Norma internacional, ratificada pelo Brasil em 2004, estabelece o direito de consulta prévia em caso de empreendimentos e políticas públicas que possam afetar povos indígenas e tradicionais
Em solenidade marcada pela tradição e pelo simbolismo dos deveres do Estado com a defesa dos povos indígenas, foi lançada, na noite dessa segunda-feira (11), no Supremo Tribunal Federal, a versão traduzida para a língua indígena Mebêngokrê (Kaiapó) da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A iniciativa é uma parceria entre o Ministério Público Federal (MPF), a Suprema Corte e a OIT. O subprocurador-geral da República Humberto Jacques de Medeiros – que representou o procurador-geral da República, Augusto Aras, na solenidade – destacou que a convenção 169 resume para os indígenas o direito de serem ouvidos, de falar com liberdade e de ter os pactos cumpridos, valores classificados por ele como condições para que a “humanidade chegue aonde os seus sonhos querem que ela chegue”.
Aprovada em 1989 com o objetivo de afastar práticas discriminatórias que afetam povos indígenas e tradicionais e assegurar a participação deles na tomada de decisões que impactam suas vidas, a Convenção 169 passou a integrar a legislação brasileira em 2004. O documento é considerado um estatuto protetivo para as comunidades, uma vez que se baseia no respeito à cultura e a forma de vida desses povos e reconhece os direitos sobre a terra e os recursos naturais.
No âmbito do Ministério Público Federal, a Convenção 169 tem sido utilizada como ferramenta de proteção dos interesses de povos indígenas a partir da defesa do direito à consulta livre, prévia e informada em qualquer processo legislativo ou administrativo do Estado brasileiro que possa impactar no estilo de vida ancestral das comunidades, incluindo a execução de grandes empreendimentos. A tradução da normativa da OIT para a língua falada pelos indígenas Mebêngokrê, na avaliação do subprocurador-geral, é um grande avanço para que os povos indígenas brasileiros possam exercer sua cidadania.
O subprocurador fez questão de lembrar que o compromisso do Ministério Público com todos os povos indígenas está assentado na Constituição e deve ser mantido sempre firme e forte. “A Convenção 169 é parte do mais importante de todos os pactos, que é a Constituição. Esta Casa é a casa que guarda esse pacto. Por isso, é muito importante esse pacto na língua dos Kaiapó nesta Casa”, frisou, reiterando o simbolismo do ato.
Acessibilidade – O lançamento do texto traduzido é um marco para o Brasil no cumprimento da Agenda das Nações Unidas, segundo a presidente do STF, ministra Rosa Weber. Isso porque o período de 2022 a 2032 foi estabelecido pela Assembleia Geral da ONU como a Década Internacional das Línguas Indígenas do Mundo. Para ela, a tradução do documento garante o acesso do povo kaiapó à informação, aos seus direitos e à Justiça. “O objetivo dessa publicação é difundir a informação de maneira acessível aos povos indígenas e comunidades tradicionais, garantindo ferramentas pra que eles se apropriem da cidadania que historicamente lhes foi sonegada e a retomem”, afirmou.
A fala de Weber também foi endossada pela ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. Ela citou a existência de 274 línguas, atualmente faladas no Brasil, e refletiu sobre a demora para que textos como a Convenção 169 e a própria Constituição Federal se tornem acessíveis aos indígenas do país em suas línguas maternas. “A tradução desse tipo de documento para as línguas originárias estimula e facilita o acesso dos povos a instrumentos que são indispensáveis para a concretização dos seus direitos”, defendeu.
Também participaram do evento o diretor do Escritório da OIT para o Brasil, Vinicius Carvalho Pinheiro; o advogado-geral da União, Jorge Messias; o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro Lelio Bentes; o ativista pelos direitos indígenas e liderança kaiapó, cacique Raoni; a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joênia Wapichana, além de lideranças e representantes de diversas comunidades indígenas.
Kaiapó – Considerado um dos grupos mais importantes da Amazônia, o povo indígena Mebêngôkre vive em aldeias localizadas ao longo dos rios Iriri, Bacjá, Fresco e outros afluentes do Rio Xingu, em um território quase tão extenso quanto a Áustria. Apesar de serem conhecidos pelo termo kaiapó, essa nomenclatura não é utilizada pelos integrantes da comunidade, que se referem a si mesmos como “os homens do buraco/lugar d’água”, ou mebêngôkre. O idioma falado pelos mais de 6 mil integrantes – população estimada ainda no início dos anos 2000 – pertence à família Jê, do tronco linguístico Macro-Jê, que abrange 38 línguas e variantes faladas apenas no território brasileiro.
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Arte: Secom/MPF