Manifesto assinado por 100 entidades da sociedade civil pede que presidente considere importância da representatividade para o cargo; mulheres negras trazem vivência que nenhum tribunal tem, diz jurista
Por Gil Luiz Mendes, na Ponte
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem em mãos a oportunidade de entrar para a história como o primeiro presidente a indicar uma mulher negra para ocupar uma cadeira na mais alta corte do país. Com a aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski em maio, Lula terá que indicar um novo nome para integrar o Supremo Tribunal Federal (STF).
“Evidentemente, há muitas mulheres negras com notório saber jurídico e reputação ilibada, que assim preenchem os requisitos constitucionais para serem Ministras do STF. Ademais, muitas são também comprometidas com o espírito emancipatório e progressista inerente à nossa Constituição Federal e com os direitos de trabalhadoras e trabalhadores em geral, foco desse Governo de Reconstrução”, diz um trecho da carta.
“A Justiça também pode ser tida e representada por uma mulher negra. Hoje, a sociedade e o sistema de justiça reverberam essa necessidade de se ter uma jurista negra na mais alta corte do país. Isso significa que nossos corpos de mulheres negras, que eram vistos como indesejáveis e impossíveis de ocupar determinadas espaços, podem e devem ocupar esses lugares que foram negligenciados até hoje”, comenta a advogada Cláudia Luna, diretora da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ).
“Além de significar uma ruptura nesse ideal escravocrata que persegue as mulheres negras, é também ter uma representação feminina negra em um lugar importantíssimo de poder e de tomada de decisão”, enfatiza Silvia Souza, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil. (OAB).
Histórico branco e masculino
O Supremo Tribunal Federal, no moldes atuais, existe há 132 anos, desde que foi instalado em 28 de fevereiro de 1891. Desde então 167 pessoas já exerceram o cargo de ministro da suprema corte. Dessas, apenas 3 eram negras e, até hoje, somente três mulheres assumiram o posto mais alto do poder judiciário brasileiro
Em 1907, Pedro Lessa foi a primeiro negro a fazer parte do Supremo Tribunal Federal, onde ficou até 1921. Há mais de uma século atrás a alta corte do país chegou a ter dois negros simultânemente no tribunal durante dois anos. Em 1919, Hermenegildo de Barros assumiu uma cadeira no STF. Só em 2003 o STF viria a ter outro homem negro entre os seus integrantes, quando o presidente Lula indicou o então procurador da República Joaquim Barbosa.
O Supremo só veio a ter uma mulher entre seus ministros durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. No final do ano 2000 Ellen Gracie tomou posse como sendo a primeira mulher a se tornar ministra do STF. Depois dela vieram Carmen Lúcia, indicada em 2006 por Lula, e Rosa Weber, que hoje preside o tribunal, que foi indicada pela presidenta Dilma Rousseff em 2011.
Critérios técnicos, influência política
Teoricamente, os únicos requisitos imprescindíveis para que alguém assuma uma cadeira como ministro do Supremo são ter mais de 35 anos, ser brasileiro nato, ter notório saber jurídico e passar pelo crivo do Senado Federal. Porém, interferências políticas e lobbys são comuns para a escolha de um novo membro do STF.
As escolhas de Kassio Nunes e André Mendonça durante o governo de Jair Bolsonaro tiveram influências diretas da bancada do Centrão no Congresso e de igrejas evangélicas. Dias Toffoli, antes de ser indicado por Lula, era advogado-geral da União.
Até o momento Lula tem manifestado que seu nome preferido para assumir a vaga que será aberta em maio é o advogado Cristiano Zanin, que atuou na defesa do presidente no inquérito da Lava Jato que acusava Lula de corrupção no caso do triplex do Guarujá e no sítio de Atibaia.
O manifesto lançado no começo do mês por entidades jurídicas e movimentos sociais também serve como uma forma de influenciar a decisão que será tomada por Lula ainda neste semestre. “O manifesto teve uma adesão importantíssima da ministra Anielle Franco [Igualdade Racial] e do ministro Silvio Almeida [Direitos Humanos]. É um movimento que partiu de um grupo de juristas negras que querem se ver representadas”, afirma Silvia Souza.
“Cabe ao presidente da República e ao Senado Federal decidir. Claro que, sempre que nós pudermos ampliar a presença das mulheres, é extremamente positivo. E também a presença negra, é importante e relevante”, disse a jornalistas o vice-presidente da república Geraldo Alckmin (PSB) em um evento dias após a publicação do manifesto.
Presença negra no judiciário
A presença de pessoas negras no judiciário brasileiro está substancialmente abaixo da proporção desse grupo no território nacional. Dados do IBGE mostram que pretos e pardos correspondem a 56,1% da população, enquanto no judiciário, segundo pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça divulgada em 2021, apenas 12,8% dos magistrados no Brasil se declaram negros.
O número ainda é mais baixo se tratando de mulheres. A mesma pesquisa mostra que, dos 1.563 desembargadores do Brasil, apenas 45, ou seja, 2,8% do total, são mulheres negras, e, num universo de quase 3.265 juízas titulares, apenas 365 se declaram como negras. Esperança Garcia, considerada a primeira advogada brasileira, era uma mulher negra e escravizada — uma petição feita por ela ao governo do Piauí foi registrada em 1770. Demorou quase dois séculos desde Esperança para que o Brasil empossasse sua primeira juíza negra, Mary Aguiar Silva, em 1962, que atuou até 1995 e chegou ao cargo de desembargadora.
“Os tribunais precisam ter mulheres negras porque falta essa perspectiva nos espaços de poder e no sistema de justiça como um todo. Isso mostra uma vivência que nenhum tribunal tem. Nós já tivemos a experiência de ter homens negros nesses espaços, mas nunca houve uma mulher com uma perpsctiva que só uma negra pode ter para determinados casos”, explica Cláudia Luna.
Como exemplo de como a presença de uma mulher negra seria fundamental para decisões tomadas dentro do Supremo Tribunal Federal, Silvia Souza cita o atual julgamento da questão do perfilamento racial, que trata de abordagens policiais que se baseiam apenas no fato de o enquadrado ser uma pessoa negra. O julgamento está suspenso após o ministro Luiz Fux pedir vistas.
“São 11 pessoas brancas decidindo sobre algo que interfere diretamente a vida da população negra do país. Essa caso trata da discriminação indireta e infelizmente os ministros não tem essa visão baseada em um letramento racial suficiente”, analisa Silvia Souza.
Nomes cogitados
A possibilidade de haver uma mulher negra pela primeira vez dentro da mais alta corte do país vem trazendo debates e especulações, dentro do meio jurídico e político, de nomes que poderiam ocupar a vaga deixada por Lewandowski. Conversas de bastidores levantadas pela Ponte apontam para três nomes que estariam sendo cogitados para ser levados ao presidente da República:
Um desses nomes seria da advogada baiana Vera Lúcia Araújo. No ano passado ela esteve em uma lista tríplice para uma vaga no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas acabou não sendo escolhida pelo então presidente Jair Bolsonaro. Ela já ocupou o cargo de secretária-adjunta de Igualdade Racial do Distrito Federal e também trabalhou como diretora executiva da Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso.
Outro nome levantado é o da juíza do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) Karen Luise Vilanova Batista de Souza. A magistrada é uma das coordenadoras do Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (Enajun) e é auxiliar da ministra Rosa Weber no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), além de ter participado de um grupo de trabalho no CNJ para propor medidas de combate ao racismo.
Doutora em direito penal e professora da PUC-RJ, a Juíza Federal Titular da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro Adriana Cruz também tem seu nome entre as cotadas para assumir a vaga no STF. Adriana é reconhecida por sua atuação acadêmica e por seu trabalho no Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário.
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