Tania Pacheco
O Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil (Neepes/ENSP/Fiocruz) acaba de lançar uma versão historicamente ampliada e devidamente atualizada da sua ficha sobre os Yanomami, incluindo os últimos anos de invasão garimpeira e políticas de genocídio. São mais de 170 páginas registrando e colaborando na divulgação da cultura, das tradições e das lutas desse povo que contribui para evitar ‘que o céu caia sobre as nossas cabeças’.
Abaixo, o Combate Racismo Ambiental publica em primeira mão a Síntese da pesquisa. Ao final, um link encaminha para o registro no Mapa de Conflitos. Boa leitura.
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“O povo Yanomami constitui um dos povos indígenas de recente contato mais populosos da América do Sul, de acordo com a Survival Internacional e com o Instituto Socioambiental (ISA). Segundo dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a Terra Indígena Yanomami (TIY) tem área de 9.664.975,4800 hectares (ha) e sua população distribui-se entre os estados de Roraima (RR) e Amazonas (AM). Em Roraima, áreas dos municípios de Amajari, Alto Alegre, Mucajaí, Caracaraí e Iracema compõem a TIY. Já no Amazonas, a TI abrange Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira.
Os povos Yanomami, entretanto, não obedecem à lógica das fronteiras internacionais entre Brasil e Venezuela, já que foram atravessados por elas de forma arbitrária, encontrando-se também em extensões territoriais do país vizinho Na Venezuela, o território do povo Yanomami abrange a Reserva da Biosfera Alto Orinoco-Casiquiare.
A mais remota notícia sobre os Yanomami data de 1787, como relata o historiador Pedro Agostinho em “A questão Yanomami: Dois Caminhos para a Política Indigenista (1981)”. Ali, ele caracteriza a ocupação da Terra Indígena como imemorial, ao abrigo do art. 198 da Constituição de 1967, que resguarda para os índios seu exclusivo usufruto.
Já a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 231, parágrafo 2°, diz: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.
Bruce Albert e Gale Gomez, em “Saúde Yanomami, um manual etnolinguístico” (1997), afirmam que, na tradição oral Yanomami e nos documentos mais antigos que mencionam esse grupo, o centro histórico do seu habitat situa-se na Serra Parima, divisor de águas entre o alto Orinoco (Venezuela) e o alto Parima (Roraima).
O movimento de dispersão do povoamento Yanomami a partir da Serra Parima em direção às terras baixas circunvizinhas começou, provavelmente, na primeira metade do século XIX, após a penetração colonial no alto Orinoco e nos rios Negro e Branco, na segunda metade do século XVIII.
A configuração contemporânea do território Yanomami tem sua origem nesse antigo movimento migratório. A expansão geográfica foi possibilitada, a partir do século XIX e até o começo do século XX, por um grande crescimento demográfico, entre 1% e 3% anuais.
Na segunda metade do século XX, entretanto, diversas invasões ao território indígena por garimpeiros, agentes do Exército Brasileiro, pessoas envolvidas na construção de obras de desenvolvimento – como a rodovia Perimetral Norte BR-210 – e empresas mineradoras interessadas na exploração do ouro e cassiterita descobertos na região pelo Projeto Radar da Amazônia (Radam), em 1975, promoveram grave diminuição demográfica da população dos Yanomami.
Ademais, também na época da Ditadura Militar, diversas doenças como malária, sarampo, doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), coqueluche e desnutrição dizimaram o povo Yanomami em várias aldeias entre 1970 e 1980, principalmente. O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), lançado em 10 de dezembro de 2014, também denuncia como o Estado brasileiro foi responsável pela violência nos territórios indígenas.
Em 1993, os Yanomami foram vítimas de um massacre que ficou conhecido na justiça brasileira como o primeiro caso de genocídio a ser oficialmente reconhecido no País, o “massacre de Haximu”, que vitimou 16 indígenas em decorrência de conflitos com garimpeiros ilegais invasores de suas terras.
Entre as décadas de 2000 e 2010, os Yanomami foram se fortalecendo por meio de diversos encontros locais e regionais, como participações na Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, para denunciar a continuidade dos projetos desenvolvimentistas em seu território. O xamã e ativista Davi Kopenawa Yanomami e seu filho, Dário Vitório Kopenawa Yanomami, tornaram-se porta-vozes desse povo desde a criação da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), na década de 1980, e da Hutukara Associação Yanomami (HAY), em novembro de 1994.
A maior ameaça relacionada à mineração e ao garimpo em terras Yanomami, no entanto, reflete-se também a partir de projetos de lei e decisões governamentais. Como exemplos, temos a atuação do então senador Romero Jucá, que atuou como presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) de maio de 1986 a setembro de 1988 e, após dez anos, já como deputado federal, propôs o Projeto de Lei 1610/1996, que dispõe sobre a exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas.
Ainda durante a campanha e no período em que esteve como presidente da República, Jair Bolsonaro anunciou publicamente uma proposta de abertura das terras indígenas para exploração da mineração, mas principalmente do garimpo; o que fica evidente a partir do Projeto de Lei 191/2021, entregue ao Congresso Nacional em fevereiro de 2021, com o intuito de legalizar o garimpo e a instalação de outros empreendimentos em TIs.
Não apenas as políticas, mas os discursos explícitos do então presidente Bolsonaro, têm incentivado a invasão ao território Yanomami, acirrando os conflitos entre indígenas e garimpeiros, que têm como resultados mais imediatos ataques, ameaças e mortes, mas, a longo prazo, também geram outros problemas, como conflitos internos, contaminação do território e das pessoas, dificuldade de acesso a direitos sociais e desnutrição severa.
Em novembro de 2020, Bolsonaro afirmou que a TI Yanomami não deveria existir, segundo noticiado pelo Brasil de Fato (2022): “A reserva Yanomami. Tem mais ou menos 10 mil índios. O tamanho é duas vezes o Estado do Rio de Janeiro. Justifica isso? Lá é uma das terras com o subsolo mais rico do mundo. Ninguém vai demarcar terra com subsolo pobre. Agora o que o mundo vê na Amazônia, floresta? Está de olho no que está debaixo da terra“.
Em maio de 2021, Bolsonaro visitou a TI Yanomami, disse que respeitava a decisão dos indígenas contra o garimpo, mas frisou que trabalhava para aprovar a mineração em terras indígenas porque, segundo ele, essa é uma demanda “dos índios”, sem especificar a que grupos se referia (BRASIL DE FATO, 2022).
Somam-se a isso os impactos sociais e ambientais irreversíveis dentro do território Yanomami, como o aumento de casos de prostituição, assédio e estupros contra as mulheres indígenas, consumo de álcool, falta de investimentos na saúde indígena ou de fiscalização de crimes ambientais.
É o caso, por exemplo, do que vem ocorrendo no rio Uraricoera, principal via de acesso dos invasores nas terras indígenas e caminho de logística da exploração descontrolada de ouro. Em âmbito estadual, o garimpo também tem a chancela do governador reeleito de Roraima, Antonio Denarium (Progressistas), responsável pela Lei Estadual n° 1453/2021, que visa autorizar a exploração de minérios sem necessidade de elaboração de estudos prévios.
Como se não bastasse, além da endemia da malária, que assola os Yanomami há algumas décadas, a covid-19, doença tornada pandêmica, também adentrou os territórios Yanomami, gerando mais de 30 vítimas fatais até o final de 2020, dentre crianças, jovens e adultos.
A falta de assistência à saúde indígena e o descaso do governo federal e das instituições públicas em elaborarem soluções para o controle do coronavírus no território, acompanhados da intrusão de cerca de 20 mil garimpeiros que invadiram as terras yanomami, acentuam dia a dia a vulnerabilização deste povo às doenças.
Relatório produzido pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) revelou uma série de dados impactantes: em setembro de 2021, a área de floresta destruída pelo garimpo ilegal na TI Yanomami superou a marca de 3 mil hectares, um aumento de 44% em relação a dezembro de 2020.
Somente na região do Parima, onde está localizada a comunidade de Macuxi Yano e uma das mais afetadas pela atividade ilegal, foi atingido um total de 118,96 hectares de floresta degradada, um aumento de 53% sobre dezembro de 2020. Além das regiões já altamente impactadas, como Waikás, Aracaçá, e Kayanau, o garimpo avança sobre novas regiões; em Xitei e Homoxi, a atividade teve um aumento de 1.000% entre dezembro de 2020 e setembro de 2021 (AMAZÔNIA REAL, 2022).
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), entre agosto de 2020 e fevereiro de 2022, foram registrados 3.059 alertas de novos pontos de extração mineral na região que compreende a Terra Indígena Yanomami, afetando uma área de 10,86 km². Apenas em janeiro de 2022, foram 216 alertas de garimpo.
Cálculos revelados pelo relatório da HAY apontam que o garimpo ilegal na TI Yanomami cresceu 3.350% entre 2016 e 2021, estando associado ao aumento da malária, da desnutrição infantil, contaminação humana e ambiental por mercúrio e aumento da exploração sexual. São cerca de 16 mil indígenas presentes em 273 comunidades – o equivalente a 56% da população total yanomami. Em sua totalidade, o território Yanomami tem atualmente 29 mil habitantes distribuídos em 350 aldeias.
Em abril de 2022, mais um caso emblemático da crise humanitária e civilizatória dentro da TI Yanomami foi o estupro seguido de morte de uma indígena de 12 anos, na Aldeia Araçacá, e o assassinato de uma criança de três anos, no mesmo episódio.
As crianças e jovens têm sido as maiores vítimas das violências vivenciadas pelos Yanomami, atualizando o colonialismo que persiste na Amazônia e em outros territórios indígenas no Brasil, já que diariamente os garimpeiros ilegais promovem o extermínio povo.
Diante da crise humanitária na TI Yanomami, em maio de 2022, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) solicitou à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) uma intervenção para propor medidas de proteção do povo. Em julho de 2022, a Corte IDH cobrou do governo federal brasileiro uma resposta sobre as medidas de proteção para o povo Yanomami, considerando que não houve nenhuma reação das autoridades da época.
No período entre julho e outubro de 2022, a falta de acesso à saúde na TI Yanomami provocou a morte de nove crianças indígenas. Estudos divulgados pela Fiocruz em agosto de 2022 revelaram que a contaminação de mercúrio em peixes do rio Uraricoera estava acima dos limites de segurança estipulados pela Organização Mundial da Saúde (OMS)
No início de 2023, o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas, presidido por Sônia Guajajara, divulgou que cerca de 570 crianças da TI Yanomami foram mortas pela contaminação por mercúrio, desnutrição e fome nos do governo de Jair Bolsonaro (IHU, 2023).
Nas redes sociais, Guajajara lamentou as mortes: “É muito triste saber que indígenas, sobretudo 570 crianças yanomamis, morreram de fome durante o último governo” (MENEZES, 2023). O Ministério da Saúde declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) no território indígena Yanomami.
Em 25 de janeiro, a Polícia Federal (PF) determinou abertura de inquérito para apurar crimes de omissão e genocídio do governo Bolsonaro diante da crise humanitária vivida pelo povo Yanomami.
Um mês após o governo federal decretar estado de emergência na TI Yanomami, o Ministério da Saúde (MS) divulgou que mais de cinco mil atendimentos médicos foram realizados na região. Em fevereiro de 2023, organizações, entre elas, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam-Brasil), participaram da 52º sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU (CDH 52) e denunciaram as violações de direitos dos povos indígenas no Brasil.”
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