Protocolos de consulta indígena na Amazônia protegem contra cooptação e atropelos à Convenção 169, defende antropólogo

Em entrevista, o antropólogo Bruno Caporrino, fala sobre seu livro recém publicado, sobre a construção do protocolo de consulta dos Wajãpi, primeiro no Brasil, e destaca a importância do processo para garantir os direitos do povos originários

Por Fábio Bispo, na InfoAmazônia

O projeto do presidente Jair Bolsonaro (PL) de promover a maior ocupação da Amazônia desde a ditadura militar pode ser considerado como um dos maiores ataques aos direitos dos povos indígenas após a promulgação da Constituição de 1988. As tentativas de violações da autodeterminação dos povos e o direito originário sobre as terras têm sido constantemente denunciadas. São projetos minerários, hidrelétricas, extração ilegal de madeira, garimpo. Violações quase sempre acompanhadas de coação, silenciamento e cooptação.

Para fazer frente à pressão e garantirem seus direitos, os povos indígenas brasileiros têm recorrido à construção de protocolos de consulta, documento que abriga garantias asseguradas pela Convenção 169 da OIT e pela Constituição e que estabelece  critérios  para escuta destas populações sobre as ações e projetos que interferem sobre suas terras e seu modo de vida.

A Convenção 169 defende os direitos de cerca de 370 milhões de indígenas distribuídos em mais de 70 países. É o maior acordo global em defesa dos povos indígenas e tribais. Entre outras garantias, a Convenção  estabelece que esses povos devem ser consultados “cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”. 

Bolsonaro tenta marcar sua gestão com a retirada do Brasil da Convenção 169 através de um projeto de decreto legislativo (PDL nº 177/2021). Além disso, o governo ainda tenta aprovar o PL 191/2020, que quer autorizar mineração, projetos de infraestrutura, hidrelétricas e até o uso de transgênicos em terras indígenas. 

Nesta entrevista ao  InfoAmazonia, o antropólogo e indigenista Bruno Caporrino aponta que esses documentos fortalecem as comunidades  sobre seus direitos e permitem uma tomada de decisão com maior poder coletivo.  “A tendência do Estado, muitas vezes, é pegar uma pessoa, dizer que ele é cacique, e tentar resolver ali”, explica.

Caporrino conviveu sete anos com o povo Wajãpi, em seu território no oeste do Amapá, onde acompanhou o processo de construção do primeiro Protocolo de Consulta e Consentimento no Brasil, finalizado em 2014. A pesquisa de mestrado virou livro: “Dos que flecham longe: o Protocolo de Consulta e Consentimento Wajãpi”, selecionado como um dos melhores trabalhos defendidos no quadriênio 2017-2020 pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e publicado em abril de 2022.

O antropólogo também  acompanha comunidades do rio Madeira e trabalhou na construção do protocolo de consulta do povo Mura, de Autazes (AM), que convive com  a ambição do megaprojeto da mineradora canadense Potássio do Brasil de explorar potássio em seus territórios.“Bons processos de consulta são diálogos respeitosos, negociações, que levam em conta saberes e organizações sociais que, assim, passam não somente a ser respeitados como salvaguardados”, explica Caporrino.

Como parâmetro legal, para definir a área de interferência em terras indígenas, atualmente o governo se vale do que estabelece a portaria 060/2015 (que define competências de licenciamento do Ibama), e só se sente obrigado a realizar consulta prévia nas terras que estejam, por exemplo, no raio de 40 quilômetros das obras de uma rodovia ou de uma hidrelétrica, mesmo que os impactos alcancem uma área reconhecidamente bem maior. No caso das mineradoras, esse limite cai para um raio de 10 quilômetros.

As organizações de defesa dos direitos dos povos indígenas e o próprio MPF e Defensoria Pública já contestaram a aplicação desses limites para reconhecer o direito de consulta, que é quando os povos têm a oportunidade de se valer do poder de decisão estabelecidos em seus protocolos.

Confira a seguir a entrevista completa com Bruno Caporrino.

InfoAmazonia – Qual é o objetivo dos protocolos de consulta dos povos indígenas?

Bruno Caporrino – A intenção dos protocolos de consulta é dar as garantias que já estão previstas no artigo primeiro da Constituição, que diz que todo o poder emana do povo, a mesma Constituição que reconhece os povos indígenas como cidadãos dotados do direito à diferença, que garante a eles cidadania e participação social. Quando juntamos isso com o conceito chave da Convenção 169 da OIT, da autodeterminação, garantimos os direitos deles tomarem decisões coletivas de acordo com o que eles próprios querem para seus territórios, para suas vidas como um todo.

A construção desses protocolos, e todo o processo de discussão, acaba se tornando uma grande oportunidade deles participarem da mensuração dos impactos que estão sujeitos de acordo com seus próprios modos de vida e conhecimentos. Como esse é um processo bastante coletivo, que deve envolver a participação do máximo de indígenas, ele também evita essas tendências de cooptação por parte dos interessados em qualquer proposta, que tendem a achar que uma liderança fala em nome do povo, ou que seja tomada uma decisão sem que todos sejam devidamente comunicados.

Costumamos imaginar que um protocolo será um documento rígido, cheio de normas. Como é possível traduzir essas questões em “regras”?

Não existe uma receita sobre como o protocolo será feito. Cada etnia tem seu contexto, sua organização social, seu percurso histórico e seus regimes de conhecimentos e relacionamentos. Em alguns lugares já existe um histórico de luta e prática acumulada em tomada de decisão, em outros há um contexto influenciado por atores externos, orientados para a cooptação, para a indução de dissidências internas com vistas ao enfraquecimento do povo. O bom protocolo é aquele que permite que todo o grupo participe, entenda e decida, de forma coletiva e consciente, o que é melhor. Para isso é preciso qualificar os moradores da terra indígena, da comunidade quilombola ou ribeirinha, e garantir que não-índios não interfiram nesse processo.

Não existe uma receita sobre como o protocolo será feito. Cada etnia tem seu contexto, sua organização social, seu percurso histórico e seus regimes de conhecimentos e relacionamentos

Quando eu comecei a trabalhar com os Wajãpi, do Amapari, povo Tupi do Amapá, eles já vinham falando em consulta prévia e citando artigos da OIT, desde antes da ratificação do Brasil na Convenção, que é de 1989 mas só foi ratificada pelo Brasil em 2002. Quando vieram as oficinas específicas sobre consulta prévia com o objetivo de conformar protocolos, eles se jogaram de cabeça. E o que eles já vinham construindo internamente há mais de 40 anos, de bloquear a influência de não-índios nos seus territórios, foi por eles sistematizado em seu protocolo.

Eles já ocupavam espaço no Conselho de Saúde, participavam das discussões sobre educação, ocupavam todos os conselhos de unidades de conservação, fóruns e espaços de participação possíveis: o Conselho do Mosaico e o Conselho de Saúde são bons exemplos dessa atuação. Eles conseguiram, por exemplo, garantir que durante os partos de mulheres indígenas fosse respeitada a tradição ancestral de enterrar o umbigo dos recém-nascidos, mesmo nos partos que acontecem nas cidades, onde a prática em saúde costuma ser sua incineração. Antes mesmo de terem o protocolo implantado eles já exerciam bem esse papel de se fazer ouvir, de participar previamente de todas as decisões de maneira orientada e organizada.

Qual é o limite da decisão de uma comunidade com base em um protocolo de consulta?

Sem o protocolo de consulta, que estabelece como eles querem tomar decisões respeitando suas modalidades e saberes tradicionais e, portanto, como querem ser ouvidos, a tendência do Estado, muitas vezes, é pegar uma pessoa, dizer que ela é o cacique, e tentar resolver ali, hipertrofiando lideranças, atrofiando outras, a fim de dividir para imperar. Reuniões com três, quatro presentes que não representam a comunidade, realizadas na cidade, a portas fechadas e onde propostas não são plenamente expostas, seus contras não são apresentados – apenas seus prós – são uma tendência. Isso não é consulta prévia, livre e informada. 

Tanto que uma das mudanças que o protocolo dos Mura traz em relação ao dos Wajãpi é a realização da pré-consulta: um momento de deliberação coletiva, consciente, antes mesmo de decidirem como desejam que tenha curso um processo de consulta. Porque eles podem inclusive decidir não serem consultados para determinadas situações, e têm o direito inquestionável inclusive de mudar a proposta submetida à consulta.  Além disso, eles também podem estabelecer níveis de tomada de decisão, como os Wajãpi fizeram em seu plano de gestão socioambiental. Tem decisão que não precisa ser coletiva, como onde vai ser colocada uma roça, casamentos etc; e ao mesmo tempo há decisões que, embora pareçam simples e pacíficas, pontuais, envolvem questões que, ao discutir, percebem serem profundas, trazendo graves perigos ou ameaças.

E o que você destacaria de específico na construção do protocolo com o povo Mura?

A cosmologia dos Mura fala em aldeias submersas, onde os botos são pajés que vivem lá embaixo, nas profundezas dos lagos e dos rios. Esses lugares sagrados fazem parte da vida desses povos, mas não aparecem em um estudo de EIA/RIMA. Os estudos são superficiais nesse sentido, de não conseguirem compreender as particularidades de cada etnia: além de ficarem restrito a um mero rito burocrático (itens a cumprir num estudo apenas pró forma), não levam em conta saberes tradicionais. Através de um protocolo, dum processo de consulta, eles podem decidir sobre quais aspectos devem ser considerados na mensuração dos impactos de qualquer proposta, envolvendo as gentes todas que habitam o cosmos, os lagos, rios, florestas, indígenas isolados, os lugares sagrados, por exemplo.

Realizar processos de construção de protocolos de consulta, como conselheiro e assessor desses povos, é  como se fosse produzir micro etnografias do contexto, do percurso histórico, das feições sociopolíticas de cada povo: cada povo tem o direito a fazer seu protocolo do seu jeito. As oficinas com os Apurinã, no Purus, onde a mineração não é tão intensa, será diferente dos Mura, e diferente de um contexto Wajãpi onde há 5 décadas estabelecem uma verdadeira etnografia de como os não-índios agem e se movem politicamente. 

Eu costumo dizer que para terem seus direitos reconhecidos, eles precisam ser conhecidos, e a melhor forma é que eles mesmo mostrem aos não-indígenas como eles são. Se desejam que seus modos sociopolíticos sejam respeitados, podem fazer seus protocolos de maneira didática, já explicando ao Estado e aos não-índios em geral como se organizam. Um bom exemplo: em seu protocolo, os Wajãpi deixam bem claro: “nós não temos um cacique geral. Nenhum Wajãpi fala em nome dos Wajãpi”, e explicam didaticamente como é sua organização social, a fim de que ela seja respeitada.

Indígenas relatam que o processo de licenciamento para obra da BR-319 não está respeitando seus direitos. Como você tem visto esse e outros casos de atropelo dos processos de consulta?

Se os indígenas fossem ouvidos como devem sobre as obras da BR-319, através de processos de consulta realmente prévia, livre, informada, de boa-fé e culturalmente adequada, segundo seus próprios protocolos de consulta, talvez eles trouxessem outras hipóteses diante do interesse do Estado de passar a rodovia por aquela região. Com certeza apresentariam outros critérios e fatores a serem considerados nos estudos de impactos. Apresentariam outras informações, cruciais a esses impactos, tendo sua cosmovisão, seus conhecimentos, respeitados, apresentariam contrapropostas, colocariam em pauta, na mesa, outros aspectos a serem considerados, como a urgência de regularização fundiária, a tendência ao aumento de malária e leishmaniose, cientificamente comprovados em casos de ocupação desenfreada de áreas na Amazônia, e que nunca são levados em conta, empobrecendo todo o processo.

Nós tendemos a imaginar que o protocolo é uma coisa fechada, para um “sim” ou um “não”, mas não é isso. Os indígenas têm sim direito de dizer não sobre o que vai impactar sobre seus territórios, organização social, conhecimentos, modos de vida e as gentes todas que sabem existir nas florestas, mas também podem dizer um “sim, contanto que:” ou “não, contanto que”. E esse é um ponto importante de se colocar outras coisas em debate: bons processos de consulta são diálogos respeitosos, negociações, que levam em conta saberes e organizações sociais que, assim, passam não somente a ser respeitados como salvaguardados, e ainda possibilitam que contrapropostas sejam feitas e os projetos sejam aperfeiçoados, mais fatores sejam considerados, coisas que sequer são consideradas se não se realiza a consulta. A verdade é que a consulta prévia enriquece qualquer projeto.

Se vão decidir fazer uma obra em uma região com aval dos indígenas, que se discuta onde os trabalhadores daquele empreendimento vão viver, que se discuta a questão das drogas, da prostituição, a leshimaniose, da malária, do trabalho infantil. Estudos recentes mostram que das 30 cidades mais violentas do Brasil, 13 delas estão na Amazônia: há muitos outros fatores a serem considerados num processo de licenciamento de uma BR como essa: regularização fundiária, políticas públicas em saúde, educação, e segurança pública adequadas. Uma BR constitui-se, na verdade, em uma verdadeira bomba relógio.

É muito mais coerente ouvir os povos do entorno desses projetos do que fazer forçado. É muito mais barato também: se as mineradoras, por exemplo, enxergassem isso, elas não passariam anos e anos paralisadas, gastando rios de dinheiro com caras bancas de advogados, para destravar suas operações que são embargadas pelo poder judiciário, com toda razão, devido à altíssima insegurança jurídica em que esses empreendimentos tentam se instalar. As barragens de Mariana e Brumadinho provam isso: o que sai mais barato? Fazer direito, com bons estudos e boas medidas de mitigação, ou ver suas ações despencarem na bolsa, perder investidores, ter o nome da empresa literalmente na lama, pagar rios (ironicamente) de dinheiro a advogados para seguir operando, e tudo isso causando impactos ambientais e sociais irreparáveis.

Antropólogo Bruno Caporrino em trabalho com o povo Wajãpi

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