Parquet pede que Governo Federal seja obrigado a retomar operações de repressão ao garimpo, instale postos de fiscalização e apresente novo plano emergencial
Procuradoria da República em Roraima
Diante de denúncias de graves crimes contra indígenas e ameaças à saúde e à existência física das suas comunidades, o Ministério Público Federal (MPF) apresentou à Justiça Federal pedido para obrigar a União a retomar ações de proteção e operações policiais contra o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami.
Os pedidos foram protocolados em 31 de março, depois de visita feita pelo Ministério Público Federal à região conhecida como Serra das Surucucus, em Roraima. Na ocasião, constatou-se que os garimpos ilegais ocuparam toda a região, utilizando as pistas de pouso da saúde indígena como apoio logístico de dezenas de aeronaves e helicópteros. Isoladas do contato com a sociedade, as comunidades indígenas estão cada vez mais próximas do garimpo e não podem usufruir de seu habitat tradicional, já completamente degradado pelo desmatamento e poluição dos rios.
Apenas no garimpo instalado na comunidade de Homoxi – umas das dezenas de comunidades da região de Surucucus – estima-se a presença de mil garimpeiros. Foi nessa região que um posto de saúde foi fechado devido ao risco estrutural gerado por uma cratera criada pela atividade de garimpo e após os garimpeiros terem tomado a pista de pouso utilizada pela Secretaria de Saúde Indígena para atendimento.
Recente visita do MPF à Base de Proteção Etnoambiental (Bape) Walo Pali, no rio Mucajaí, também confirma a intensificação do garimpo na área e a inviabilidade de a Bape, sozinha, proteger o território indígena.
Com isso, o MPF concluiu que as operações executadas em 2021 pelo Governo Federal não foram capazes de conter o avanço da atividade ilegal no território. Assim, na ação protocolada com urgência, o MPF pede que o Governo Federal coordene o planejamento de novas operações de repressão contra os crimes socioambientais da região e que as equipes policiais permaneçam no local até que todos os infratores ambientais sejam retirados da terra indígena.
Além disso, o MPF quer que a União garanta a prestação do serviço de saúde, reabrindo os postos de saúde, e que a Fundação Nacional do Índio (Funai) reative o posto de fiscalização em Surucucus, abandonado no ano de 2009.
O Instituto Nacional do Meio Ambiente (Ibama) também foi acionado para que inicie ações de fiscalização de todas as pistas de pouso clandestinas, aeródromos e portos fluviais que ficam próximos à TIY e que dão suporte logístico à atividade de garimpagem ilegal.
O MPF exige que os órgãos de repressão passem a inutilizar aeronaves, veículos e equipamentos encontrados em operações de fiscalização. Atualmente, a nomeação de responsáveis legais pelos bens tem se mostrado insuficiente, pois em diversos casos o maquinário foi encontrado sendo novamente utilizado no apoio logístico ao garimpo.
Plano Operacional – As operações executadas em 2021 contra criminosos ambientais foram resultado da ação promovida pelo órgão em 2020, na qual foram proferidas decisões do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) e da Justiça Federal de Roraima (JFRR) que impuseram a retirada de todos os garimpeiros da Terra Indígena Yanomami (TIY), sob pena de um milhão de reais. O Supremo Tribunal Federal também determinou o enfrentamento do garimpo na TI Yanomami, no âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, relatada pelo ministro José Roberto Barroso.
O MPF apurou que as ações executadas ao longo dos ciclos previstos no chamado Plano Operacional de Atuação Integrada, formulado pelo Ministério da Justiça, não cumpriram as determinações da liminar proferida pelo TRF1. Como exemplo, dos 421 pontos de mineração ilegal estimados no Plano, apenas 9 foram objeto de incursão policial. Além disso, dos 277 pontos de apoio logístico fora da Terra Yanomami – estruturas que incluem pistas de pouso clandestinas, aeródromos e portos fluviais – apenas 70 foram fiscalizados.
“A ênfase no estrangulamento da logística como estratégia de enfrentamento do garimpo ilegal, depende de atuação repressiva dentro e fora de terra indígena por tempo suficiente para eliminar equipamentos, insumos e meios de transporte nos pontos de mineração ilegal e nos locais de suprimento nas adjacências do território, em abordagem complementar e permanente. Asfixiando a logística, operações contínuas de repressão geram desgaste financeiro das organizações criminosas, acabando por inviabilizar economicamente a atividade de mineração ilegal. Diante da intensificação do garimpo ilegal na TIY, fica evidente que poucos ciclos operacionais de curtíssimo tempo com grandes intervalos sem execução de operações no chamado “status operacional mínimo” são insuficientes”, defende a ação civil pública.
Tragédia humanitária – Na visão do MPF, a grande quantidade de garimpeiros ocupando ilegalmente o território indígena, assim como a forma de estruturação da atividade moderna, pode dizimar a população tradicional da região, já bastante vulnerável pelo seu isolamento na Floresta Amazônica.
No período compreendido entre agosto de 2020 e fevereiro de 2022, foram registrados 3.059 alertas de novos pontos de extração mineral na região que compreende a Terra Indígena Yanomami nos Estados de Roraima e Amazonas, afetando uma área de 10,86 km². Apenas em janeiro de 2022, foram 216 alertas de mineração ilegal.
Além de degradar o meio ambiente, destruindo flora e fauna, e usurpar matéria-prima da União, a atividade de garimpeiros provoca impactos à saúde e à organização social das comunidades.
Conflitos armados e ameaças de garimpeiros contra indígenas têm sido registrados com frequência. Além do evidente risco de óbitos e do cerceamento da liberdade das populações tradicionais, o quadro de insegurança em certas regiões frequentemente impõe a retirada das equipes multidisciplinares de saúde, deteriorando ainda mais as condições sanitárias.
O fluxo de garimpeiros na TIY é apontado pela Secretaria de Saúde Indígena (SESAI) como vetor epidemiológico, resultando em taxas de infecção por malária entre as mais altas do planeta. A contaminação dos rios por mercúrio também torna as águas impróprias para consumo, asseio e recreação, provocando doenças nas populações indígenas, além de impedir a complementação da dieta pela pesca. A população dos centros urbanos também é afetada pela qualidade da água e de peixes consumidos.
Relatos de associações trazem que comunidades de recente contato têm sido assediadas por garimpeiros com a introdução de favores e dinheiro, elementos até então estranhos à sua cultura. Como consequência, indígenas têm perdido suas referências de liderança e abandonado práticas tradicionais de subsistência, gerando quadro de insegurança alimentar, fome e conflitos.
Para reverter esse cenário, o MPF tem atuado nas instâncias criminal e cível, além do diálogo direto com os órgãos competentes para o combate ao garimpo. Em 2019, o MPF conseguiu na Justiça Federal a condenação da União e da Funai para instalar três bases de proteção territorial em pontos estratégicos da TI Yanomami, a fim de asfixiar a logística do garimpo. Foram instaladas a base Wallo Pali, no rio Mucajaí, atualmente ocupada pela Funai e Força Nacional, e a base Serra da Estrutura, voltada à proteção de indígenas isolados. Para 2022, acompanha-se a construção da base Korekorema, na calha do rio Uraricoera.
As medidas buscam evitar crimes como aqueles relatados nas últimas denúncias apresentadas em relatório da Hutukara Associação Yanomami. O documento cita pelo menos três crimes contra a dignidade sexual de vulneráveis, crime de trabalho escravo e crime de disseminação de bebida alcoólica entre indígenas de recente contato. O MPF busca mais informações para abrir investigação específica e definir as medidas cabíveis em cada caso.
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Imagem: Comunidade na Terra Indígena Yanomami. Foto: Junior Hekurari Yanomami /Condisi-YY