Ailton Krenak: Ministério dos Povos Originários ‘tem que ter orçamento, se não vai ser só anúncio’

Importante liderança indígena brasileira, ele falou sobre as expectativas para o governo eleito em áreas como a ambiental e os direitos dos povos indígenas

Por Luana Barros, no Diário do Nordeste

Existem diversas maneiras de apresentar Ailton Krenak. Ativista, ambientalista, jornalista, escritor, poeta, professor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pela Universidade de Brasília (UnB). Liderança indígena, nasceu na região do Rio Doce, em Minas Gerais.

Desde a década de 1980, fundou e participou de diversos movimentos de luta pelos direitos indígenas, como a União das Nações Indígenas (UNI) e o Núcleo de Cultura Indígena, ONG localizada na Serra do Cipó (MG). Além da luta pelos direitos dos povos originários, tem atuação também na preservação da cultura, línguas e vida desta população.

Protagonizou uma das cenas marcantes da Assembleia Constituinte, em setembro de 1987: discursou em defesa da inclusão de um capítulo sobre a proteção dos direitos indígenas na Constituição, enquanto denunciava as sucessivas violações sofridas por estes povos no Brasil. Enquanto falava, passava tinta preta de jenipapo no rosto – produto usado por sua tribo, os Krenak, em situações de luto.

Exatos 35 anos depois, Ailton Krenak continua a defender que o direito à demarcação de terras continua a ser a principal demanda dos povos indígenas. Esse é o principal tema do “Capítulo dos Índios”, na Constituição Brasileira aprovada em 1988 – um marco na luta dos povos indígenas incluído após a luta não apenas de Krenak como de muitas outras lideranças indígenas.

Krenak defende, inclusive, que o presidente eleito Lula tem poder – dado pelo mesmo texto constitucional – de fazer um reconhecimento único de todos esses territórios. Um “ato de reconhecimento único”, que “reconhece todas de uma vez só”. Elogia o anúncio de criação de um Ministério dos Povos Originários, uma pasta voltada “de maneira radical” a estes povos, como define. Mas pondera que é preciso mais do que apenas o anúncio.

 

“O Ministério dos Povos Originários nasce do zero. Ele não tem ninguém. Ele é uma palavra do presidente da República. (…) Independente de quem seja a pessoa, tem que ter prestígio, tem que ter um orçamento, porque se não vai ser só um anúncio”.

AILTON KRENAK
Escritor e liderança indígena

 

Krenak esteve em Fortaleza entre os dias 25 e 27 de novembro para participar do seminário “Desnaturada – Cultura & Natureza”, do qual também foi curador junto ao secretário de Cultura do Ceará, Fabiano Piúba.

Antes da abertura do evento, ele conversou com o Diário do Nordeste a respeito das expectativas para o novo governo no Palácio do Planalto não só no que se refere aos direitos dos povos indígenas, mas também na preservação ambiental e no enfrentamento a problemas relacionados à questão climática.

As questões ambientais e climáticas têm sido um tema mais frequente nos discursos de políticos. Como você acredita que deveria ser o olhar dessas pessoas que estão em posições de poder institucional para a natureza, pensando a preservação dela e a necessidade de enfrentamento dos problemas que enfrentamos? 

Se a gente tomar como exemplo as últimas Conferências do Clima – podemos inclusive ler os documentos que têm as declarações que saem dessas conferências –, vamos observar que nenhum líder político para pra refletir sobre isso. Eles atravessam o debate com objetivos bem específicos: a economia e a política. E dentro dessas duas linhas de pensamento, a responsabilidade ambiental não aparece em nenhuma linha.

Tanto que a COP 27, no Egito, foi uma decepção, uma frustração dos movimentos sociais que acreditavam que de lá ia sair alguma decisão importante em relação a mudança do clima no planeta e que houvesse uma clara declaração de que os países, principalmente os ricos, tinham que abandonar as fontes de energia que são de origem fóssil. quer dizer, tudo que é carbono.

A gente tinha que sair dessa economia do carbono, migrar desse lugar miserável. Mas o que aconteceu é que não houve nenhum comprometimento com relação a essa meta.

 

Talvez a gente ainda demore mais 40 ou 50 anos para admitirem uma meta, com definição de prazo mesmo, para os países abandonarem o uso de tecnologias e de meios que continuam consumindo a energia fóssil, o combustível fóssil.

 

Você mencionou o âmbito mundial, mas e no Brasil? Qual o olhar que falta em Brasília para essas questões?

Bom, não tem coisa mais imprecisa do que falar em Brasília hoje. Porque estamos entre o fim de um mandato predatório de tudo que se imagina como meio ambiente, estamos no fim de uma experiência em que o governo atuou deliberadamente para queimar o Pantanal, deixar a porteira aberta e predar a Amazônia. E fazer um elogio do agronegócio. Onde o Congresso era ocupado por uma bancada da Bala, uma bancada da Bíblia e outras bancadas desse gênero. Então, quando você me pergunta de Brasília, a gente precisava olhar de perto e falar: de que Brasília estamos falando?

 

Temos um presidente eleito que já representou um alívio imediato para os nossos pesadelos. É claro que a eleição do presidente Lula cria, no mundo inteiro, uma expectativa de que a Amazônia vai ter outro tratamento, que a questão ambiental no Brasil vai recolocar-se como uma relevância global, influenciando os outros países da Bacia Amazônica, inclusive.

 

Mas é interessante a gente ver como estamos sendo influenciados também com relação ao que novo presidente da Colômbia, nova liderança política da América Latina, (Gustavo) Petro, onde ele diz que temos que pensar a Amazônia em uma perspectiva ampla, Pan Amazônica. Onde vai a Bolívia, o Peru, a Colômbia, o Equador, outros países vizinhos ali do Caribe, porque eles são membros de um acordo chamado Pacto Amazônico.

Só que eles foram abandonados pelos últimos 20 anos, inclusive pegando o resto do mandato do Fernando Henrique (Cardoso) e os mandatos do Lula e da Dilma (Rousseff), a Amazônia foi tratada como se fosse um condomínio brasileiro. Quando o Brasil fez (a Hidrelétrica de) Belo Monte, quando construiu a barragem, da hidrelétrica de Santo Antônio e de Jirau (ambas em Rondônia), ele usou águas que nascem na Bolívia.

Ele criou um drama ecológico e teve que negociar com (o presidente da Bolívia) Evo Morales a licença para essa grande barragem em Rondônia, mas o Brasil atuou como se fosse um gerente no bioma amazônico.

Ele não fez isso como um irmão, não fez isso como um membro ativo de um conjunto de nações interessadas na melhoria da vida dos seus povos e no desenvolvimento de tecnologias que fossem compatíveis com manter a floresta em pé. Os nossos países vizinhos, por razões econômicas e históricas, não constroem barragens do tamanho de Belo Monte. É o Brasil que constrói. Mas eles também são Amazônia.

Então, quando a gente toca na questão ambiental e pensa na responsabilidade do Brasil com relação à Amazônia, nós mesmos, cidadãos comuns, deveríamos pensar se não estamos muito viciados na ideia de que a Amazônia é um condomínio do Brasil. Não é. A Amazônia é um bioma imenso, ela está dentro do território de nove países. Como o Brasil sozinho pode decidir o que vai fazer com a Amazônia?

Vai ver foi por isso que a gente caiu naquela armadilha de ter um cara como o (presidente Jair) Bolsonaro arrebentando com a floresta, predando com a floresta Amazônica e ainda criando incompatibilidade com os países vizinhos. Sacaneando a Venezuela, detonando com a Bolívia, com o Chile, fazendo piadas sobre os nossos vizinhos.

E você tem expectativa de mudança para o novo Governo?

Eu espero que o presidente Lula tenha saúde, disposição e apoio popular para dar um revogaço em tudo que esses caras largaram de lixo para trás, inclusive responsabilizar gente como o (ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo) Salles, que foi se esconder atrás de um mandato parlamentar no Congresso, mas que é um criminoso.

O que ele fez de ‘deixar a porteira aberta’, ‘deixa o pau quebrar’, aquilo lá é uma declaração de desprezo pela vida e de total desrespeito com o povo indígena. Os povos indígenas sofreram com aquela declaração de ‘deixar a porteira aberta’.

Ela foi uma senha para garimpeiros, madeireiros, mineradores avançarem para cima das terras indígenas exatamente no bioma Amazônico. Sem falar no Pantanal. (…) Diante da senha de um ministro do Meio Ambiente que fala ‘deixa a porteira aberta’, que prioridade que vai ver na política brasileira nos últimos seis anos? Porque dá para pegar o período do (ex-presidente Michel) Temer também. Temer, Bolsonaro, todo esse desastre político que nós tivemos que suportar e está à beira de uma transição.

Tomara que possamos ter outra agenda em relação à floresta e também do ambiente compartilhado nos outros biomas. No Cerrado, na Mata Atlântica, no Pantanal mesmo. (…)

A opinião pública internacional agora está conseguindo aferir a diferença entre um governo venal e um governo popular, que espero que seja o que o Lula venha fazer imediatamente após a sua posse, que é dar de novo relevância ao ICMBio, ao Ministério do Meio Ambiente, as agências regionais de fiscalização, proteção, conservação de diferentes biomas que nós temos. É isso que espero.

Falando sobre os povos indígenas, nos últimos anos também não houve nenhuma demarcação de território indígena. Agora, por outro lado, o governo eleito fala inclusive da criação de um Ministério dos Povos Originários. Qual avaliação você faz desse ministério? E quais deveriam ser as prioridades na atuação dele?

Só o fato do presidente Lula anunciar a criação de um ministério voltado para a questão indígena de uma maneira radical já causou um efeito positivo imenso. A população indígena do nosso País estava acuada, ameaçada de genocídio por um governo criminoso. Vem um presidente eleito e diz que vai criar um ministério dos Povos Originários, é como sair do inferno para o céu em um lapso de tempo.

E ainda coincidiu com a eleição da Sônia Guajajara e da Célia Xakriabá para um mandato no Congresso (como deputadas federais). Quer dizer, é uma mudança da água para o vinho. Ou, quem gosta mais da água, do vinho para a água (risos).

 

Significa uma possibilidade real de mudar a relação do Estado brasileiro com as sociedades indígenas, com os povos originários. Quer dizer, um empoderamento visível do lugar de fala dessas mulheres indígenas, porque agora elas vão ocupar o púlpito do Congresso Nacional, elas vão debater com os parlamentares que representam o agronegócio, a indústria. E são mulheres! O fato de serem indígenas já é um regaço. Agora, elas são mulheres. Isso é uma mudança que não pode ser tratada como rotina.

 

Quando foi no Brasil que a gente experimentou uma mudança tão rápida de contexto em que indígenas, negros, mulheres, a questão de gênero, ganhou relevância? Vai ver o tanto de pessoas que fazem política de gênero que foram eleitas agora, que estão engajadas nisso. Então, a gente deixa de ser uma república cretina, de debates machistas, homofóbicos e racistas e abre uma discussão onde esses corpos flagelados vão ser a voz lá dentro do Congresso. Então, muda muito.

Quando a gente pensa em “Desnaturada” (nome do seminário do qual foi curador e participou no final de novembro em Fortaleza), a gente pensa também em uma restauração da relação vital entre a ideia do feminino, das mulheres se empoderando, debatendo em Brasília, confrontando o pensamento do patriarcado em Brasília. Acho que a gente abre sim uma esperança equilibrista em direção a outras narrativas sobre política e sobre os direitos indígenas.

Esse Ministério dos Povos Originários, eu não tenho ideia de como vai ser a arquitetura. Ele não existiu. É diferente de convidar alguém para dirigir o Ministério do Meio Ambiente, porque ele foi sucateado, mas sabemos o que é o Ministério do Meio Ambiente. O que é o ICMBio, o Ibama… Porque são agências públicas que já tiveram função, já tiveram estrutura física espalhada pelo País inteiro e, muito provavelmente, alguns milhares de servidores vinculados a essas instituições.

O Ministério dos Povos Originários nasce do zero. Ele não tem ninguém. Ele é uma palavra do presidente da República. (…) Ele pode dar posse para alguém, chamar alguém e dizer ‘fulano é o ministro dos Povos Originários’. Cumprimenta, assina o ato de posse e deixa ele sentado em uma cadeira da sala de cinema. Ele pode dar entrevistas daqui mesmo. (A entrevista com Krenak foi em uma das salas de cinema do Centro Dragão do Mar).

E aí, pergunta: o que ele tem? Qual orçamento ele tem? (…) Porque eu me lembro que quando Gilberto Gil aceitou ser ministro da Cultura, todo mundo fez ‘óóóóó’. Aí ele chegou lá e não tinha orçamento. (…) O Gil olhou para um lado, olhou para o outro e disse ‘então, eu sou ministro sem nada? ‘Não, tá aí o prédio, fica aí’. No caso do Ministério dos Povos Originários, nem prédio tem. Pode ser só uma cadeira.

Eu não acredito que o presidente esteja brincando com isso, é muita responsabilidade ele dizer que vai criar o ministério. Então, ele tem que designar orçamento. Agora, eles estão lá nos grupos de transição, algumas dessas pessoas que já mencionei aqui estão participando dos grupos de trabalho e devem estar fazendo algum apontamento sobre o orçamento para o primeiro mandato dessa nova pasta dos Povos Originários.

Independente de quem seja a pessoa, tem que ter prestígio, tem que ter um orçamento, porque se não vai ser só um anúncio. (…)

 

Criar ministério é um ato  de deliberação do presidente da República. Tem alguns que criam dezenas, tem alguns que não criam nenhum. Para a gente não ficar também colocando a maior fé. “Ah, criou o ministério dos Povos Originários”, alguém podia dizer “e daí?”. E daí?

 

Existe uma importância da relação dos povos indígenas com a terra. E a demarcação dos territórios é uma pauta muito forte do movimento indígena. É a mais importante para esse próximo governo? Ou existem outras que você considera prioritárias?

Eu acho que continua sendo a mais importante. Imagina se o presidente Lula tomasse a decisão de aplicar o capítulo dos direitos indígenas na nossa Constituição, em que foi estabelecido um prazo de cinco anos para o Estado brasileiro concluir a demarcação de todas as terras indígenas no nosso país?

É claro que já estamos chegando a 30 anos e o Brasil não concluiu esse processo, porque ele é burocrático e foi judicializado pelo Marco Temporal.

No debate sobre o reconhecimento da Raposa Serra do Sol, a terra dos Macuxi, dos Wapichanas em Roraima, os arrozeiros, os latifundiários entraram com questão jurídica de que eles também queriam reclamar algum direito. E os ministros (do Supremo Tribunal Federal) concederam, abriram brecha para isso e virou essa monstruosidade do Marco Temporal que não é uma lei, é só um rolo. Tem gente que chama de excrescência jurídica. É uma malandragem.

 

O presidente da República deveria, no ‘revogaço’ dele, acabar com toda essa conversa fiada e num ato declaratório – isso é um poder do Executivo, o presidente da República tem esse poder, pela Constituição -, ele pode dizer: “estão reconhecidas todas as terras indígenas existentes no território do Brasil e, em ato contínuo, vão ser constituídos grupos de trabalho e o desenvolvimento dos mecanismos práticos para demarcação física”. Porque o ato de reconhecimento é único e reconhece todas de uma vez só. Pronto.

 

(…) Existe um uma coisa chamada SPU que é o Serviço do Patrimônio da União. É um cartório onde estão registrados todos os bens patrimoniais da União brasileira, do Estado brasileiro que não podem ser apropriados por particulares. As terras indígenas são patrimônio da União. As terras indígenas não são dos índios, as terras indígenas são do Estado brasileiro.

Se disserem “ah, mas o presidente que não demarcou fisicamente essas terras”, ele (presidente) pode dizer “eu não preciso demarcar, são terras da União e quem invadir está invadindo terra da União”.

Já viram a placa que fica na porta das reservas indígenas? Não? Então, eu vou citar pra vocês o texto da placa: “Ministério da Justiça. Fundação Nacional do Índio. Terra indígena. Registro no Serviço do Patrimônio da União”. Não é uma propriedade particular. Agora se você for no latifúndio tem uma placa dizendo assim: “Não entre. Propriedade privada”

 

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