A triste trajetória de Karapiru, o indígena que ‘morreu duas vezes’

“A morte, sabem bem os indígenas, não é sempre um evento único e pontual, pode acontecer várias vezes durante a vida, deixando marcas que silenciam os cantos”, reflete Vilaça em seu ensaio.

Letícia Mori, Da BBC News Brasil

O indígena Karapiru, do povo Awá Guajá, vivia relativamente isolado na região oeste do Maranhão quando um massacre promovido por invasores não-indígenas dizimou o grupo com quem ele vivia e matou sua família, em 1978.

Seu pequeno grupo estava acampado na floresta – mulheres amamentando, crianças brincando, redes nas árvores – quando ouviram sons de tiros e começaram a correr. Homens armados saíram em perseguição a todos, atirando até nas crianças e colocando fogo nos pertencentes que os Awás deixaram para trás. Em meio ao caos, Karapiru conseguiu carregar uma criança consigo.

Ele sobreviveu, mas a criança acabou morrendo de diarreia pouco tempo depois. Sem encontrar sobreviventes e com a ameaça dos invasores ainda presente, Karapiru não pode ficar na sua terra. Fugindo, perambulou totalmente sozinho por regiões desconhecidas por dez anos, caçando com seu arco e flecha, dormindo do alto de árvores e sem falar com nenhum outro ser humano.

O sobrevivente andou tanto que acabou indo parar na Bahia, onde foi resgatado pela Funai (Fundação Nacional do Índio) na década seguinte. Levado de volta ao território do seu povo, ele viveu com os Awá Guajá por 30 anos até morrer de covid-19, sozinho no hospital, em 16 de julho de 2021.

Ao saber da trágica morte de Karapiru, a antropóloga Aparecida Vilaça, professora do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), correu atrás de diversas pessoas que fizeram parte da história do indígena para recuperar e recontar sua história.

“Fiquei comovida porque ele não é único. As pessoas não têm ideia, mas essas histórias são muito comuns, vários outros indígenas passam por processos parecidos: invasões, massacres, fugas, morte por covid. Pode variar o trajeto, eles podem não ser conhecidos, como o Karapiru ficou ao ser resgatado, mas a tragédia é a mesma”, diz Vilaça à BBC News Brasil.

“A história dele reflete os destinos dos povos originários do Brasil.”

Mas diferentemente da maioria dos indígenas que passam por situações parecidas sem que quase ninguém fique sabendo, história de Karapiru foi amplamente divulgada nos jornais nos anos 1980, quando ele foi resgatado. No entanto, como mostra a pesquisa de Vilaça, ele foi tratado mais como uma “curiosidade” do que como uma pessoa que havia passado por uma situação extremamente traumática.

O povo de Karapiru, os Awá Guajá, está entre os povos mais ameaçados do mundo – hoje é composto por apenas 420 pessoas. Vilaça diz que queria reconstruir os passos de Karapiru não só como uma homenagem a ele, mas para destacar seu papel de símbolo da resistência de seu povo e dos sofrimentos vividos pelos indígenas no Brasil.

Ao longo de meses, a pesquisadora conversou com antropólogos e outras pessoas que conviveram com Karapiru e fez uma grande pesquisa de documentos e jornais antigos para reconstruir a saga do indígena – que ela conta em um ensaio que será publicado na 39ª edição da revista serrote, do IMS (Instituto Moreira Salles), lançada em 18 de novembro.

Vilaça explica como a solidão extrema – terrível para qualquer pessoa – é ainda mais devastadora para membros de povos que vivem uma sociabilidade e uma proximidade física muito intensa.

“Assim como outros povos originários, os Awá Guajá não têm a mesma noção de individualidade que nós temos. Eles se enxergam como parte de um todo, estão sempre juntos. A ideia de estar sozinho é muito terrível”, explica a antropóloga.

“Eles vivem em constante troca – de comida, de coisas, de experiências. É como se o seu corpo e das outras pessoas, da sua família, ficassem misturados. Para eles a cura, por exemplo, pode vir de estar perto de um parente saudável”, diz Vilaça.

Duas mortes

A história de Karapiru é peculiar, explica ela, porque de alguma forma ele conseguiu sobreviver a dez anos de total solidão, longe de casa, em uma terra desconhecida. Mas depois de tudo – do massacre, da perda da família, da solidão – ele nunca conseguiu se recuperar totalmente.

Sem conversar com ninguém por dez anos, longe dos seus, foi esquecendo até mesmo sua língua. Como relatou depois, “dormia no alto das árvores e esqueceu o nome das coisas”.

Na solidão, perdeu uma das habilidades mais centrais para o seu povo – a de cantar. “Todos os homem adultos do povo Awá-Guajá sabem cantar, é uma característica deles”, explica Vilaça. “Cantar é essencial para vida, para os rituais”, diz ela.

Vilaça conta em seu ensaio que, muitos anos depois de ter sido resgatado, Karapiru disse que havia desaprendido a cantar ao antropólogo Uirá Garcia – principal estudioso do povo Awá-Guajá.

Garcia gravava cantos do povo para sua pesquisa quando Karapiru contou o que aconteceu.

“Eu respondi que ele podia cantar o que quisesse”, escreveu Garcia em um registro encontrado por Vilaça. “Ele então voltou a repetir que realmente não sabia cantar e que havia ‘morrido um pouco’ depois dos dez anos que viveu afastado de pessoas iguais a ele.”

“Outras pessoas que estavam conversando conosco perceberam o meu espanto ao encontrar um velho que não sabia cantar”, escreve Uirá. “Trataram de confirmar o que Karapiru havia dito: ‘Sim, ele morreu um pouco e, por isso, não sabe mais cantar'”.

Quando morreu de covid-19 em 2021, Karapiru morreu “pela segunda vez”.

“A morte, sabem bem os indígenas, não é sempre um evento único e pontual, pode acontecer várias vezes durante a vida, deixando marcas que silenciam os cantos”, reflete Vilaça em seu ensaio.

“Assim como Karapiru, grande parte dos indígenas do Brasil experimenta – desde o século 16, e hoje particularmente – novas e múltiplas experiências de morte: a sua própria, por tiros, intoxicação, covid-19 e outras doenças trazidas pelos brancos, ou aquela vivida no luto pela perda de um parente ou das terras ancestrais, invadidas e destruídas por fogo, desmate e buracos de mineração”, escreve ela. “Em tentativas desesperadas de escapar, saem em pequenos grupos ou sozinhos à procura de um lugar protegido, cada vez mais difícil de encontrar.”

‘Meu lugar’

Os relatos das pessoas que conviveram com ele, conta Vilaça, são de que, apesar de tudo o que sofreu, Karapiru era uma pessoa “doce” e pacífica, com um constante sorriso.

No entanto, as marcas da tragédia que viveu não se resumiam aos traços de chumbo das balas que foram encontrados em suas costas muito tempo depois. Ficar sozinho e estar perdido em uma floresta desconhecida, deslocado de seu território, afetou Karapiru profundamente.

“As relações estão imbricadas no território. É o lugar que constrói a memória, o seu corpo, as pessoas, os espíritos”, explica Vilaça.

Os Awá vivem da caça e da coleta e são excelentes caçadores. Embora não criassem roçados e não se assentassem em um local só, o povo tinha um local delimitado para suas parambulações – uma grande extensão de terras entre os rios entre os rios Turiaçu, Caru, Gurupi e Pindaré, no Maranhão.

Segundo o trabalho do antropólogo Uirá Garcia, os Awá chamam esse seu território de harakwaha, ou “meu lugar”, que na verdade é um “conjunto de lugares com a memória do povo: aldeias antigas, vestígios de animais caçados, árvores desconhecidas”.

“Quando Karapiru foi abruptamente retirado desse lugar, ele se tornou um refugiado”, diz Vilaça.

Mesmo depois de ser resgatado pela Funai, ao longo dos 30 anos que viveu com os Awá Guajá Karapiru nunca conseguiu se reintegrar totalmente, como contou à Vilaça o antropólogo Sidney Possuelo, sertanista que ajudou a levar Karapiru de volta para o território de seu povo.

Karapiru descobriu que seu filho havia sobrevivido, mas ele não conhecia mais ninguém. “Seus parentes não estavam lá, ele não tinha mais redes de parentesco, seu grupo foi dizimado. Embora estivesse com seu povo e tenha se tornado um membro querido da comunidade, continuou, num certo nível, estrangeiro”, conta Vilaça.

“É como se eu estivesse perdida e, quando me resgatassem, eu fosse levada não pro Rio de Janeiro onde estão minha família e meus amigos, mas para algum lugar onde não conheço ninguém, me deixassem no interior do Paraná, por exemplo”, diz Vilaça à BBC News Brasil.

“Assim que ele voltou ao Maranhão, ofereceram-lhe uma casa e uma mulher como esposa, mas volta e meia ele fugia – como é comum entre os homens Awá-Guajá em situação de raiva, medo ou tristeza”, relata Vilaça no ensaio da serrote. “De acordo com o que disseram a Sydney, ele acabou por construir para si um tapiri (uma espécie de abrigo) fora da aldeia, onde permanecia por dias, isolado.”

Quando adoeceu em 2020, Karapiru foi internado longe de sua comunidade. Como muitos dos pacientes internados com covid, não pôde se despedir de ninguém. Morreu sozinho, assim como viveu durante tantos anos.

Perseguição brutal

Além de relatos da vida e da morte de Karapiru, Vilaça recuperou também, em seu ensaio na revista serrote, o contexto do massacre ao qual ele sobreviveu.

Durante a ditadura militar, nos anos 1960, a descoberta de reservas minerais na região do Maranhão onde o povo vivia levou a uma intensa pressão sobre o território. Foi nessa época que foi criada a ferrovia Carajás-Ponta da Madeira, levando ao aumento populacional na região.

“Naquele período inicial, dezenas de indígenas morreram vitimados por doenças e assassinatos que, embora amplamente registrados pela imprensa, permaneceram sem punição”, escreve Vilaça.

A pesquisadora destaca que hoje, meio século depois, os povos indígenas estão novamente sob uma grande ameaça por causa do recente avanço de garimpos ilegais, de grileiros e do desmatamento.

Vilaça diz que é preciso chamar atenção para a dos muitos outros “que não tiveram a mesma resistência física, a mesma ‘sorte’ de cair em mãos benevolentes, e acabaram mortos, levando consigo lembranças e conhecimentos que jamais serão passados adiante.”. E para a tragédia das centenas que, assim como Karapiru, sobreviveram a todas essas ameaças mas morreram de covid-19, que afetou os povos indígenas desproporcionalmente.

Imagem: Karapiru Awá Guajá passou dez anos na mata fugindo de invasores – Foto: Survival International

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