Justiça Federal confirma território quilombola no Sapê do Norte

TRF2 anulou sentença anterior emitida em favor de fazendeiro que alega ser proprietário da área, em São Mateus

Por Fernanda Couzemenco, no Século Diário

O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) reconheceu a legitimidade do processo de delimitação e identificação do território pertencente às comunidades quilombolas de Serraria e São Cristóvão, localizadas em São Mateus, norte do Estado, e pertencentes ao Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, que abrange também o município de Conceição da Barra.Atendendo ao recurso impetrado pelo Ministério Público Federal (MPF) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a decisão do Tribunal anulou a sentença emitida em primeira instância em favor de um fazendeiro que alegava ser proprietário da área.

O Acórdão reconheceu a regularidade e a constitucionalidade do processo de demarcação realizado pelo Incra em São Mateus e julgou completamente improcedentes os pedidos do demandante, condenando-o a pagar os honorários advocatícios em favor da autarquia federal. Não cabem mais recursos contra a decisão.

A delimitação da área foi iniciada a partir da autodeclaração das comunidades de Serraria e São Cristóvão, dando origem ao processo administrativo nº 5430.000582/2005-15, que buscou a identificação e elaboração de estudos técnicos transdisciplinares sobre o território quilombola.

Já o processo judicial – número 0000023-07.2012.4.02.5052 – teve o seu início no ano de 2012, quando o fazendeiro Edis Bonomo alegou ser o proprietário legítimo de parte das terras demarcadas pelo Incra e questionou o relatório técnico elaborado pela autarquia e a constitucionalidade do procedimento administrativo de demarcação.

Inicialmente, a Justiça Federal de São Mateus acolheu o pedido do autor, mas o MPF e o Incra recorreram da decisão, por reconhecerem se tratar de tema constitucional que possui aplicabilidade imediata, ou seja, que a Constituição Federal definiu a titularidade de terras quilombolas de forma clara e autoaplicável, preservando assim a cultura negra quilombola, patrimônio cultural brasileiro.

Foi demonstrado pelo MPF, também, que o procedimento da autarquia respeitou o contraditório e a ampla defesa, e delimitou corretamente a dimensão do território quilombola com base nos estudos antropológicos e na necessidade de garantia da reprodução física, social e cultural do grupo.

As comunidades quilombolas, de acordo com o Decreto Presidencial nº 4.887/2003, são grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. A própria Constituição Federal reconheceu a titularidade das terras ocupadas por remanescentes quilombolas no Artigo 68 ADCT, cabendo ao Incra demarcar essas terras e emitir os títulos.

Reunificação

Coordenadora nacional da Coordenação das Comunidades Quilombolas do Espírito Santo “Zacimba Gaba” (Conaq/ES), Katia Penha comemora a decisão final da Justiça Federal, que em uma situação infelizmente rara no país, não cedeu à pressão do agronegócio.

“É uma vitória muito importante, principalmente diante do descaso do governo Jair Bolsonaro, onde a política agrária do Incra foi colocada em xeque. Faz a gente acreditar que é possível continuar a luta pela terra, que é uma luta constante, diária”, declara. Agora, explica, cabe ao Incra encaminhar administrativamente o processo de titulação, em diálogo com a comunidade. “Depois de mais de dez anos de processo paralisado, a comunidade pode unificar a luta novamente”, celebra.

O Sapê do Norte tem outras dezenas de comunidades quilombolas reconhecidas e certificadas pela Fundação Cultural Palmares, do governo federal, e que aguardam a conclusão do processo de titulação de seu território tradicional.

Os processos judiciais que emperram a titulação são movidos, via de regra, por fazendeiros do agronegócio ou pela Suzano (ex-Fibria, ex-Aracruz Celulose), que, há décadas, praticam uso do solo degradante, com monocultivos de eucaliptos, cana-de-açúcar e pasto, impondo às comunidades um processo de degradação social, por meio de cooptações de lideranças e violências diversas, havendo ainda denúncias de grilagem de terras que chegam a ocupar mais de 80% do território de algumas comunidades.

Foto: Reprodução do Século Diário.

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