Folha: “Heleno autorizou avanço de garimpo em rio que divide terras indígenas intocadas”

Cinco dos sete empreendimentos permitidos estão no rio Negro, margeado por terras com 11 etnias; GSI diz que respeitou Constituição

Por Vinicius Sassine, na Folha

Cinco das sete frentes de exploração de ouro em uma das áreas mais preservadas da Amazônia, autorizadas pelo general Augusto Heleno, estão dentro de trecho do rio Negro que corta duas terras indígenas, onde vivem 11 etnias. As áreas liberadas estão em ilhas ou nas próprias águas do rio, margeado de lado a lado por territórios demarcados.

A pedido da Folha, o Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) analisou as coordenadas geográficas dos projetos autorizados por Heleno, ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) da Presidência e secretário-executivo do Conselho de Defesa Nacional.

Os dados analisados são públicos e integram os processos na ANM (Agência Nacional de Mineração).

Os mapas produzidos pelo Ipam revelam que o ministro do GSI permitiu um avanço do garimpo de ouro em trecho de rio que banha duas terras indígenas praticamente intocadas: Médio Rio Negro 1 e Médio Rio Negro 2.

Nos dois espaços vivem 3.300 indígenas, segundo base de dados atualizada pelo ISA (Instituto Socioambiental). Eles são das etnias arapaso, baniwa, baré, dâw, desana, koripako, mirity-tapuya, pira-tapuya, tariana, tukano e yuhupde.

A Constituição proíbe mineração em terra indígena. Esse tipo de exploração só é possível se houver autorização pelo Congresso, o que não ocorreu.

O governo Jair Bolsonaro (PL) quer liberar a mineração nessas terras. Para isso, enviou em 2020 um projeto de lei ao Congresso que regulamenta a autorização a ser dada. A proposta está parada na Câmara.

O MPF (Ministério Público Federal) suspeita que os atos de Heleno buscam preparar terreno para a liberação de mineração em terras indígenas.

Para permitir o avanço da exploração de ouro em uma região quase intocada, o GSI partiu do princípio de que as áreas de rio não são formalmente parte das terras demarcadas.

“Nas regiões em comento, foram consultadas as bases de dados da Funai [Fundação Nacional do Índio], MMA [Ministério do Meio Ambiente] e ANM [Agência Nacional de Mineração], as quais não apontam o rio Negro, bem como as ilhas nele existentes, como terras indígenas ou unidades de conservação”, afirmou o GSI, em nota.

“Não houve aval do GSI para avanço de garimpo em terras indígenas. A Constituição é fielmente cumprida pelo GSI”, disse o órgão da Presidência.

A Funai não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre a relação do trecho do rio Negro com as terras Médio Rio Negro 1 e Médio Rio Negro 2.

Além das cinco frentes em rio que divide os dois territórios, a maior área liberada pelo GSI —de 9.676 hectares— avança por outro território da União, apesar de o empreendimento responsável ter informado que a exploração de ouro ocorreria em “propriedade de terceiros”.

Os mapas do Ipam mostram um imóvel rural, mas a extensão da área inclui área preservada da União.

Técnicos do instituto, uma organização não governamental de pesquisa científica, constataram que há um registro de CAR (Cadastro Ambiental Rural) para a área, colada ao Parque Nacional do Pico da Neblina. Isso significaria uma tentativa de apropriação de uma área que é pública, o que é irregular.

“O processo minerário está em fase regular no presente momento, conforme análise feita no processo recebido da ANM. O GSI utilizou a base de dados do MMA, que não indicou sobreposição com o Parque Nacional do Pico da Neblina”, afirmou o ministério comandando pelo general Heleno.

Os mapas produzidos pelo Ipam não informam a localização exata da sétima área autorizada pelo ministro do GSI.

Reportagem publicada pela Folha no dia 5 deste mês revelou as autorizações dadas por Heleno para o avanço do garimpo de ouro no extremo noroeste do Amazonas, um dos lugares mais preservados na Amazônia. É a primeira vez que isso ocorre em, pelo menos, dez anos.

Na região, conhecida como Cabeça do Cachorro, está São Gabriel da Cachoeira (AM), a cidade mais indígena do Brasil. Indígenas de 23 etnias vivem nessa parte do bioma amazônico.

Cabe ao ministro da GSI, como representante do Conselho de Defesa Nacional, dizer sim ou não a empreendimentos de mineração na fronteira, numa largura de até 150 quilômetros.

Desde a publicação da reportagem pela Folha, partidos e congressistas apresentaram pedidos a STF (Supremo Tribunal Federal), PGR (Procuradoria-Geral da República), MPF e Congresso para derrubar os atos de Heleno.

MPF passou a investigar as autorizações. Diversas organizações e associações de indígenas, inclusive do rio Negro, refutaram os atos.

O gabinete do deputado Elias Vaz (PSB-GO) fez um mapeamento das áreas com conclusões semelhantes à análise do Ipam e constatou ainda que a ANM negou autorizações de pesquisa de ouro em áreas vizinhas no rio Negro, com o argumento de que é vedado esse tipo de exploração em terra indígena.

Vaz foi o autor do pedido de convocação de Heleno para dar explicações na Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara. Os congressistas aprovaram um convite ao ministro.

O deputado e o senador Jorge Kajuru (Podemos-GO) ingressarão com um mandado de segurança no STF para tentar derrubar as autorizações dadas pelo chefe do GSI.

Rede Sustentabilidade e Partido Verde já ingressaram no STF com ações contra os atos de Heleno.

As sete autorizações para a região de São Gabriel da Cachoeira envolvem uma área de 12,7 mil hectares. Uma delas, além de ouro, permite pesquisa de nióbio e tântalo. Esse empreendimento é o que está colado no Parque do Pico da Neblina.

Para toda a Amazônia, desde o início de 2019, já foram concedidas 81 autorizações de exploração de minérios, entre pesquisas e lavras garimpeiras. Somente em 2021 foram 45, conforme os atos de assentimento prévio publicados no Diário Oficial da União até o último dia 2.

É a maior quantidade em nove anos, o que deve aumentar diante da possibilidade de novos atos até o fim do ano.

O ministro do GSI liberou pesquisa de ouro para empresários com áreas embargadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). E também para um integrante de cooperativa de garimpeiros que atuam com dragas de sucção em leitos de rios da Amazônia.

A técnica predominante nos empreendimentos liberados na Cabeça do Cachorro é o de dragas de sucção, conforme as propostas anexadas a processos na ANM. A ANM encaminha esses processos ao Conselho de Defesa Nacional quando os projetos estão em área de fronteira.

“O Congresso é que define e autoriza as atividades em terras indígenas. Definição de limite é atribuição da Funai. A ANM baliza o desenvolvimento de suas atividades institucionais na previsão do ordenamento jurídico brasileiro”, afirmou a agência, em nota.

Sobre negativas a cooperativa que queria explorar áreas vizinhas às autorizadas pelo GSI, a ANM disse que “há uma série de requisitos a serem cumpridos” e que “provavelmente a cooperativa não atendeu aos requisitos legalmente estabelecidos”.

Mapa produzido pelo Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), a pedido da Folha, sobre as áreas autorizadas pelo general Augusto Heleno para exploração de ouro na região de São Gabriel da Cachoeira (AM); a maioria (marcações em vermelho) está concentrada em trecho do rio Negro que corta duas terras indígenas – Ipam

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