Por Elaíze Farias, na Amazônia Real
Manaus (AM) – Alfino Yanomami não vê a hora de estar em casa. Curado da malária, o indígena já recuperou sua fala ligeira, fácil de notar quando ele diz estar bem e ansioso para rever a aldeia Porapi, na região do Surucucu, na Terra Indígena Yanomami (TIY). Ele está na Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista, há dez meses, e não pode retornar por falta de transporte aéreo para sua comunidade. “Já queremos voltar”, pediu, em declaração dada à Amazônia Real.
Na Casai Yanomami, que abriga atualmente 687 indígenas (entre pacientes e acompanhantes), para um local que tem capacidade máxima de um pouco mais de 200 pessoas, as condições insalubres e precárias tornam dolorosa a permanência de Alfino e outros indígenas no local. Ele está acompanhado dos filhos e da mulher, Rosana. Todos afirmam estar ansiosos em voltar para a casa, mesmo sabendo que o que vão encontrar na TIY é uma área destruída pelo garimpo. O indígena Yanomami conta que na sua aldeia, composta por cerca de 30 pessoas, “está tudo acabado” por causa do garimpo. “Tudo foi contaminado. Rio, peixe. Não dá para mexer com nada.”
No dia 14 de fevereiro, quando a reportagem conversou com o indígena, a Casai Yanomami estava lotada. Nesta quinta-feira (23), mais de uma semana após a primeira entrevista, o retorno da família de Alfino ainda era incerto. Eles continuam na Casai, cuja estrutura tem sofrido com a precariedade de suas instalações, incluindo goteiras neste período de chuva em Boa Vista.
Com acesso ao interior da Casai proibido para a imprensa, Alfino concedeu a entrevista à Amazônia Real na área externa do local, com apoio de Nilo Yawari, que também é Yanomami. Foi ele quem trouxe a família de Alfino para conversar com a reportagem na área externa do local e fez a tradução.
Nilo explica a ansiedade pelo retorno: “Eles querem voltar porque estão cansados e porque está muito lotado também aqui, muito cheio”.
Do lado de fora, apenas dá para visualizar o Hospital de Campanha, das Forças Armadas, de atendimento emergencial e um indo e vindo de carros de autoridades do governo. O Hospital foi instalado no início de fevereiro para atender o alto fluxo de indígenas Yanomami doentes removidos da terra indígena.
Alfino fala rápido, e sua mulher, o acompanha. Ela repete, agitada, o que o marido diz sobre o garimpo, enfatizando: “Queremos que eles [garimpeiros] saiam de lá”.
O próprio Nilo está alojado na Casai temporariamente, acompanhando a irmã que se recupera de leishmaniose. Ele é da região do rio Demini, no norte do Amazonas, e mora há dez anos em Boa Vista. Nilo Yawari é frequentemente solicitado nos hospitais para ajudar na comunicação com pacientes pertencentes ao seu povo, que soma quase 20 mil pessoas somente no lado brasileiro. E não é fácil encontrar um tradutor.
A comunicação com os Yanomami em trânsito em Boa Vista é um dos problemas a ser enfrentado por gestores públicos, especialmente da área de saúde. A barreira da língua, poucos tradutores e a falta de compreensão por parte dos não indígenas sobre sua lógica própria de pensar e de se expressar formam alguns dos maiores obstáculos.
Na mesma tarde em que acompanhou a reportagem, Nilo foi chamado às pressas no Hospital Geral de Roraima, unidade de saúde de Roraima. Um paciente Yanomami que fora atropelado seria extubado e os médicos e enfermeiros precisavam de alguém para se comunicar com ele. “Estive lá, mas não foi preciso. Ele ainda estava cansado e não conseguiu falar”, relatou depois, ao sair do hospital.
O pedido de Alfino e de sua família para voltar à TIY destruída pode surpreender à primeira vista. O que vão encontrar quando voltar à sua aldeia, o próprio Yanonami já sabe: rios contaminados, água suja e pouca fonte de alimentação. Para quem não conhece a cultura e a cosmologia dos Yanomami, pode ficar intrigado com sua insistência em voltar. Então, para onde ir?
Dário Yanomami, liderança indígena e vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, afirma que pode levar 4, 20, 30 anos, mas a natureza vai recuperar. As ações emergenciais, para atender a curto prazo, precisam ser, preferencialmente, mais remédios para curar as doenças e recuperar a água potável de poço artesiano.
“Se agora tiver 20 anos para a frente, a própria natureza vai recuperar a vida da Terra. Eu não sei qual será a consequência do veneno abaixo da água, o mercúrio. Mas o governo tem que ajudar os Yanomami, fazer poço artesiano, para eles tomarem água”, disse ele, à Amazônia Real.
Casai tem goteiras e paredes sujas
Localizada a 20 minutos de carro do centro de Boa Vista e a quase duas horas a pé, a Casai Yanomami fica em uma área ao lado do Campus do Cauamé da Universidade Federal de Roraima (UFRR), na zona rural da cidade de Boa Vista.
As instalações da Casai Yanomami sofrem com a precariedade física facilmente observada e que não deixa de espelhar outras Casais que fazem parte do subsistema de saúde indígena do País. Essas unidades são marcadas pela superlotação, por espaços pequenos e insuficientes e não adaptados à cultura indígena. Os telhados têm forros com goteiras, as paredes estão sujas e falta lugar para armar as redes das pessoas, conforme imagens feitas pela liderança Júnior Yanomami, disponibilizadas à Amazônia Real. O banheiro, usado inclusive por crianças, está sem higiene.
Os Yanomami não costumam dormir em camas; preferem redes, onde se sentem mais confortáveis. O longo tempo de espera – que chega a durar meses – os leva ao ócio e ao tédio, situação que os encoraja a querer conhecer outros contextos fora de sua realidade na área urbana. A Amazônia Real levantou com indigenistas que pediram para não ser identificados que é comum os pacientes e acompanhantes ficarem do lado de fora da Casai, “passando o tempo”. Às vezes, eles decidem ir para a cidade, onde acabam empurrados ao contato com bebidas alcoólicas.
“Muitos querem ir embora. Estão de alta. Há muito tempo estão aqui. Há muitos buracos. Quando chove, cai muita água nos pacientes. A noite é ruim para eles dormirem. Reclamaram de comida, mal feita”, diz Júnior Yanomami, em um vídeo gravado dentro de uma das instalações da Casai Yanomami.
Desde o decreto emergencial de atenção à saúde Yanomami, como parte das ações de combate à crise humanitária que se abateu sobre o povo, várias medidas foram tomadas para atender os indígenas pelo governo federal. Foi instalado o Centro de Operações Emergenciais (COE), que é coordenado pelo Ministério da Saúde.
Além de atendimentos do Hospital de Campanha, foram criadas ações nos polos bases das regiões de Auaris, Surucucu e Missão Catrimani. Na última segunda-feira (20), o Ministério da Saúde divulgou nota dizendo que “mais de cinco mil atendimentos médicos aos indígenas encontrados em grave situação de desassistência foram realizados na região”.
No início de fevereiro, o Ministério da Saúde apontou em seu relatório as estruturas precárias na Casai. Em coletiva dada no dia 7, quando esteve em Boa Vista, o titular da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Ricardo Weipe Tapeba, admitiu uma “situação de muita precariedade”. Ele disse que estaria realizando, a partir de um plano, “melhorias”.
“A nossa roça está muito pequena”
Fazia um tempo úmido e abafado, com chuvas ocasionais, quando a Amazônia Real visitou Boa Vista. Numa dessas tardes de fevereiro, um grupo de dez rapazes Yanomami retornava a pé do centro da capital de Roraima. Eles tinham ido conhecer a cidade e retornavam à Casai, onde estão desde janeiro deste ano, acompanhando parentes que estão doentes. Caminhavam de sandália pela estrada, possivelmente durante mais de uma hora, que é um tempo certamente pequeno para quem está acostumado a andar vários dias na floresta fechada, caçando e se deslocando entre as aldeias dentro da TI Yanomami.
Um deles é Jonas Yanomami, de 22 anos, que veio da região de Surucucu, onde domina o garimpo que leva destruição à terra indígena. Com um cabelo tingido ou queimado de sol, ele logo assume o papel de “líder do grupo” em conversa com a reportagem. A via tem pouco movimento e eles se previnem sempre andando na margem de chão batido, em pequenas filas.
Jonas é um dos poucos que falam um português razoável. “Queremos que o (presidente) Lula tire os garimpeiros da nossa comunidade, parente. Estamos esperando!”, diz imediatamente ao ser abordado pela reportagem.
Maurinho Yanomami, outro na casa dos 20 e poucos anos, está na Casai acompanhando o filho doente de malária. Ele também veio de Surucucu. “A nossa roça está muito pequena. Tem pouca caça. Mataram os peixes porque os rios estão cheios de garimpo. Está tudo sujo”, respondeu com voz firme.
O grupo daqueles dez rapazes exibia um brilho de juventude e bom humor que escondia o horror que eles sofrem nas aldeias. Uma conversa rápida sobre o assunto “garimpo” muda suas expressões e eles rapidamente sentenciam: “Garimpeiro acabou com nosso peixe”.
Desde o fim de janeiro, os Yanomami deixaram de ser assunto secundário para ocupar espaços da imprensa, das redes sociais e das medidas emergenciais das autoridades públicas. A catástrofe do garimpo e dos crimes brutais dentro do território – que incluem ameaças, estupros e assassinatos – já não podiam mais ser escondidos.
A tragédia estampada em fotos de indígenas esquálidos pela “doença do garimpo”, enfim, causou repercussão global no Brasil e no mundo que líderes como Davi Kopenawa Yanomami denunciava havia vários anos, sem ter a resposta desejada. Virou pauta obrigatória da imprensa nacional e da sociedade.
Nesta quinta-feira (23), o Ministério da Saúde respondeu à reportagem que atualmente há 687 indígenas na Casai Yanomami – 364 são pacientes e 300 acompanhantes. O órgão disse que 23 tiveram alta.
A Amazônia Real solicitou informações complementares, tais como: quantos indígenas que tiveram alta já voltaram para suas comunidades; qual a média de tempo de espera para a remoção; as dificuldades para o transporte. Além disso, pediu o número oficial de óbitos de Yanomami em tratamento de saúde nos meses de janeiro e fevereiro de 2023, tanto em Boa Vista quanto nos territórios.
No dia 24 de janeiro, o secretário da Sesai Webe Tabepa declarou que “mais de mil Yanomami foram resgatados” na missão humanitária. A reportagem solicitou informações de quantos indígenas foram resgatados até o momento, desde aquela primeira data da declaração do secretário da Sesai. Também pediu informações sobre o estado da estrutura da Casai Yanomami e o que o Ministério da Saúde vai fazer a respeito.
Até a publicação desta reportagem, o Ministério da Saúde não respondeu. Ela será atualizada quando vierem as informações.
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Lula faz pronunciamento ao lado da comitiva de ministros e de lideranças indígenas.
Crédito, Ricardo Stuckert/PR