No O Progresso
Era o terceiro dia de visitas quando cheguei naquele lugar. Ser recebida por uma comunidade com rezas e cânticos é típico da hospitalidade e carinho dos Guarani-Kaiowa. Já fui madrinha de casamento tradicional e batizada em um ritual sagrado em que recebi um nome guarani.
Chamou-me a atenção, entretanto, que entoavam seu canto dançando em volta de uma miniatura de casa de reza. Parei, respirei, olhei os restos queimados da antiga casa de reza, e disfarçando o choro, fui em sua direção para fotografar o estrago. Em alguns minutos, reposta, voltei, e me pus a observar a arquitetura daquela caprichada miniatura. Postada à frente da casinha, o Xiru, estrutura de varas que lembra uma cruz, objeto sagrado para os indígenas Guarani e Kaiowa, que via de regra, centraliza as cerimonias religiosas, dentro da casa de reza.
Três horas de relatos, basicamente o mesmo das outras localidades: alguns indígenas passam a frequentar igrejas não tradicionais e, aos poucos, passam a perseguir os tradicionais e trazem a igreja dos brancos para dentro do território e recebem orientações de alguém de fora, indígena ou não. Perseguem com palavras, ofensas e agressões físicas, e o clímax é a queima da casa de reza, sob o argumento que fazem feitiçaria. Antes, um ou dois meses de ameaças.
Meu pensamento voa! Lembro-me da minha igreja católica, eu ainda criança, lampejos de lembranças do padre rezando de costas para mim e falando em outra língua, que hoje sei ser o latim. Cenário muito diferente das celebrações carismáticos de hoje em dia, com muita entoação de cantos, revelações, profecias, curas, libertações de maldições e manifestações angélicas em suas línguas celestes.
Lampejam também as poucas idas às igrejas evangélicas na infância para algumas celebrações de casamentos, tudo muito formal, tendo como ponto central a pregação do pastor e, mais atualmente, nos ramos mais novos dessas denominações evangélicas, com curas, promessas de prosperidade, libertação de maldições, sempre com muita música e invocações espirituais. Uma coisa em comum nas duas manifestações religiosas: a presença do mundo invisível, para uns, anjos, para outros, os espíritos santos, e muito canto.
Voltei à infância, lembrei-me dos bancos escolares com as professoras, se haviam professores na minha época de primeiro grau, eu não os tive, explicando sobre as manifestações espirituais dos indígenas, eram categóricas em falar sobre os encantados que davam proteção aos indígenas. Na época ela se referia a esses povos como tribos.
Lembrei de meu batismo guarani, revi o Nhanderu me colocando um nome sob inspiração de um encantado. Continuei muito atenda à oitiva, agora a Nhandesy falou o nome da igreja que os persegue. Sem surpresas, a mesma dos outros lugares. Voltei aos meus pensamentos: anjos, falar em línguas, espíritos santos, dons proféticos, libertação, benção, encantamentos, cura, abundância da colheita.
Pareceu-me tudo muito similar, só mudam o nome do invisível. Para uns, espíritos santos e anjos, para outros, encantados. E me pergunto: quem copiou quem e só trocou os nomes? Quem decide qual sagrado é melhor do que o outro? Será que um dia os indígenas serão obrigados a fazer miniaturas de igrejas de branco para cultuar seus deuses?
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Na manhã do primeiro dia de 2020, o resultado da ação incendiária criminosa contra a Casa de Reza. Foto: Povo Guarani Kaiowá