Morosidade, orçamento insuficiente e frágil política fundiária marcam o lento avanço do Estado brasileiro em assegurar o direito aos territórios tradicionais
Terra de Direitos
Caso o Estado brasileiro mantenha o atual ritmo de regularização fundiária dos territórios quilombolas serão necessários 2.188 anos para titular integralmente os 1.802 processos abertos no momento no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Caso seja considerado o avanço de titulações parciais dos territórios quilombolas com processos na autarquia federal o tempo necessário é de 1.156 anos.
Em 34 anos, desde que o direito ao território tradicional quilombola foi reconhecido na Constituição Federal de 1988, apenas 53 territórios foram titulados (parcial ou total) pelo Incra, órgão federal responsável pela regularização fundiária quilombola. O dado não contabiliza processos de regularização fundiária quilombola de atribuição de estados e municípios ou de comunidades que não tiveram certificação da Fundação Palmares e, portanto, não deram entrada no processo administrativo no Incra.
Dos 53 títulos emitidos pelo Incra, 25 são títulos parciais, ou seja, o título compreende apenas parte da área do território a que uma comunidade quilombola tem direito reconhecido pelo Estado brasileiro. Em 8 destes 25 territórios com titulação parcial o título refere-se a menos de 15% da área total de direito. É o caso do território tradicional Brejo dos Negros, localizado em Brejo Grande (SE), que detém o título de apenas 0,24% do território apontado no processo administrativo.
Com uma desigual estrutura fundiária marcada pela racialização do acesso à terra, a violação do direito ao território tradicional para as comunidades negras rurais e urbanas com identidade própria que lutam há séculos pela terra têm sido uma constante pelo Estado brasileiro. Ainda que assegurado na Constituição Federal, regulamentado pelo Decreto 4.887/2003 e com atribuições definidas aos diferentes órgãos de governo, a conclusão de um processo de titulação quilombola dos territórios tradicionais pelo Incra costuma levar muitos anos, mesmo décadas.
Ao observar o avanço na conclusão das seis etapas necessárias para um território quilombola ter o título emitido, é possível identificar como poucos processos abertos no Incra chegam à etapa final. De acordo com dados do Incra 2.849 comunidades foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares – etapa inicial, de autoreconhecimento pela comunidade. As etapas seguintes, de atribuição da autarquia federal, apresentam números bem menores. Apenas 307 territórios quilombolas foram identificados e delimitados (publicação do RTID), 164 foram reconhecidos por decreto, 89 declarados de interesse social (publicação de portaria) e apenas 47 foram titulados (pós publicação Decreto 4.887/2003). Somado os 06 territórios titulados entre o período anterior à publicação do Decreto (período de 1988 a 2003), o país contabiliza apenas 53 territórios com título integral ou parcial.
O ônus da morosidade, apontam organizações, recai exclusivamente sob as comunidades quilombolas. Sem o título, muitas políticas públicas necessárias para sobrevivência, trabalho e permanência das famílias nas comunidades não chegam aos territórios. É o caso da emissão da nota do produtor pela Comunidade quilombola de Gramadinho (PR). A Secretaria da Fazendo do Estado do Paraná (Sefaz-PR) exige, como documento necessário para a solicitação de inscrição do Cadastro do Produtor Rural (CAD/PRO), que uma comunidade quilombola apresente o título de reconhecimento do território tradicional. Como a comunidade não possui o título e, portanto, o cadastro, as famílias não conseguem emitir nota do produtor para comercialização dos alimentos agroecológicos e sair assim da informalidade. A não emissão da nota também afeta no acesso à direitos previdenciários, como aposentadoria, e na arrecadação de tributos pelo estado e município. O processo de titulação do Quilombo do Varzeão, em que tem Gramadinho como um dos seus núcleos, iniciou em 2004 e está paralisado após publicação do relatório de identificação, a terceira etapa do processo. “Nossos produtos apodrecem na terra ou temos que vender bem abaixo do valor pra podermos ter um dinheiro”, destaca a liderança quilombola Laura Rosa.
As organizações sociais e comunidades defendem que a oferta de serviços essenciais e políticas públicas às comunidades quilombolas independam do título, ainda mais considerando que o Estado brasileiro tem sido moroso na regularização fundiária.
Além da dificuldade de acesso a políticas de moradia, educação, saneamento, assistência técnica rural, entre outros, a ausência do título também amplia o risco de assédio das comunidades pelos empreendimentos, como garimpo, monocultura, hidrelétricas, especulação imobiliária, portos, entre outros.
“Não dá é a gente continuar sofrendo várias violações por conta da morosidade do processo, que coloca as comunidades quilombolas numa situação de insegurança. Esta morosidade está acarretando, inclusive, no assassinato de lideranças e conflitos nos nossos territórios. Está mais do que na hora do estado brasileiro reconhecer o que está na Constituição Federal, que é titular os territórios quilombolas e levar todas as políticas públicas para esses territórios”, destaca o coordenador executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Biko Rodrigues.
A organização ainda destaca que muitas comunidades quilombolas ainda nem solicitaram certificação na Fundação Palmares – documento necessário apara abertura no Incra de processo administrativo de titulação quilombola. Ou seja, são invisíveis ao Estado no processo de regularização fundiária. A Conaq estima que o país contabilize 6 mil comunidades quilombolas.
Oposição à titulação quilombola
A gestão de Jair Bolsonaro (PL) cumpriu as declarações feitas em 2018, pelo ainda candidato à presidência, de não conceder nenhum centímetro de terra para territórios quilombolas e indígenas. Ao longo dos quatro anos de gestão (2019-2020) a política quilombola ficou marcada pela reconfiguração administrativa, contínuo esvaziamento orçamentário, pastas sob comando de opositores à política de titulação e emissão de decretos de burocratização das etapas de regularização, como a Instrução Normativa 128/2022, publicada na véspera das eleições.
Logo no início da gestão o Incra foi realocado da Casa Civil da Presidência da República para o Ministério da Agricultura, por meio da Medida Provisória n° 870/2019. Tanto o mais alto cargo da pasta quanto a secretaria responsável pela titulação ficaram sob comandos de representantes vinculados ao agronegócio e opositores à política de titulação quilombola: a ministra de Tereza Cristina (PSL) e o ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) Nabhan Garcia, respectivamente.
As ações adotadas pelo governo tiveram reflexo direto nos números totais das etapas de titulação quilombola, com forte queda do número em cada etapa. No último quadriênio 161 comunidades foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares, número distante do auge de 812 certificações pela primeira gestão de Lula. O número referente ao primeiro governo de Lula contabiliza apenas os anos de 2004-2006 (não inclui dados de 2003), já que as atuais regras e etapas para titulação passam a contar a partir da publicação do Decreto 4.887, em novembro de 2003.
O governo sob comando de Bolsonaro também responde pela emissão de apenas 6 títulos (todos parciais), em oposição ao maior número de títulos emitidos durante uma gestão – 14 no primeiro governo de Dilma Rousseff.
O número de títulos emitidos durante o governo de Bolsonaro não foi menor apenas porque todas as comunidades que tiveram seus territórios parcialmente titulados acionaram a justiça em razão da lentidão do Estado brasileiro em titular os territórios tradicionais. Foi o que aconteceu com a comunidade Paiol de Telha (PR). Única titulada das 38 comunidades quilombolas do Paraná, a Comunidade Paiol de Telha segue na reivindicação para titulação da totalidade do território. A ação movida pela Associação da Comunidade ainda inclui o pedido de danos morais à comunidade pela morosidade do Estado em finalizar a titulação do território tradicional.
“Diante da redução completa do orçamento para titulação quilombola, da fragilização da política territorial e omissão do Estado nos últimos anos, as comunidades tiveram como única alternativa o acionamento da justiça para avanço da regularização fundiária. Só houve seis títulos emitidos no último quadriênio porque as comunidades acionaram a justiça que exigiu a titulação pelo governo. Não foi Bolsonaro que cumpriu a Constituição em assegurar o direito aos territórios tradicionais às famílias quilombolas, foi a justiça que efetivou este direito”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Kathleen Tiê.
Engessamento orçamentário
Na Lei Orçamentária Anual (LOA) 2023 o orçamento previsto para o reconhecimento e indenização dos territórios quilombolas é da ordem de apenas R$ 749 mil. O valor é distante do recurso previsto para mesma rubrica no orçamento executado em 2014, ano de maior valor registrado para a execução desta política pública.
De acordo com Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), 2014 totalizou R$75,8 milhões de reais para aquisição de áreas privadas para fins de titulação quilombola. De acordo com levantamento realizado pela organização, o orçamento para titulação quilombola vem sofrendo uma queda acentuada desde 2015, com pior ano em 2022, com R$769,1 mil reais executados para a política.
Na avaliação da Conaq, o orçamento previsto para 2023, proposto ainda na gestão anterior, é forte obstáculo para avanço da política de regularização fundiária quilombola. Uma possibilidade para engordar a rubrica e manter-se dentro dos limites da regra do teto de gastos é o remanejamento de orçamento de outras pastas e conforme a necessidade de órgãos, como determina o Ministério do Orçamento e Planejamento. De acordo com o Ministério os recursos podem ser liberados por portarias, projetos de lei ou medidas provisórias. Emendas parlamentares podem ser também uma alternativa.
Deste modo, a disputa do orçamento público 2023 segue ativa no governo. Um exemplo é o assédio da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) – entidade vinculada aos interesses do agronegócio – ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) para aumento do recurso público para o Plano Safra 2022/2023 e 2023/2024. No início de maio o Ministério anunciou injeção de mais R$ 200 milhões para complementação do Plano Safra 2022/2023.
Novo governo: expectativa e reivindicação
Durante o período de pouco mais de 120 dias, o novo governo adotou algumas medidas para a proteção territorial quilombola. Recriado no primeiro dia de governo, o Ministério da Igualdade Racial – pasta interministerial para a política de promoção da igualdade racial – conta com a Secretaria de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos. Coordenada pelo quilombola e ex-membro da coordenação da Conaq, Ronaldo Barros, a secretaria tem a tarefa de “assistir e acompanhar as ações de regularização fundiária”.
A pauta da titulação também figura com destaque no Programa Aquilomba Brasil, lançado em 21 de março. Como aperfeiçoamento do Programa Brasil Quilombola (2007), o novo Programa tem como um dos eixos estruturantes o acesso à terra e ao território pelas comunidades. Na ocasião a Presidência entregou os títulos parciais de três territórios quilombolas: Brejo dos Crioulos (MG), Serra da Guia e Lagoa dos Campinhos, ambas de Sergipe. Ou seja, em 120 dias de gestão o governo Lula titulou a metade dos títulos emitidos por Bolsonaro durante toda sua gestão.
Ainda que as ações sejam compreendidas como importantes acenos de compromisso federal com a política de regularização fundiária, a Conaq destaca a necessidade de aceleração dos processos. “Sabemos que viemos de um governo que pregava ódio contra comunidades quilombolas. Disse que não iria demarcar nenhum centímetro para quilombolas e indígenas e agora estamos em momento de reconstrução, mas esse momento de reconstrução precisa ser trabalhado na velocidade das nossas demandas porque não dá para novamente sermos marcados pela morosidade”, destaca Biko.
Atribuição de estados e municípios
A morosidade também marca o avanço nos processos de titulação pelos órgãos municipais e estaduais. No Pará, por exemplo, a regularização fundiária quilombola é atribuição do Instituto de Terras do Pará (Iterpa). Ainda que alguns processos em aberto estejam sob responsabilidade do Incra (no estado são 67), a maior parte está sob alçada do órgão estadual.
A Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu) estima que o estado concentre cerca de 600 comunidades quilombolas. No entanto, até mesmo a avaliação do status de andamento dos processos encontra obstáculos. Em ofício encaminhado em fevereiro de 2022 ao Iterpa, a Malungu solicitou informações da relação dos processos abertos no órgão estadual e etapa da fase administrativa em que cada um se encontra. Até o momento não recebeu a resposta do órgão.
“Além da morosidade na titulação de territórios, as comunidades quilombolas do Pará enfrentam ainda a dificuldade de acesso à informação do andamento dos processos administrativos no Instituto de Terras do Pará. Há caso de processos administrativos que “desapareceram” da sede do ITERPA por mais de um ano, como é o caso do Território do Vale do Acará -ARQVA, que luta pela titulação de cinco quilombos desde 2016. O próprio site de consulta do ITERPA não gera espelho de movimentação do referido território, o que tem dificultado o acompanhamento do andamento administrativo”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Selma Corrêa.
Enquanto esperam a demorada resposta sobre a titulação dos territórios pelo estado do Pará, as comunidades do Vale do Acará vivem um intenso conflito com duas grandes empresas do setor de monocultura do dendê – a Agropalma S.A e a Brasil BioFuels (BBF) – que têm violado há anos os direitos territoriais dos povos tradicionais no nordeste paraense.
De acordo com a assessora um dos muitos exemplos de demora na titulação Quilombola pelo Estado do Pará é o caso do território Quilombola de Umarizal (Município de Baião) que aguarda titulação desde 2000, ou seja, mais de 23 anos de espera. “Tanto a morosidade na titulação quanto a dificuldade de acesso à informação são formas de violação dos direitos quilombolas que impedem o avanço da regularização fundiária”, destaca. A organização assessora as comunidades nos processos.
–
Maria de Souza de Oliveira, a Dona Maria, com 84 anos em 2012, na frente da sua casa, no Quilombo Rio dos Macacos.