sesai divulgado ontem (28), o Dsei Vale do Javari registra 686 casos confirmados de Covid-19 no território, mas não especifica os povos infectados. Já em um boletim interno do Dsei da data do dia 27 que a Amazônia Real teve acesso diz que são 682 casos de Covid-19 no território. Destes, 218 são na região do rio Jaquirana, onde estão localizadas as aldeias do povo Mayoruna (autodenominados Matsés). O boletim interno do Dsei Vale do Javari menciona diferentes calhas de rio, mas não traz registro de casos de Covid-19 no rio Jutaí, onde está a aldeia Jarinal.

Procurada, a Sesai enviou uma nota institucional falando sobre ações sanitárias e de saúde que realiza junto aos povos indígenas no combate à pandemia, mas não faz referência à situação da Terra Indígena Vale do Javari nem aos Tson wük Dyapah. A reportagem entrou também em contato com a Funai, mas não obteve resposta.

Liderança relata falta de apoio

A população do Vale do Javari é de 6 mil indígenas dos povos Kanamari, Marubo, Matís, Mayoruna, Kulina Pano, Tson wük Dyapah, além de um pequeno grupo de Korubo contatado. Nessa contagem, não estão incluídos os grupos de indígenas em isolamento. Deste modo, 11% da população da área indígena foi infectada pelo vírus, sendo que 34 estão ativos. Até o momento, a Sesai contabilizou duas mortes, mas a Univaja afirmou à Amazônia Real que foram perdidas quatro vidas indígenas: dois Marubo, um Kanamari e um Mayoruna.  

“Não sabemos como foi que chegou até Jarinal. Nesta região também tem a presença de garimpeiros, então a situação é bem preocupante. A maioria das aldeias já foi contaminada”, afirmou o coordenador geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Paulo Kenampa Marubo.

“Como associação, já vínhamos comunicando à Funai há quase quatro meses que os Tson wük Dyapah e os Warikamã Djapa (isolados) estavam necessitando de insumos para fazer seu apoio alimentício. A Funai nunca deu importância aos índios isolados e de recente contato”, denunciou à reportagem, Higson Kanamari.

Os Tson wük Dyapah (a pronúncia aproximada é Tsohom Djapá, cuja grafia também é utilizada) é da família linguística Katukina. Nos estudos existentes sobre eles, o significado do nome é “povo-tucano”, cuja designação é considerada típica dos subgrupos Kanamari, segundo informações do Instituto Socioambiental (ISA).

Já os Warikama Djapa são estimados em 200, segundo o Cimi. Na área indígena Vale do Javari, a Funai lista ao menos 20 povos isolados e 7 já contatados. A falta de suporte para que se mantivessem isolados gerou ao menos duas saídas recentes da aldeia Jarinal. 

“Eles nos comunicaram que iriam para Eirunepé no mês passado. Este mês eles saíram outra vez, duas canoas chegaram de lá. Ainda não sabemos se essa foi a causa da infecção”, relata Higson Kanamari.  

Ele ressalta que foi feito um comunicado, na época, à Coordenação Regional da Funai Vale do Javari, mas não houve providências. “Isso mostra mais uma vez a grande fragilidade que o Estado tem com os povos indígenas no Vale do Javari e no Brasil como um todo. A nossa grande preocupação é como esse povo todo vai ficar?”

A Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari, braço da Funai responsável pelos índios isolados e de recente contato, ainda não retornou ao pedido de informações da Akavaja. A reportagem apurou junto ao Cimi que há apenas três funcionários em atuação na CR Funai Vale do Javari, sendo um pertencente a essa frente. A TI possui mais de 8 milhões de hectares e é considerada uma das maiores áreas demarcadas no País.

Mulheres Kanamari da aldeia Jarinal (Foto: Francisco Loebens /CIMI)

Aldeias vivem sem assistência médica

Na aldeia São Luís, no Médio Rio Javari, e onde também vivem indígenas Kanamari, uma das que registrou maior número de contaminações pelo novo coronavírus, não há registro da presença de médicos e novos casos aparecem diariamente. De acordo com o Higson Kanamari, só tem um enfermeiro e um microscopista.

“Eles falam que é a equipe de resposta rápida. Não existe no mundo Kanamari uma equipe completa com médicos, técnicos, enfermeiros. Não há medicamento também. Estão precisando azitromicina, pediram para que a associação comprasse. Mas comprar com o quê? O Dsei fala que tem tudo, eu ouvi do próprio coordenador que ia ‘subir’ medicação para apoio para as pessoas que tinham se infectado, mas nada aconteceu. Estão tomando remédio caseiro”, afirmou o presidente da Akavaja.

Higson Kanamari teme pelas consequências que o coronavírus pode deixar, com imunidade dos povos indígenas enfraquecida. Há um histórico de doenças como tuberculose, HIV e gripes nessa etnia.

“Aí que é perigoso vir a óbito. No caso dos Tsonwük Dyapah, eles são um povo de recente contato, eles mesmo ameaçam a tirar a própria vida. É muito complicado que o Estado não tenha esse conhecimento de como é o comportamento de nosso povo”, explica o líder da Associação Kanamari.

Na nota divulgada na semana passada, Univaja e Akavaja exigem ação “rápida e organizada para conter o surto e isolar os doentes para tratamento”, além do cumprimento da decisão do STF (ADPF 709) que determinou a criação de barreiras sanitárias nas terras indígenas com a presença desses povos e a criação da Sala de Situação para deliberações das estratégias e ações para proteção dos índios isolados e dos de recente contato. Em setembro, o ministro do STF Luis Roberto Barroso determinou a aceleração do plano formulado pelo governo federal que previa a instalação de algumas barreiras somente em dezembro.  “Enquanto se dialoga no papel, o coronavírus vai fazendo mais vítimas em nosso território”, finaliza o documento.

De acordo com Paulo Marubo, da Univaja, toda ajuda recebida até o momento, como kits agrícolas e tubos de oxigênio para os oito polos base de saúde, foi conseguida por meio de parceiros, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e Organizações Não Governamentais (ONGs). “Esse material hospitalar que a gente adquiriu foi entregue para Sesai. Estamos atuando em parceria com os órgãos federais e as instituições não governamentais, já que para adquirir esse material é mais difícil via serviço público por conta da burocracia”, explicou.

Comunicação precária

A história dos povos da TI Vale do Javari é marcada por enfrentamentos, extermínio, negligência e violência. A chegada da Covid-19 apenas realça a situação de abandono dos povos da região. As ameaças de garimpeiros, ocupações da área indígena e de ataques a bases de proteção vêm sendo noticiados há anos pela imprensa nacional e internacional. Na aldeia Jarinal, o único telefone público, um antigo orelhão, parou de funcionar há menos de um mês. Já a comunicação via rádio, embora existam equipamentos nas 56 comunidades da TI, segundo dados da Univaja, não funcionam com regularidade.  

“Tenho pressentimento de que há um bloqueio desse sinal. Quando o Vale do Javari foi infectado, no início, todos os telefones pararam de funcionar por mais de uma semana e somos muito frágeis em questão de comunicação via rádio. Você instala hoje, a comunicação é boa e em dois dias a transmissão começa a falhar”, afirma Higson Kanamari.

“Quando estivemos lá em outubro de 2018, encontramos muitas placas com os dizeres ‘esta terra pertence ao Fulano de tal’. Não creio que sejam posseiros, não tem nenhuma habitação, acampamento no local, essa é uma característica de latifundiários”, denuncia Rosenilda Nunes Padilha, membro do Cimi Amazônia Ocidental.  

Três meses depois, segundo ela, houve denúncia do cacique sobre a presença de garimpeiros que haviam feito a proposta de construir casas e promover melhorias de estrutura física para que pudessem permanecer no local.  

Em novembro de 2019, a Justiça Federal deferiu a requisição do Ministério Público Federal (MPF) de apoio da Polícia Federal, do Exército Brasileiro, da Polícia Militar e da Força Nacional de Segurança para garantir a integridade física e moral dos povos na área indígena Vale do Javari e dos servidores da Funai. O objetivo era a fiscalização da presença ilegal de estrangeiros em áreas indígenas.

Na decisão, consta também a determinação à União para a alocação de recursos materiais e orçamentários para o apoio operacional às entradas em campo das equipes da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari, alocadas em quatro polos, por, no mínimo, seis meses, sob a preocupação de evitar potencial genocídio dos povos do Vale do Javari.

Em agosto, a visita do coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato, o missionário e antropólogo Ricardo Lopes Dias, nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro, provocou reação das entidades indígenas. O fato gerou recomendação do MPF de abstenção de entrada de qualquer comitiva ou servidor na Terra Indígena Vale do Javari sem o cumprimento de quarentena. (Colaborou Elaíze Farias)


Esta reportagem é apoiada pela Open Society Foundations dentro do projeto “Marcas da Covid-19 na Amazônia”

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

doze − 4 =