Resultado de trabalho conjunto da Indigenistas Associados (INA, a associação de servidor@s da Funai) e do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), foi lançado ontem o dossiê “Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro”. Construída a partir do monitoramento da política pública indigenista ao longo dos últimos três anos e meio, a publicação “busca descrever e analisar os mecanismos utilizados pela atual gestão da Funai para tentar constranger servidores e subverter princípios basilares, constitucionalmente assegurados”. Segundo INA e INESC, foram coletados e analisados documentos oficiais, falas públicas dos atuais gestores do órgão e, ainda, “depoimentos de servidores, materiais de imprensa e publicações de organizações da sociedade civil”.
O Prefácio da obra é de autoria de Deborah Duprat, que até 2019 defendeu no Ministério Público Federal os direitos indígenas, principalmente à frente da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC).
Para baixar e ler “Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro” basta clicar no título da obra. Já o Prefácio de Deborah Duprat vai também transcrito abaixo.
***
Prefácio
Muita coisa foi produzida a respeito do desmonte da política indigenista sob o governo Bolsonaro. No dia 9 de agosto de 2021, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) ofereceu denúncia perante o Tribunal Penal Internacional, acusando o presidente da República de genocídio, sob o argumento de que, desde o início do seu mandato, ele adotou uma agenda anti-indígena.
Na ADPF 709, proposta perante o Supremo Tribunal Federal pela APIB, se afirma que os discursos do presidente da República contra os povos indígenas levaram a ondas de invasões de suas terras, inclusive no que diz respeito aos indígenas isolados e de recente contato. Aspectos relevantes acerca disso são o desmatamento e a mineração em terras indígenas demarcadas, que apresentaram um aumento considerável a partir de 2018. Dados do PRODES, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), revelam que, em 2019, a taxa anual de desmatamento (avaliada entre agosto de 2018 e julho de 2019) em toda a Amazônia foi de 34,41%, mas que esse incremento foi de 80% quando consideradas apenas as terras indígenas[1].
Relatório de 2021 produzido pelo Conselho Indigenista Missionário[2] aponta que os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” aumentaram em relação ao já alarmante número que havia sido registrado no primeiro ano do governo Bolsonaro. Foram 263 casos do tipo registrados em 2020 – um aumento em relação a 2019, quando foram contabilizados 256 casos, e um acréscimo de 137% em relação a 2018, quando haviam sido identificados 111 casos. Foram atingidas pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados.
Em 13 de setembro de 2021, durante a abertura da sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a alta comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, expressou preocupação com a situação dos indígenas brasileiros[3]. Ela, então, disse:
“No Brasil, estou alarmada com os recentes ataques contra membros dos povos Yanomami e Munduruku por mineradores ilegais na Amazônia. As tentativas de legalizar a entrada de empresas em territórios indígenas e limitar a demarcação de terras indígenas — notadamente por meio de um projeto de lei que está em análise na Câmara dos Deputados — também são motivo de séria preocupação.”
O projeto de lei a que se refere Bachelet é o PL 191/2020, apresentado pelo presidente da República, que prevê a abertura das terras indígenas para a mineração, a exploração de gás e petróleo e a construção de hidrelétricas, entre outras atividades.
O que a publicação “Fundação anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro” apresenta como novidade é a análise de toda essa situação a partir das dinâmicas produzidas no órgão indigenista. Se fosse possível sumariá-lo em torno de uma expressão, esta seria “assédio institucional”, expressão que vem sendo mobilizada para dar conta do esfacelamento do aparato burocrático por meio de múltiplas estratégias.
A primeira delas é a destruição das agências especializadas, passando aquele saber específico a ser tratado de forma difusa pelo aparato administrativo, que não é senão uma maneira de neutralizá-lo. Por isso, a primeira parte do livro é destinada a analisar a MP 870, primeiro ato normativo do governo Bolsonaro, cujo propósito era a organização da administração pública sob sua gestão. A Fundação Nacional do Índio (Funai), historicamente vinculada ao Ministério da Justiça (MJ), tem a sua supervisão transferida para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Também a atribuição que sempre esteve na Funai, de realizar a identificação e delimitação das terras indígenas, passa para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), também ficando nesse Ministério, e não mais no MJ, a competência para expedir portaria declaratória das terras indígenas. Coube, por fim, ao Mapa, e não mais à Funai, a atribuição para se manifestar como interveniente em processos de licenciamento ambiental que afetem povos indígenas. Muito embora o Congresso Nacional não tenha permitido tamanha disfuncionalidade, a obra contém capítulo específico sobre a alocação orçamentária relativa a questões indígenas no exercício de 2019, transferida açodadamente para o MMFDH e para o Mapa, inviabilizando recursos, mínimos que fossem, para o exercício das atribuições relativas às variadas demandas que envolvem a temática indígena.
O segundo aspecto ressaltado pelo livro é ainda de natureza orçamentária, ou seja, como as leis orçamentárias encaminhadas pelo governo Bolsonaro ao Congresso Nacional cuidaram intencionalmente de suprimir recursos para a temática indígena. Pela primeira vez desde a sua instituição em 1991, o PPA 2020-2023 só levou em consideração a especificidade indígena no que diz respeito à saúde, deixando descobertas todas as demais políticas. Enquanto na LOA 2019 havia um programa específico, o Programa 2065 – Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas, no PLOA 2020 toda a questão indígena vai estar sob o Programa 5034 – Proteção à vida, fortalecimento da família, promoção e defesa dos direitos humanos para todos, com redução orçamentária total em torno de 40%.
A terceira estratégia, embora presente na administração pública de maneira geral, ganha ares dramáticos na Funai: a perseguição a servidores de carreira e a sua substituição por profissionais sem experiência alguma com a política indígena. Das 39 Coordenações Regionais da Funai, apenas duas contam com chefes titulares servidores do órgão, já tendo sido nomeados 17 militares, três policiais militares, dois policiais federais e seis profissionais sem vínculo anterior com a administração pública. O presidente da Funai, Marcelo Xavier, trocou todos os cargos DAS 4 existentes no órgão, nomeando, também aqui, militares e policiais para grande parte deles. O impacto dessas nomeações na rotina dos servidores que insistiam em suas posições técnicas foi absurdo: retirados de suas atribuições, sem acesso a processos nos quais estavam envolvidos, passaram por deslocamento de funções e lotações à revelia, algumas com mudança de cidade. Além do crescimento vertiginoso dos processos administrativos disciplinares (PAD), os servidores também se viram cerceados em sua liberdade de expressão tanto no uso das redes sociais como no contato com a imprensa. A menção ao artigo 231 da Constituição [que trata das terras indígenas] foi considerada “tema polêmico” e retirada do material de divulgação de um evento virtual sobre cultura indígena. Mas não é só. Como o presidente da Funai é um policial federal, reiteradamente lavra denúncias contra os servidores solicitando a instauração de inquéritos criminais, inclusive em face de pareceres técnicos.
E, por fim, uma política geral desenvolvida pelo presidente da Funai em conformidade com os desejos, os caprichos e a vontade de Bolsonaro, todos eles voltados à não demarcação de um centímetro sequer de área indígena. Há, na publicação, um episódio que chegaria a ser engraçado, caso não se tratasse de assunto público da mais alta importância: a tentativa de impedir a cor vermelha associada à questão indígena, pouco importando que o vermelho da logomarca do Museu do Índio se refira a um grafismo do povo Kadiwéu e que as pilastras vermelhas do Centro de Formação da Funai em Sobradinho, agora pintadas de azul, sejam uma alusão ao urucum. A obra também recorda que o presidente da Funai assessorou a bancada ruralista na CPI contra o Incra e a Funai[4] e discute gestão fundiária com Nabhan Garcia, conhecido fundador da UDR[5], criada em 1985 contra os avanços do MST. Baixou a IN 09, determinando que só ingressem no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) as terras indígenas homologadas, deixando sem nenhuma proteção aquelas já identificadas, com relatório publicado, e também aquelas com portaria declaratória. A ausência delas no Sigef permite que passem para o domínio privado, como foi o objetivo da MP 910, a “MP da grilagem”, agora convertida no PL 2633/2020. Atividades típicas do órgão, como fiscalização e combate a ilícitos dentro de áreas indígenas, são inviabilizadas mediante pagamento insuficiente de diárias ou o recurso à Portaria 419/2020, que, ainda vigente, restringe o acesso às terras indígenas por conta da pandemia da Covid-19.
Enfim, esses são alguns aspectos de uma publicação excepcionalmente ampla na demonstração do desmonte de um órgão tão importante na implementação de direitos indígenas pós-Constituição de 1988. É preciso lê-la e levá-la a sério, porque o que ela denuncia, ao fim e ao cabo, é um projeto de país que se esvai.
Deborah Duprat
Referências:
[1] BRASIL. Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite. PRODES/Inpe. Disponível eletronicamente em: http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes
[2] https://cimi.org.br/2021/10/relatorioviolencia2020
[3] https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/09/4949242-onu-expressapreocupacao-com-populacao-indigena-brasileira.html
[4] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49107737
[5] http://www.Funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/6053-Funai-eministerio-da-agricultura-discutem-gestao-fundiaria
Conconrdo, tem que ser publicado e amplamente divulgado. É preciso fazer justiça. Infelizmente, casos como o que oconteceu com o indigenista Bruno Pereira e o Jornalista Dom Phillips, não são isolados , e sim, fazem parte de um contexto de desmonte de politicas públicas, de descaso com as questões ambientais, sociais e humanitárias nesse governo.
Bruno e Phillips , presente!
Imprescindível a publicação de todos os fatos aqui expostos e que sejam identificados, responsabilizado e paguem caro pelos danos causados a cada um de nós brasileiros. Somos todos, eu, você, Dom, Bruno, seduzidos por você, “Amazônia, sua linda!”🌹