A palavra como flecha – Puyr Tembé

Uma liderança da Amazônia comprometida com o rompimento do silenciamento dos mais de 55 povos indígenas que habitam o Pará, com aproximadamente 60 mil pessoas e 30 idiomas, em 52 municípios que correspondem a mais de 20% do Estado. Puyr Tembé é uma andarilha que circula pelo Brasil e pelo mundo com o objetivo de garantir o direito à diversidade, através da exposição dos vários tipos de violência a que estão sujeitos os povos originários e, especialmente, as mulheres indígenas. A quinta edição de A palavra como flecha traz a força dessa voz que alterna sua fala assertiva com o silêncio que evoca saberes ancestrais. Puyr reinventa a representatividade política com um misto de determinação e emoção. A novidade está no que experimenta como consequência da sua militância: um espaço no qual cabe sua força, atenção e, sobretudo, a voz das mulheres.

Por Marcelo Carnevale, Agência Amazônia Real

As várias dimensões da luta

Puyr Tembé deu prontamente um sinal para que eu formalizasse o convite para a nossa conversa. O segundo contato foi uma resposta rápida da assessoria por correio eletrônico. A impressão é que ela se encontrava em estado de prontidão e que o resto (agenda, dia, hora) jamais comprometeria o desejo de estar atenta e receptiva a quem busca uma aproximação pelo diálogo. Sua movimentação é caótica, afinal, confessou viver em quatro mundos distintos. Me esforcei para acompanhá-la na trilha que nos levou pelas diferentes dimensões que acessa: a comunidade Tembé, a militância no movimento indígena na Amazônia, a agenda global e o papel de primeira titular na Secretaria de Estado dos Povos Indígenas do Pará (Sepi). Trocamos muito as lentes, várias vezes, e quase sem respirar. O que se confirmou foi que, em qualquer dos quatro universos nos quais ela circula, sua ética se traduz nessas qualidades marcantes do feminino: atenção e receptividade. O resto é combate, porque o que está em jogo é o racismo estrutural, a violência contra a mulher e a proteção do planeta.

Aprender a andar nas trilhas da floresta foi o primeiro ímpeto que teve ainda jovem, quando se lançava num grupo reduzido de mulheres que acompanhava os guardiões do território Tembé. Puyr se reunia com mais três parentes e uma antropóloga para participar das missões. O objetivo era assimilar como se faziam as abordagens na Terra Indígena Alto Rio Guamá (TIARG), comunidade que se espraia por 279 mil hectares dos municípios paraenses Garrafão do Norte, Santa Luzia do Pará, Nova esperança do Piriá e Paragominas. Território habitado por indígenas da família linguística Tupi-Guarani, pertencentes aos povos Guajá, Ka’apor e Tembé. Tal como os Guajajara, os Tembé falam a mesma língua, o Tenetehara, da família linguística Tupi-Guarani. Mesmo como reserva indígena oficializada desde 1945, a luta contra invasores da Amazônia, principalmente madeireiros, é constante.

Avançamos por essa via que nos lançou na ousadia de sua juventude e na capacidade de compreensão da necessidade do protagonismo feminino. Era necessário aprender as estratégias de proteção da terra com seus guardiões. O tom de voz assume certa nostalgia ao recordar a importância de uma figura da comunidade conhecida como capitoa Verônica, sua tia: “Ela tinha o poder de liderança entre os homens dentro do território. Mesmo que estivessem presentes os caciques da aldeia, todo mundo acabava respeitando o que tia Verônica dizia, o que ela determinava, como ela conduzia. Ela foi um espelho de resistência e de luta”.

Tudo o que assimilou a partir das missões, num lugar de atuação intimidador para as mulheres, serviu como escola para o maior aprendizado: a necessidade da ocupação de vários espaços pouco destinados ao corpo, a voz e ao pensamento feminino. Lugares que exigem mais do que se movimentar no mapa desenhado por gerações e gerações de homens. Situações que demandam pisar onde ninguém espera encontrar a presença de mulheres. Entretanto, enfatiza que essa possibilidade tem a ver com inspiração e sororidade, reforça que trata-se de uma linhagem na qual destaca outra figura central na sua trajetória, Joenia Whapichana, presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). “Eu sonhava em ser advogada ao ver o trabalho de Joenia. Queria estudar, agir, participar na mediação dos conflitos e na reinvindicação dos nossos direitos”, afirma, com a mesma inquietação da juventude.

Um desses conflitos, ocorrido no final de maio de 1996, marcou a história recente do povo Tembé: a batalha do Livramento. Episódio amplamente divulgado na imprensa da época, com uma imagem emblemática dos indígenas capturados pelo colonos que viviam em terras invadidas, também publicada pelo jornal O Liberal. O confronto teve origem numa grande apreensão de madeira, em operação conjunta entre Funai e Ibama, que levou os Tembé a assumirem a fiscalização do próprio território para combater o desmatamento. Ao todo, 77 indígenas, a maioria Tembé, mas também alguns Guajajara, Timbira e Ka’apor, se organizaram com o objetivo de queimar a madeira apreendida que estava depositada no vilarejo de Livramento, no município de Garrafão do Norte, localidade que cresceu como escoador de produção da Fazenda Mejer, propriedade de Mejer Kabacznik que também, ali, abriu uma estrada que cruzou a extensão da TIARG por quase 20 anos.

Além das madeiras, os Tembé queimaram a ponte que ligava a fazenda à estrada. Após três dias mantidos em cativeiro pelos colonos da fazenda, a tensão escalou com a ameaça de linchamento dos indígenas e a situação demandou a interferência da Polícia Federal para a liberação do grupo de reféns. “Naquele tempo não tínhamos a tecnologia que temos hoje. Meu pai estava presente na ação, o pai das minhas filhas também. Ficamos sem saber o que fazer. Para ter informação, contávamos apenas com notícias que chegavam pelo rádio através de emissoras locais e de A voz do Brasil. Eu estava num momento muito delicado, lidando com o nascimento da minha filha. Assim como outras mulheres, eu queria ir no local, mas não tínhamos como ir. Ficamos sem saber o que fazer, nos sentindo aprisionadas como eles”, lembra Puyr.

Em março de 2010, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em Brasília, confirmou a sentença promulgada, em 1996, e garantiu, por unanimidade, a reintegração de posse em ação impetrada pela Funai contra o principal invasor da TI Alto Rio Guamá, o falecido fazendeiro Mejer Kabacznik. Entretanto, apenas em dezembro de 2014 os 9,2 mil hectares foram reintegrados ao território Tembé.

Puyr fez da batalha um motivo para outras resoluções pessoais. “Ficou na minha memória, precisava fazer alguma coisa. Precisava estudar”. Assim como Joenia Whapichana, decidiu cursar direito. A chance se deu com a política de ações afirmativas que colaborou para o ingresso na universidade. Entretanto, se o objetivo era se tornar “defensora da vida”, a coerência a obrigaria a regressar para a comunidade e abandonar o curso. Sua mãe estava doente e necessitava de cuidados. A situação reafirmou seu compromisso com a ancestralidade e o entendimento de que continuaria a defender o território como defende a vida, o direito das mulheres e o planeta. “A gente tem essa relação com a terra, como a gente tem essa relação com as nossas mães. Tenho três filhas e tento passar os ensinamentos que meus pais me deram. Eu transmito para elas e quero que os filhos delas aprendam esses saberes.”

Zelar pela terra, como liderança feminina, foi, também, se preparar para os conflitos internos na própria comunidade. “Não dá para negar ou esconder que dentro das comunidades nós experimentamos o machismo. Alguns homens não compreendem. A sociedade alimenta e acha que quem tem que ser cacique é homem mesmo. Eles no comando. As mulheres indígenas acatam, porém também querem ajudar a construir uma comunidade mais justa, solidária. Queremos somar ao processo.”

Foi na luta pela terra e na convivência com os guardiões que se tornou uma militante dos direitos e porta-voz do povo Tembé. Quando se deu a disputa pela desintrusão do território indígena e pela retomada da área invadida, Puyr foi a única mulher a acompanhar os caciques nas agendas em Brasília. A articulação política com lideranças de outras comunidades da TIARG também trouxe outro grande ensinamento: cada povo indígena tem seu jeito, sua cultura, seja ela patriarcal ou matriarcal. “Não posso trabalhar considerando apenas os costumes que aprendi com meu povo, do jeito que cresci, sem respeitar as peculiaridades de cada cultura. Não dá para pegar minha forma internalizada e tentar chegar dentro dos Ka’apor ou dos Paracanã, por exemplo.”

O desafio da Secretaria dos Povos Indígenas do Pará

São muitos os aprendizados que constituem uma trajetória de 30 anos de militância, com atuações estratégicas na presidência da Federação dos Povos Indígenas do Pará (FEPIPA) e como cofundadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidades (ANMIGA). Puyr faz questão de frisar que todo percurso se deu sem adesão a partidos políticos, mas na base da militância. Prática que se reinventa a partir da indicação à Secretaria dos Povos Indígenas do Estado do Pará, criada em março deste ano. ”Estou com a minha equipe construindo uma casinha de sapê. Uma secretaria que não tinha uma estrutura e nem configuração institucional no Estado e que me desafia 24 horas a construir esse lar.”

Articulação aparece como palavra-chave. Puyr e equipe planejaram um roteiro para rodar todo o Pará e garantir agendas determinantes como a dos Diálogos Amazônicos e a retomada do Conselho Estadual de Políticas Indigenistas. “O Estado do Pará não pode ficar para trás e deve acompanhar as linhas nacionais da pauta indígena, com projetos de lei que definirão como vai ser a contratação de professores indígenas e de profissionais da saúde”. A ideia é fazer rodas de diálogos em todo o território estadual para escutar as demandas e mostrar quais são as prioridades. Chegar aonde Puyr define como a “ponta” para partilhar qual é o papel da secretaria, mas sobretudo ouvir as pessoas. “Há de fato um anseio muito grande. Os parentes pensam que podemos fazer tudo: educação, saúde, sustentabilidade, demarcação. Só que não podemos fazer isso. Demarcação, por exemplo, é papel do governo federal, precisamos mostrar quais são as nossas finalidades.”

O grupo segue o modelo da FEPIPA, com oito etnosregionais: Altamira, Belém, Itaituba/Jacaraecanga, Marabá/Tucuruí, Oriximiná, Novo Progresso, Tucumã/São Félix e Santarém. A ideia é que todos se revezem na troca com essas comunidades. “Vai ter momento que eu não vou conseguir estar, mas teremos o secretário adjunto presente ou outras pessoas da nossa equipe. Todos levando a nossa voz”. A grande aposta em escutar o que cada um tem a dizer se apresenta como oportunidade para reconhecer o momento da política no país. Puyr considera que “o Brasil deu uma virada de chave com o governo Lula”. A secretária ressalta que a decisão de criar o Ministério dos Povos Indígenas fez com que os parentes se movimentassem para ocupar esse lugar. Avalia que os indígenas estão amadurecidos para o processo, apesar de nunca terem ocupado um ministério nem a Secretaria Especial de Saúde Indígena e mesmo a Funai, que segundo diz está totalmente precarizada. “Mas a gente entende, compreende, que esse é o momento para entrar, falar, decidir e construir por nós mesmos. Salvaremos? Conseguiremos reverter o descaso de 523 anos? Não.”

Reflorestar os valores da vida

A consciência de que é preciso ocupar os espaços ganhou uma nova dimensão com a participação direta dos indígenas nas várias instâncias de poder e na criação de políticas públicas. Segundo a secretária, existe a necessidade de sensibilizar os diferentes colegiados, compreendendo que a pauta indígena perpassa várias secretarias e demanda um trabalho interdisciplinar. Percebeu-se a falta de informação e experiência dos quadros técnicos na máquina pública, num modelo que, segundo Puyr, sequer contempla os indígenas e exclui mais que inclui. “Eu, a ministra Sônia Guajajara e outras companheiras estamos nesse lugar de pensar e propor, mas sabemos que sozinhas não resolveremos. Precisamos reflorestar mentes nas instituições para desmistificar, descontruir esse pensar sobre o povo indígena. Para mim tem sido um desafio enorme. Eu nunca fui gestora porque tem um sistema que me trava, mas tem uma vontade que me faz seguir”. Segundo a secretária, fica evidente um ranço na generalização de diferentes realidades, com resoluções que tratam os sem-terra como se fossem iguais aos indígenas e vice-versa. O preconceito está arraigado e se expressa de diferentes maneiras. “Quero trabalhar também com a juventude que está na cidade, envolver escolas não indígenas, as universidades, inclusive os colégios particulares para falar que ser secretária ou ter um celular não me faz menos indígena”, enfatiza.

O reflorestamento de mentes, conceito criado pelas integrantes da ANMIGA, se propaga dentro e fora das comunidades, a partir de uma série de designações que revelam a diversidade de papéis da mulher indígena contemporânea. Segundo Puyr, elas podem ser mulher-semente e mulher-raiz, com atuação em seus próprios territórios; mulher-terra, que é como se reconhecem as cofundadoras dessa articulação nacional; ou mulher-água, aquelas que atravessam fronteiras, oceanos e levam as vozes dos indígenas para além do lugar de origem. Todas elas estão representadas na caravana das mulheres indígenas, percorrendo vários estados com a missão de trabalhar com seis eixos temáticos: a questão climática, a violência contra as mulheres, a sociobioeconomia, a formação política, o reflorestar mentes e as candidaturas indígenas.

A movimentação já começa a dar frutos. Se antes o desafio era furar o bloqueio da representatividade, hoje o que se pretende é o fortalecimento das candidaturas vitoriosas no pleito de 2022, com a garantia de performance e bons resultados. “O saldo foi muito positivo, estamos envolvidas com a formação política com mulheres na linha de frente nos governos dos Estados Unidos, México e Peru, também, com mulheres indígenas do Chile, Equador e Colômbia. A perspectiva é que nasça o primeiro fórum das mulheres indígenas globais, com o desafio de pensar as estratégias para ocupar o cenário político partidário no Brasil e no mundo. O Pará vai surpreender com muitas candidaturas de mulheres indígenas nas próximas eleições”, diz com entusiasmo indisfarçado.

A feminilidade presente nas escolhas de cada um dos elementos, como a semente, a terra, a raiz e a água, produz força para lidar com um tema comum a todas: a violência contra as mulheres indígenas e não indígenas. Puyr é contundente quando aponta que “o mundo viola os direitos das mulheres em vários planos: físico, mental e institucional”. O combate é intenso, 24 horas por dia, em busca de uma reação, de um basta “pelas que já se foram e pelas que virão”. Ela declara que já foi vítima de violência física e que, hoje, na cidade, sofre com o preconceito, o racismo e o negacionismo, em cada esquina por onde circula. “Eu não posso recuar, chorar, me vitimar. Preciso agir para que eu mesma, minhas filhas e outras não passem por isso. A violência contra a mulher precisa acabar. O mundo está contaminado de muito ódio contra o público feminino. Não dá para ser conivente, não se trata apenas de uma pauta pessoal, estou muito envolvida com isso”.

Como mulher-água, sua luta cruzou várias fronteiras e encontrou aliança em outros mundos, como o das telas de cinema. Puyr, junto com Marçal Guajajara, são os protagonistas do longa metragem WeHYPERLINK “https://www.weareguardiansfilm.com/pt” are HYPERLINK “https://www.weareguardiansfilm.com/pt”Guardians, realização da produtora estadunidense Highfly Flannable de Fisher Stevens, com participação na produção executiva da Appian Way Productions, de Leonardo DiCaprio. O documentário é dirigido por Edivan Guajajara, cofundador do Mídia Indígena, um dos principais coletivos de jornalismo investigativo liderado por indígenas no Brasil, e pelos cineastas ambientais Chelsea Greene e Rob Grobman. As gravações duraram três anos e acompanharam a movimentação da guardiã Tembé pela TIARG, por todo o Pará, por Brasília e pelo exterior. “Está me dando projeção, mas eu quero muito que não projete apenas a mim, quero que dê retorno aos guardiões na defesa da Amazônia, do bioma, dos nossos netos. É preciso que o filme também envolva não apenas os que vivem nos territórios.”

A estratégia de lançamento inclui agenda em festivais de cinema e exibições pontuais com debates e pedidos de doação para o trabalho dos guardiões nos projetos de reflorestamento. O documentário mostra as missões, as abordagens, a realidade do cotidiano e do risco que os indígenas se submetem para defender o próprio território. “A luta me fez chegar no lugar que estou. Hoje, sei muito bem falar dessas missões, do nosso papel nelas. Hoje eu sei muito bem mostrar no filme o papel que a gente tem na proteção da floresta.”

Todas as dimensões da atuação de Puyr se entrecruzam como possibilidades de fazer-se ouvir como mulher e liderança Tembé. Mas sua inquietação não permite que o discurso soe como pronto, a ser repetido automaticamente. Uma pessoa da equipe nos alerta que a secretária precisa encerrar a conversa e seguir com a agenda. Puyr me olha pela câmera com um sorriso e diz: “Te respondi, mas você ainda pode fazer mais duas perguntas se quiser”. E assim avançamos um pouco mais num diálogo no qual o estado de prontidão que o cargo exige não a impediu de manifestar espontaneidade e cuidado com quem conversa. Como boa andarilha, ela sabe que tudo é transitório e que partilhar o caminho fortalece as alianças.

Imagem: Puyr Tembé durante Ação Humanitária na Terra Indígena Parakanã (Foto: Alex Ribeiro/Agência Pará).

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