Abrasco e ABA afirmam: “Governo Federal deve retirar os garimpeiros da Terra Indígena Yanomami e Ye’kwana e implantar um consistente Plano Emergencial”

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vêm, por meio desta nota, expressar indignação diante da atitude omissa e conivente do Governo Federal com a situação alarmante vivida pelo Povo Yanomami, decorrente em grande medida da ocupação do seu território tradicional pela indústria do garimpo, que nos últimos anos mobilizou mais de vinte mil pessoas para invadir e degradar suas terras, florestas, cursos d’água, fontes alimentares e vida comunitária. Nem mesmo diante do risco iminente de surtos da Covid-19 em comunidades Yanomami com difícil acesso aos serviços de saúde, e podendo ocasionar inúmeros óbitos e diferentes sequelas, algumas irrecuperáveis, fez com que o Governo Federal e suas agências se mobilizassem de forma adequada a fim de proteger esse povo e para retirar do território indígena o principal foco de transmissão de doenças, o garimpo.

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Os impactos das invasões e projetos de desenvolvimento na saúde e vida do povo Yanomami têm sido registrados há muitas décadas. Nos anos 1970, quando da construção da Perimetral Norte, doenças infecciosas mataram entre 22% a 50% das populações das aldeias atingidas pelas obras (Ramos, 1993). Entre 1987 e 1989, a invasão de 20.000 garimpeiros nos territórios Yanomami, gerou epidemias de malária e outras doenças, que causaram a morte de pelo menos 15% da população Yanomami. Atualmente, lideranças Yanomami e sua entidade representativa, a Hutukara Associação Yanomami, têm reiterado diversas denúncias de invasão de milhares de garimpeiros e suas consequências sociais e sanitárias; sendo que, recentemente, nota da Abrasco, de maio de 2021, apontou os seguintes dados alarmantes:

  • a desnutrição crônica atinge cerca de 80% das crianças menores de cinco anos, e a taxa de mortalidade infantil é 3,7 vezes maior que em demais grupos indígenas e 7,8 vezes maior que para crianças não indígenas;
  • dados do SIVEP-Malária apontam que a malária afetou aproximadamente 64% da população em 2019 e 67% em 2020, se não considerarmos reinfecções no mesmo indivíduo. “É ainda importante destacar que 34% da malária no DSEI Yanomami é causada por Plasmodium falciparum, espécie associada tanto a casos mais graves quanto à falta de medidas de controle, diagnóstico e tratamento apropriadas.” (Abrasco, 2021: 10-11);
  • o nível de contaminação de mercúrio, avaliado em 19 aldeias distribuídas na T.I. Yanomami das regiões Paapiú, Waikás Ye’kwana e Waikás Aracaçá, revelou altas prevalências que variaram de 6,7% em Paapiú, passando por 27,7% na região Waikás Ye’kwana, atingindo 92,3% das pessoas na região de Waikás Aracaçá” (Basta e Hacon, 2016). Atualmente esses níveis provavelmente estão ainda mais elevados, pois são essas regiões as mais diretamente afetadas pela atual ocupação e exploração garimpeira na porção oriental da Terra Indígena Yanomami;
  • no contexto da pandemia da Covid-19, a Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana denunciou uma série de problemas em relação ao enfrentamento da pandemia, como a falta de equipamentos de proteção individual (EPI) e testes, a elevada transmissão entre os trabalhadores da Casa de Saúde do Índio (CASAI) e do DSEI Yanomami, a falta de acesso a medidas de prevenção e à assistência, além da distribuição ampla de medicamentos sem comprovada eficácia para prevenção e tratamento da Covid-19.

Esses dados apontam a importância estratégica da pesquisa para analisar a situação de saúde e revelar iniquidades que afetam segmentos da população brasileira, bem como para subsidiar a organização e avaliação dos impactos das políticas públicas sociais de saúde. Relembramos que a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), de 2002, também informa que historicamente universidades e instituições de pesquisa contribuíram na construção do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Sasi SUS) e deveriam continuar produzindo conhecimentos para seu aprimoramento.

Em junho de 2020, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) entrou com a Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, requerendo no Supremo Tribunal Federal (STF), entre outras medidas, a desintrusão de invasores [2], particularmente em territórios de povos isolados e de recente contato, como o território Yanomami, além de um Plano de Enfrentamento para a Covid-19. Entretanto, em maio de 2021, a APIB teve que fazer novo requerimento da ADPF 709 diante da omissão do Governo Federal e da “escalada de conflitos violentos e violações de direitos” dos povos Yanomami, ocasião em que requereu mais uma vez a extrusão dos invasores[2]. Dentre os fatos narrados pela APIB em sua petição, estavam denúncias de novos acampamentos e alta circulação de garimpeiros, destruição da terra-floresta, lideranças assassinadas, ataques às comunidades, e aumento de casos e mortes por Covid-19, particularmente de crianças.

As manifestações da APIB e as notas técnicas da Abrasco[3] no âmbito da ADPF 709 têm ressaltado a frágil atuação do governo para conter e mitigar tais situações e seus impactos. Até o momento, “Plano de Enfrentamento da Covid-19 em Povos Indígenas Brasileiros” só foi parcialmente homologado na sua quarta versão, em março de 2021, havendo tido poucas evidências que comprovem sua plena implementação e o efetivo monitoramento das medidas, conforme determinação do Ministro Relator.

Recentemente a morte de crianças Yanomami no contexto de conflitos com os garimpeiros ganhou repercussão na mídia. Diante das imagens alarmantes sobre a situação sanitária veiculadas no programa Fantástico[1] de 14 de novembro de 2021, o Ministro Luís Roberto Barroso determinou que a União informasse em 5 dias sobre medidas acerca da “situação i) nutricional, ii) de acesso à água potável e iii) a serviços de saúde e medicamentos para a população Yanomami” e a implementação das medidas do Plano Geral de Enfrentamento da Covid-19 no âmbito da ADPF 709. Em resposta de 22 de novembro, a Advocacia Geral da União (AGU, 2021) apresentou a resposta dos órgãos responsáveis. Em nossa análise preliminar, observamos que:

  • a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) tende a se eximir de sua responsabilidade ao ressaltar, a “autonomia administrativa e financeira” dos Distritos Sanitários; ainda, culpabiliza os Yanomami pela grave situação ao afirmar que “o aspecto seminômade de parte dessa população é um dos fatores que dificulta o acesso dos profissionais de saúde” (AGU, 2021:3);
  • são reiteradas as (conhecidas) dificuldades logísticas da região para promover a atenção à saúde, que depende do transporte aéreo;
  • quanto à situação nutricional, se justifica a queda da cobertura do acompanhamento de saúde das crianças em decorrência da própria pandemia, mas não refere dados atualizados sobre a situação nutricional; informa a previsão de distribuição de cestas alimentares para somente 204 famílias na terra indígena Yanomami/Ye’kwana, apenas do estado do Amazonas, e aponta que “não foi previsto atendimento para as famílias das Terras Indígenas Yanomami residentes no estado de Roraima” (AGU; 2021:6).
  • quanto ao acesso à água potável, faz referência a uma cobertura de 28% dos sistemas de abastecimento da população do Distrito Yanomami, e indica a implantação de mais 8 sistemas em 2021. Entretanto, não apresenta informações concretas sobre monitoramento e controle de água potável. Outra medida que afirma ter sido implementada foi a distribuição de 40 filtros de barro, sendo que a demanda em análise é de 2.279 unidades. Ressaltamos os impactos do garimpo e desmatamento no acesso e qualidade da água.
  • quanto ao atendimento à saúde, ressalta que em duas localidades houve interrupções de atendimento devido a conflitos. Quanto à vigilância da malária apresenta o número absoluto de exames, sem referir indicadores mais adequados, como Índice Parasitário Anual (IPA) ou número de casos por espécie de Plasmodium por período e local.
  • os dados absolutos apresentados sobre as ações de saúde, como orçamento, contratações e atendimentos, não permitem análises consistentes sobre o planejamento e execução das ações e seus impactos na saúde do povo yanomami.

A AGU também menciona, em seu documento a Portaria GAB/SESAI Nº 38, de 04 de novembro de 2021, que foi criado “o Grupo de Trabalho, no âmbito da Secretaria Especial de Saúde Indígena, com a finalidade apoiar a Coordenação do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (…) na promoção de estudo diagnóstico e proposição de ações destinadas à resolução de questões atinentes à saúde dos povos indígenas circunscritos na jurisdição do Distrito”. Tal Grupo, estranhamente, conta somente com a participação de membros de Departamentos/Coordenações/Unidades, sem envolvimento dos representantes do Controle Social e/ou entidades representativas do povo Yanomami, e tampouco de organizações indigenistas ou acadêmicas.

Diante da gravidade da situação, em 15 de novembro de 2021 o Ministério Público Federal por meio da Recomendação Nº 1/2021/MPF/AM e RR, recomendou ao Secretário da SESAI e ao Coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami “que promovam a reestruturação da assistência básica de saúde prestada aos povos da Terra Indígena Yanomami (TIY)no prazo de 90 (noventa) dias” (MPF, 2021: 18). Nesse documento o MPF também retoma diversos dados alarmantes, que entre outros, destacamos: o aumento da taxa de mortalidade infantil na Terra Indígena Yanomami, atingindo os piores indicadores desde 2010 (TMI 133,3/100 mil); entre 2016 e julho de 2021, “a cada 3 dias uma criança Yanomami teve que ser removida de TI para receber atendimento de média ou alta complexidade por desnutrição”; o surto descontrolado de malária, sendo que 47% do total de casos de malária em TI é no território Yanomami; baixa execução das metas de atendimento de profissionais de enfermagem e decréscimos de médicos, tendo atualmente 12 (e a demanda é de 23); problemas nas contratações de transporte aéreo necessários para a garantia das ações; a parada da distribuição de alimentos pela SESAI para os pacientes internados e seus acompanhantes; somente 10% de cobertura de abastecimento de água potável e de 6% de monitoramento de água.

Nesse contexto, a Abrasco e ABA fazem coro, de maneira enfática, ao inadiável apelo dos povos indígenas quanto à gravidade da situação sanitária e a urgência de medidas para proteção da vida e saúde do povo Yanomami. Dessa forma, nos manifestamos afirmando que a União deve responder, de maneira satisfatória e resolutiva, a todas as medidas judiciais há muito determinadas pelo STF. É evidente que os invasores (envolvidos no garimpo, na grilagem e no desmatamento) estão entre os principais responsáveis por essa calamidade e devem ser devidamente retirados com urgência. Além disso, é fundamental articular um consistente Plano Emergencial intersetorial com a participação interinstitucional, o que se faz necessário em uma situação tão grave, envolvendo organizações indígenas, órgãos do executivo e judiciário federal, estaduais e municipais, entidades indigenistas e instituições acadêmicas. Toda nossa solidariedade ao povo Yanomami. Pedimos o fim ao genocídio do povo Yanomami!

Rio de Janeiro, 26 de novembro de 2021

Referências:

ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Grupo de Trabalho em Saúde Indígena. Nota Técnica do Grupo de Trabalho em Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) apresentada para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) no âmbito da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709. Rio de Janeiro: ABRASCO, 17 mai. 2021.

Advocacia Geral da União. Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental 709. Brasília, 22 de novembro de 2021.

Ministério Público Federal. 7. Ofício da Procuradoria da República em Roraima. 5º. Ofício da Procuradoria da República no Amazonas. Recomendação no.1/2021/MPF/AM e RR. Boa Vista e Manaus, 15 de novembro de 2021.

Paulo C. Basta & Sandra S Hacon. Avaliação da exposição ambiental ao mercúrio proveniente de atividade garimpeira de ouro na Terra Indígena Yanomami, Roraima, Amazônia, Brasil, 2016 (disponível em https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/diagnostico_contaminacao_mercurio_terra_indigena_yanomami.pdf).

Ramos, A. R. O papel político das epidemias: o caso Yanomami. Série Antropologia 153, pp.2-21, 1993.


[1]: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/11/20/mais-uma-crianca-yanomami-morre-e-outra-esta-em-estado-grave-por-falta-de-atendimento-relata-conselho-de-saude.ghtml

[2]: https://apiboficial.org/2021/05/19/apib-recorre-novamente-ao-stf-para-evitar-novo-genocidio-indigena/

[3]: https://www.abrasco.org.br/site/gtsaudeindigena/documentos/

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