Decreto é o primeiro indulto nominal concedido por um presidente brasileiro desde 1945, afirma autor de pesquisa sobre o tema. Para ele, decisão é afronta ao Poder Judiciário.
Por Guilherme Becker, na DW
A decisão do presidente Jair Bolsonaro na quinta-feira (21/04) de conceder indulto ao deputado Daniel Silveira, condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 8 anos e 9 meses de prisão por ameaças às instituições democráticas, elevou a um novo patamar a crise entre Executivo e Judiciário no atual governo e levantou dúvidas sobre a legalidade da medida.
O advogado João Pedro Accioly, professor de direito constitucional e doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro que pesquisou todos os decretos de indulto presidencial no Brasil desde 1851, afirma em entrevista à DW Brasil que a iniciativa de Bolsonaro é inédita no período democrático e uma afronta ao Supremo e ao Poder Judiciário como um todo.
“Na última década, aliados próximos de ex-presidentes foram alvos de investigações, denúncias e condenações criminais. Em nenhuma dessas oportunidades, cogitou-se o perdão presidencial da pena imposta pelo Judiciário. O caso de Daniel Silveira, a conduta pregressa de Bolsonaro e as circunstâncias em que a graça [termo usado para um indulto individual] foi anunciada agravam o episódio”, diz Accioly.
Ele afirma que, desde a Constituição de 1946, os indultos têm sido utilizados apenas na modalidade coletiva, a partir de critérios impessoais, como mecanismo de política criminal e controle da população carcerária.
Para Accioly, a gravidade da medida é acentuada pelo momento em que a decisão foi tomada pelo presidente: a poucos meses do início da campanha e das eleições, cuja organização e sistema de votação vêm sendo desacreditados por Bolsonaro de várias formas, a exemplo de ataques constantes à urna eletrônica e ao Tribunal Superior Eleitoral.
“O presidente parece ter escolhido intencionalmente desafiar a autoridade do Supremo Tribunal Federal, buscando reverter um julgamento quase unânime, ocorrido na véspera, pelo plenário da mais alta corte do país. A antecipação do presidente à conclusão do processo, além de desrespeitosa, revela a pretensão de confrontar o STF, subjugando-o ou levando-o a adotar atos também inéditos e rigorosos de controle judicial, de modo a corroborar a narrativa do presidente ‘perseguido pelas instituições'”, afirma Accioly. “Temo que estejamos assistindo a um ensaio para o golpe.”
DW Brasil: Como você avaliou a decisão de Bolsonaro que concedeu indulto a Daniel Silveira?
João Pedro Accioly: O decreto de indulto individual concedido por Bolsonaro é inédito e preocupante. Até ontem [quinta-feira], o decreto 20.082/1945, que beneficiou integrantes da Força Expedicionária Brasileira, após a Segunda Guerra Mundial, era o último ato presidencial a conceder perdão de penas em bases nominais. Desde a Constituição de 1946, os indultos têm sido utilizados apenas na modalidade coletiva, a partir de critérios impessoais – genéricos e abstratos –, como mecanismo de política criminal e controle da população carcerária.
Convém lembrar que, na última década, aliados próximos de ex-presidentes foram alvos de investigações, denúncias e condenações criminais. Em nenhuma dessas oportunidades cogitou-se o perdão presidencial da pena imposta pelo Judiciário.
O caso de Daniel Silveira, a conduta pregressa de Bolsonaro e as circunstâncias em que a graça foi anunciada agravam o episódio. O deputado Daniel Silveira, diferentemente do que alega o presidente, não foi condenado por exercer a sua liberdade de expressão. Daniel incidiu, de forma clara e reiterada, nos crimes de coação no curso do processo e abolição violenta do Estado democrático de direito. A condenação de Daniel, que contou com o voto de dez dos 11 ministros do STF, era considerada vital para a estratégia de autodefesa da Corte e da integridade de seus membros, num contexto de crescentes ataques à legitimidade das instituições democráticas e do sistema eleitoral – que, muitas vezes, são capitaneados por parlamentares ou pelo próprio presidente da República.
Algum presidente brasileiro já havia concedido indulto individual? Isso é possível segundo a Constituição atual?
Nenhum indulto individual foi concedido sob a vigência da Constituição de 1988. Como indicado, faz 77 anos que um decreto de indulto não prevê beneficiários nominais. Além disso, entre as competências privativas do presidente da República, não há menção à “graça” ou ao “indulto individual”. Combinando o argumento textual com a tradição institucional estabelecida, é muito questionável se a figura da graça ainda subsiste na ordem constitucional brasileira, embora seja típica em outros sistemas, como nos Estados Unidos. Acredito, contudo, que não será preciso avançar nessa discussão teórica. Ainda que se conclua pela possibilidade de concessão de indultos individuais, o decreto tem outros vícios que permitem ao STF reconhecer sua inconstitucionalidade.
O Supremo pode derrubar uma decisão do presidente que concede indulto?
O indulto está inserido na insepulta e mal equacionada categoria dos atos políticos, que é o objeto da minha tese de doutorado. No século 19, essa categoria – chamada na França de acte de gouvernement e nos Estados Unidos de political question doctrine – foi forjada para limitar o controle do Judiciário sobre determinados atos do Legislativo e do Executivo, particularmente os atos privativos do presidente. Os atos políticos foram uma forma de permanência e assimilação de antigos poderes absolutistas de que dispunham os reis, como a prerrogativa de perdoar quaisquer delitos.
O Estado democrático de direito é um sistema de conformação e controle jurídico do poder político. Ao longo do século passado, o fortalecimento institucional do Judiciário, em boa parte do mundo ocidental, levou ao enfraquecimento ou mesmo à superação das teses que atribuíam, a certos atos ou agentes, imunidades jurídicas. No Brasil, todos os atos normativos primários do presidente da República são suscetíveis ao controle de constitucionalidade, tanto pela via incidental, o que poderia se dar nos próprios autos da ação penal em desfavor de Daniel Silveira, que ainda não transitou em julgado, ou por meio de ações abstratas de controle – já havendo notícias de que o senador Randolfe Rodrigues e o presidenciável Ciro Gomes preparam medidas do gênero.
Na ação direta de inconstitucionalidade 5874, julgada em 2018, o Supremo reconheceu a constitucionalidade de indulto natalino concedido pelo ex-presidente Michel Temer, por 7 votos a 4. No entanto, mesmo a corrente majoritária, liderada pelo voto do ministro Alexandre de Moraes, reconheceu a supremacia da Constituição sobre os atos de indulto e diversas hipóteses que justificariam a invalidação judicial do benefício.
Se o indulto for mantido e Silveira ficar solto, ele poderia manter seus direitos políticos e se candidatar?
O entendimento majoritário é de que o indulto extingue apenas os efeitos primários da condenação penal. Os efeitos secundários, entre os quais a suspensão dos direitos políticos, não seriam desfeitos por força do indulto. Essa é a orientação da súmula 631 do Superior Tribunal de Justiça. A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral oscila a respeito do tema. Há precedentes em ambos os sentidos. No entanto, todos eles se referem a indultos coletivos. No caso de Daniel Silveira, penso ser muito provável que a Justiça Eleitoral indefira quaisquer candidaturas apresentadas pelo deputado, ainda que o indulto concedido pelo presidente prevaleça no âmbito do STF.
O processo ainda não havia transitado em julgado. Isso afeta o decreto editado por Bolsonaro?
O fato de o processo não ter transitado em julgado é mais um fator de ineditismo no ato praticado por Bolsonaro. A meu ver, a extemporaneidade não é tão relevante juridicamente, na medida que esse vício poderia ser sanado com a simples republicação do decreto. O fato é mais relevante do ponto de vista político e institucional. O presidente parece ter escolhido intencionalmente desafiar a autoridade do Supremo Tribunal Federal, buscando reverter um julgamento quase unânime, ocorrido na véspera, pelo plenário da mais alta Corte do país. A antecipação do presidente à conclusão do processo, além de desrespeitosa, revela a pretensão de confrontar o STF, subjugando-o ou levando-o a adotar atos também inéditos e rigorosos de controle judicial, de modo a corroborar a narrativa do presidente “perseguido pelas instituições”.
Houve violação ao princípio da impessoalidade e desvio de finalidade, como apontam alguns críticos?
O direito não tutela o arbítrio e a discricionariedade que a Constituição outorga ao presidente da República como um cheque em branco. De acordo com o princípio republicano, os atos do Estado – inclusive os do presidente – devem ser animados por finalidades públicas, impessoais e morais. Não se pode admitir que o presidente transforme seus filhos em embaixadores ou perdoe as penas de aliados políticos que cometeram crimes graves contra o Estado democrático de direito e a administração da Justiça.
O indulto de Bolsonaro parece ser um caso claro de constitucionalismo abusivo ou, em nomenclatura mais tradicional, de abuso de direito. Ninguém pode se valer das formas previstas pela lei, ou mesmo pela Constituição, para perseguir finalidades que lhes sejam contrárias. Bolsonaro quer encurralar a Suprema Corte. Caberá a ela, com apoio da sociedade civil organizada, resistir. Não faltam bons argumentos jurídicos e políticos para tanto.
Estamos, no Brasil, em decisivo ano eleitoral. Em outubro, os brasileiros vão às urnas eletrônicas escolher o próximo presidente. O atual mandatário tentou desacreditar o sistema de votações, denunciou fraudes eleitorais sem nunca apresentar provas, vazou documentos da justiça eleitoral que estavam sob segredo de justiça, desafiou ministros do STF e do TSE, ameaçou descumprir decisões judiciais e, agora, ameaça não reconhecer o resultado oficial do pleito. Temo que estejamos assistindo a um ensaio para o golpe, gestado por um candidato que aparece rejeitado pela maioria absoluta dos eleitores e não tem qualquer apreço pela democracia.
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