Cada um por si: zonas de autossalvamento são verdadeiras zonas de sacrifício

A maioria das regiões denominadas como Zonas de Autossalvamento é habitada por sujeitos de direito historicamente vulnerabilizados, como camponeses, pescadores, pequenos produtores rurais, indígenas, quilombolas e trabalhadores

Gabrielle Alves de Paula, Le Monde Diplomatique

Imagine ter apenas 30 minutos para salvar a sua própria vida após o rompimento de uma barragem. Segundo a Resolução 04/19 da Agência Nacional de Mineração, essa é a realidade enfrentada por aqueles que vivem na Zona de Autossalvamento (ZAS) – uma área imediatamente a jusante de uma barragem, ou seja, logo abaixo, delimitada pelo alcance da lama em até meia hora ou uma distância de até 10km.

A classificação não é apenas simbólica, ela atribui responsabilidade para as empresas empreendedoras de alertar os habitantes locais em caso de rompimento, uma vez que a rapidez do desastre não permite a intervenção de outros órgãos públicos em tempo hábil. Nesse sentido, sirenes devem ser instaladas e rotas de fuga sinalizadas na expectativa de que as pessoas possam, por elas mesmas, se salvar ao ouvirem os sinais. Vale a lembrança que nos casos do rompimento da barragem de Fundão e Córrego do Feijão, tais dispositivos não funcionaram, as sirenes sequer tocaram.

A institucionalização de uma “zona de autossalvamento” para os que vivem abaixo dessas estruturas reflete a impotência em garantir a vida dos que ali residem. O Estado se exime de suas responsabilidades pelas vidas em perigo, e as vítimas tornam-se reféns dos grandes “empreendedores”. Estes, na maioria das vezes, já demonstram, desde a construção do empreendimento, que vidas e territórios são componentes de uma equação econômica na qual os lucros são privatizados e os prejuízos, socializados. Trata-se do paradoxo de um desenvolvimento insustentável.

Nomear como “Zona de Autossalvamento” é, na verdade, uma tentativa de mascarar a real natureza desses territórios: zonas de sacrifício. São regiões onde os projetos causam impactos tão significativos que parece estar implícito que aquela área pode ser sacrificada. Na gênesis do próprio nome, há um presságio de seu iminente fim.

No Brasil, conforme a Lei nº 14.066 de 2020, as empresas responsáveis por barragens também são obrigadas a elaborar “mapas de inundação”. Esses mapas indicam o alcance potencial da lama em caso de um rompimento. Contudo, muitos desses dados, que são armazenados pela Agência Nacional de Mineração (ANM), não são facilmente acessíveis ao público.

Depois de meses de esforços e com o suporte da Lei de Acesso à Informação, o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração conseguiu acessar essas informações. Esses dados foram fundamentais para a ONG Repórter Brasil desenvolver o “Mapa da Lama“. Esta ferramenta destaca todas as áreas do país que correm o risco de serem submersas pela lama em caso de rompimentos de barragens, mapeando, portanto, as Zonas de Autossalvamento.

Dentre as zonas identificadas, observa-se o seguinte panorama: algumas já contam com rotas de fuga estabelecidas, sirenes, sistemas de alerta e treinamentos frequentes para a população local. Por outro lado, há áreas que ainda batalham para que esses mecanismos sejam implementados correta e frequentemente, garantindo que seus habitantes saibam como proceder em situações de emergência.

O primeiro caso, reflete o que os moradores de Barão de Cocais (MG) e São Gonçalo do Rio Abaixo (MG) vivem, onde os treinamentos geram transtornos variados. Sentimentos de insegurança e medo atravessam a população, na iminência do sacrifício de seus modos de vida e territórios. Esse cenário ansiogênico pode ser ilustrado pelo disparo equivocado da sirene de rompimento da barragem da mina Sul de Brucutu em março de 2019, que causou pânico nos moradores desses territórios. Nesse caso, foi decidido através de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que a mineradora Vale precisará pagar R$ 3 milhões por ter inflingido esse sofrimento desnecessário aos moradores.

O segundo caso, é ilustrado pelo município de Congonhas (MG), onde, desde 2019, já se tem registro de relatos de pessoas que possuiam dificuldade para dormir com medo do rompimento. Todavia, o primeiro simulado de emergência só foi realizado em março de 2023, envolvendo 9 mil pessoas que até então não sabiam como proceder em um cenário extremo.

Em um artigo do Observatório da Mineração, os autores ressaltam que Klemens Laschefski, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), denomina essa situação de “terrorismo de barragens“, que oferece vantagens claras para as empresas mineradoras. Entre elas, destacam-se a facilitação da evacuação de terras, a desvalorização dos imóveis próximos às minas e a redução na busca por licenças ambientais para grandes construções de infraestrutura de alto impacto, justificadas como “obras emergenciais”.

Soma-se à complexidade da “lama invisível” – uma dúvida persistente sobre um eventual rompimento – o fato de que a maioria das regiões potencialmente afetadas é habitada por sujeitos de direito historicamente vulnerabilizados, como camponeses, pescadores, pequenos produtores rurais, indígenas, quilombolas e trabalhadores. Muitos desses grupos possuem características étnicas e modos de vida distintos, o que evidencia processos contínuos de deslocamento – tentativas de sobrevivência à margem de um desenvolvimento ambientalmente racista. No contexto das Zonas de Autossalvamento, que são, de fato, zonas de sacrifício, essa ameaça de deslocamento é uma constante. A população vive sob a sombra de um “desenvolvimento” que pode ruir a qualquer instante.

Diante desse cenário, será bem-vinda a ratificação do Acordo de Escazú. Esse acordo vinculante que promove os direitos de acesso à informação, a participação pública e a justiça em assuntos ambientais, torna-se um mecanismo essencial para garantir que as comunidades em risco estejam adequadamente informadas sobre os perigos, as rotas de evacuação e as sinalizações. Mas, acima de tudo, ele é uma ferramenta para assegurar que, antes mesmo de esses projetos impactarem suas vidas, elas tenham suas vozes ouvidas e participem de todas as fases do processo de sua criação e implementação, ou seja, desde a fase mais inicial. Para que dessa forma, seus territórios não sejam reconhecidos como meras zonas de sacrifício e sim, territórios de direitos.

Gabrielle Alves é cientista política, compõe a equipe do Escritório Hotta Advocacia em parceira com o Pogust Goodhead e é ativista no Movimento Escazú Brasil.

Imagem: Rogério Alves/TV Senado

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