“A Funai parou de ajudar as pessoas que estão defendendo a floresta”, diz líder Kayapó

No Acampamento Terra Livre 2022, Doto Takak Ire falou à Pública sobre mineração ilegal, impacto das ações do governo para os povos indígenas e efeitos da emergência climática

Por Laura Scofield, Agência Pública

Mesmo homologada desde 1993, a terra indígena Menkragnoti, onde vive o povo de Doto Takak Ire, os Kayapó, além de dois grupos de indígenas isolados, não está segura. A liderança conta que o garimpo ilegal vem crescendo desde 2019, o que forçou a criação de bases de vigilância nas fronteiras. Além do perigo do garimpo, as mudanças climáticas, diz, também estão se fazendo sentir, mudando o regime de chuvas e afetando o cotidiano dos habitantes tradicionais daquelas terras.

Nos quase 5 mil hectares da TI Menkragnoti, que compreende os estados do Pará e Mato Grosso, vivem cerca de 1.200 indígenas — o povo Mebêngôkre Kayapó Mekrãgnoti divide o espaço com os isolados do Iriri Novo e de Mengra Mrari. Doto Takak Ire cresceu na aldeia Pukany e, por 20 anos, trabalhou com a Funai na proteção de suas terras e direitos. Porém, se distanciou quando, sob o governo Temer, “a Funai foi enfraquecendo e eu comecei a pagar para trabalhar”.

Hoje a liderança Kayapó vive fora da aldeia e trabalha como relações públicas do Instituto Kabu, que desenvolve projetos e ações em 12 aldeias nas TIs Baú e Menkragnoti. Eram 14, mas em 2019 duas aldeias deixaram o Instituto depois de terem feito acordos pró-mineração.

Cercados pelos mineradores, os Kayapó criaram bases de vigilância para monitorar e diminuir o estrago. Hoje existem seis bases e planos para que outras sejam construídas nas duas TIs. Toda semana, um grupo de seis indígenas segue o rio e monitora os locais de risco portando suas armas tradicionais e se guiando a partir dos aprendizados provenientes de capacitações sobre a forma de abordagem, oferecidas pelo Ibama de 2010 a 2019 — com a chegada do governo Bolsonaro, o programa também foi paralisado. Como parte do Programa de Proteção Territorial, os guerreiros abordam e dialogam com os invasores, além de monitorar os resultados via satélite.

“A gente está vendo que está na cara, o governo quer abrir espaço, quer abrir a terra indígena. Só com o anúncio dele, o garimpo aumentou e a destruição aumentou”, afirma Doto Takak Ire ao criticar o PL 191/2020, que tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados e pretende liberar a mineração e a geração de energia elétrica nas terras tradicionais, sem a garantia de que os habitantes dos territórios tenham poder de decidir sobre o futuro de suas comunidades. “Se for o caso do Congresso aprovar [o PL 191], a gente vai ter que ir ao Supremo, pedir pro Supremo barrar esse papel que quer destruir o nosso futuro, o nosso sonho.”

A Agência Pública conversou com Doto Takak Ire na 18ª edição do Acampamento Terra Livre, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Durante 10 dias, entre 4 e 14 de abril, povos indígenas de todo o país se reúnem para debater e pressionar as autoridades em defesa de seus territórios.

Como alguém que trabalhou na Funai, como você vê a diferença da Funai de antes do governo Bolsonaro e de agora?

Antigamente, a Funai ajudava os povos indígenas, ajudava na fiscalização, ajudava a proteger a floresta. Mas depois quando o Bolsonaro assumiu, a Funai não existe mais e não está atuando mais nas aldeias.

Antes do [governo de Jair] Bolsonaro, a Funai havia criado uma CTL, que é a Coordenação Técnico Local, em que até os funcionários que eram chefes de posto atuavam nas aldeias. A nova gestão tirou todos os chefes de posto e levou para o município mais próximo, e dali a Funai começou a enfraquecer, começou a faltar dinheiro na CTL e a administração da época passou para a coordenação regional, aí que as coisas mudaram.

Em que momento você decidiu parar de atuar junto a Funai?

Tinha muito problema interno e a pressão dos garimpeiros e madeireiros, que achavam que a Funai que autorizava eles a entrar, era quem mandava ali. Eu não pude levar essa pressão dos madeireiros e dos garimpeiros e tive que sair, [pensei]: ‘não vou me arriscar aqui, e também ao mesmo tempo ninguém está dando apoio, a coordenação regional não está dando apoio, então tenho que sair’. Por isso que eu saí. E hoje você está vendo que a Funai não está indo para a aldeia, não está visitando as aldeias, não está construindo mais projetos etnosustentáveis. A Funai parou de ajudar as pessoas que estão defendendo a floresta.

Eu falei isso para o presidente e para os diretores da Funai, falei para eles que eles só estão ajudando quem está com atividade ilícita, só dão ouvido para quem está envolvido com essas atividades. E ele não respondeu nada.

A Funai também está fazendo política entre os povos Kayapó. Por exemplo, eles chegam nos indígenas e perguntam: ‘você está envolvido com garimpeiro? Com madeireiro?’. Aí os funcionários falam: ‘você tem que fazer isso, isso e isso’. [Depois falam dos indígenas que estão protegendo] e começam a usar um contra o outro, falam que as ONGs estão ganhando muito dinheiro nas costas dos indígenas e que eles têm direito sim de explorar ouro, madeira. A Funai não vê a lei. A extração de ouro e madeira dentro da Terra Indígena é proibida por lei.

Duas aldeias saíram recentemente do Instituto Kabu, porque elas foram cooptadas para a mineração. Como isso afeta a relação de vocês lá?

Fica muito ruim, fica muito ruim para quem está lutando pela defesa da floresta. Sabe por quê? Eu estou defendendo aqui e você quer derrubar [a floresta], então vai ser uma briga entre nós dois. Se eu não deixo você derrubar, mas você quer derrubar, vai ter uma briga. Isso está acontecendo, está causando problema. É o papel da Funai chegar naquela comunidade, naquela liderança e conversar com os dois para pedir as pazes. Antigamente a Funai fazia assim, ela ia lá na aldeia, conversava com a liderança, ajudava a expulsar os garimpeiros, mas hoje não.

Antes a Funai fazia as pazes e hoje ela estaria fazendo o contrário?

O contrário. Fazendo outra liderança brigar com outra. A gente não quer destruir a floresta. Agora o governo, a Funai, eles querem derrubar a floresta. Está bem claro que o governo Bolsonaro está usando a minoria contra a maioria.

Como a não renovação do PBA [Plano Básico Ambiental – Componente Indígena] em 2020, dinheiro que vinha da compensação das obras da BR 163, afetou a manutenção dos projetos e a segurança financeira dos indígenas da sua terra? Pode explicar isso melhor?

O PBA era pra ser executado, mas quando o Bolsonaro assumiu ele cortou. O que ocorreu? O presidente da Funai, que acredita que as organizações não-governamentais são das ONGs de fora [do país], mandou o pessoal investigar o Kabu, mas eles não encontraram nada. O próprio investigador descobriu que o problema está na Funai, mas ele [Marcelo Xavier, presidente da Funai] nunca foi atrás. Então a gente paralisou a BR 163 para tentar negociar, mas o presidente da Funai não foi lá. Em vez de ajudar, ele fez um pedido de ação contra minha pessoa, pensando que eu mandei paralisar a BR 163 para garantir o meu direito. Mas não é.

E como está este processo contra você?

Já foi arquivado.

Sem a ajuda da Funai no combate à mineração, como vocês tentam impedir que mais gente vá por esse caminho?

Eles [os que apoiam a exploração das terras] são minoria, são fraquinhos. Agora os [indígenas kayapó da aldeia Gorotire, localizada na TI Kayapó, que têm mineração em suas terras] estão chegando aí no ATL, eles estão aí, fizeram uma reunião ontem, eles estão afim de fechar o garimpo porque eles estão vendo que o efeito está acontecendo. Eles não estão pescando mais, [por conta da] contaminação do rio, dos peixes e dos animais. Chegou o momento que eles querem apoio, eles estão pedindo apoio para fechar o garimpo.

Mesmo sendo ilegal, a mineração em terras indígenas continua acontecendo. Ainda assim, existe o PL 191, que vai tornar mais fácil que esse tipo de empreendimento cresça dentro dos territórios. Qual é a importância de se posicionar contra isso?

É muito importante. É muito importante para quem está defendendo a floresta. A gente está vendo que está na cara, o governo quer abrir espaço, quer abrir a terra indígena. Só com o anúncio dele, o garimpo aumentou e a destruição aumentou.

Hoje com a tecnologia a gente grita, quando eu falo uma coisa aqui, você copia e já manda para outros, já manda para outros, já manda para outros. [Derrotar o PL é] muito importante para quem está precisando e pedindo ajuda. Tem muitos parentes que não têm terra para sobreviver. Eles precisam de ajuda, eles precisam dessa defesa. A preocupação é de todos. Quem está pegando dinheiro fácil [com a mineração] acha que é bom, mas pode trazer problemas para o futuro da família dele.

Qual a importância do Acampamento Terra Livre no meio disso?

A gente está junto aqui para ajudar os parentes que estão necessitando de uma terra, de uma floresta para sobreviver, porque o Bolsonaro não está demarcando… Esse ano, vai ter também [o julgamento do] Marco Temporal, e eu vou trazer a minha família todinha, meu filhinho vai andar aqui para aprender, para no futuro ver alguma imagem e dizer ‘pai, eu era criança e eu vi isso’. É muito importante esse encontro. Espero que essa luta vá passando de gerações para gerações.

Agora há um outro tema, que é sobre mudanças climáticas. Como você percebe essa mudança do clima lá na floresta?

A gente está vendo que o clima realmente está mudando. Não está chovendo na época da chuva, está chovendo fora da época, igual carnaval fora da época, entendeu? Muita gente está tendo que aprender como é que a gente [indígenas] faz para manter essa floresta em pé. Espero que as lideranças continuem defendendo a floresta para mais ou menos manter o clima no nível, mas realmente está mudando muito. Chuva fora da época da chuva, fora da época do verão. Tá tendo isso e a gente sabe que não somos nós que estamos desmatando. A gente é defensor da floresta e estamos vendo que realmente mudou.

Ou seja, não são vocês que estão causando isso, mas já está gerando efeito em vocês?

Isso.

Essa mudança das chuvas afeta de alguma forma as atividades no território?

Eu não fico muito na aldeia, só vou na época de final do ano ou meio de férias. Mas a gente vê que antes os Kayapó não frequentavam o rio Pixaxá. Depois de 20 anos, os Kayapó voltaram a frequentar, porque é o limite da terra indígena, entre o branco e a TI.

Quando a gente chegou lá não tinha peixe nenhum, mas cinco anos depois, com a presença dos Kayapós, que prenderam barco, prenderam arma, prenderam caça e pesca dos caras, cinco anos depois a gente viu os efeitos e que os peixes voltaram. Com o
desmatamento, com a destruição dos peixes e pesca predatória, a gente vê o efeito sim. Antes não tinha peixe, hoje se for lá você vai ver bastante peixe.

Então os conhecimentos indígenas dos Kayapó estão conseguindo recuperar algumas partes antes desmatadas?

Algumas partes do limite da TI, a gente continua conservando, a gente vai continuar, a gente vai lutar. As plantações de soja se aproximaram, encostou na TI e os venenos vão para o rio na época da chuva, então a gente está defendendo e a gente vai continuar com as criações das bases nos locais críticos, onde tem invasores. Depois que a gente criou as bases, não estão chegando mais as pessoas que estão destruindo.

Estão acontecendo várias reuniões internacionais, nas quais vários indígenas foram para falar sobre mudanças climáticas e como a gente pode parar isso. O senhor acha que o caminho para a gente superar esse processo está em ouvir os conhecimentos indígenas e entender que vocês sabem o que fazer ali, que são capazes de cuidar disso do jeito de vocês?

Realmente a gente pode usar esse nosso conhecimento para ajudar muito mais ainda. Não adianta você chegar lá e querer mandar nas TI, somos nós que temos esse conhecimento, a gente tem experiência. Eu acho que é muito importante falar das mudanças climáticas com a gente, a gente está vendo os efeitos e que realmente o clima mudou.

O senhor falou que a tecnologia permite que o que você fala aqui vá para outros lugares, chegue em mais pessoas. Nesse ano temos tanto as eleições, quanto a votação do PL 191, Marco Temporal, muitas pautas importantes e relevantes para defender os povos indígenas. Quais são as mensagens que o senhor gostaria de deixar para as pessoas, também não-indígenas, e para os deputados que vão decidir isso?

Eu vou deixar a mensagem aqui pros parentes, e pros não-parentes, que vamos lutar, vamos dar exemplo, vamos lutar junto para ajudar a barrar esse processo. É um processo criminoso, e, se for o caso do Congresso aprovar [o PL 191], a gente vai ter que ir ao Supremo, pedir pro Supremo barrar esse papel que quer destruir o nosso futuro, o nosso sonho. Isso eu peço para os parentes indígenas e não-indígenas, ajudar a fortalecer o nosso acampamento Terra Livre.

E, por favor, gente, vamos lutar, vamos não voltar mais no Bolsonaro, vamos votar no Lula, para ver se pelo menos ele respeita e dá ouvido pra gente.

Também existem muitas críticas ao ex-presidente Lula por parte do movimento indígena, que afirma que ele poderia ter feito mais pelos povos. Como está sendo a negociação para garantir que, caso eleito, ele priorize os povos indígenas?

A gente vai ter que elaborar um documento para ele assinar, fazer um compromisso com os povos indígenas, não só nós Kayapós, mas com o indígena do Brasil inteiro. Tem que fazer compromisso com os indígenas, porque são os primeiros habitantes do Brasil.

A gente está tentando trazer ele pra cá e ele assinar antes, fazendo um compromisso. Não do passado, porque no passado ele fez a barragem de Belo Monte, destruiu as famílias lá e acabou com o sonho das famílias que estão sofrendo lá. Ele errou. Eu sei que se eu errar, eu vou aprender com isso, mas tem gente que erra e nunca vai aprender. Espero que Lula entenda isso e aprenda com o erro.

Imagem: Doto Takak Ire trabalhou com a Funai por 20 anos e agora é relações públicas do Instituto Kabu – Andressa Anholete/Agência Pública

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