Genocídio indígena: a culpa do garimpo

Crise no território Yanomami resultou em catástrofe de saúde – mas remete a antigos problemas econômicos e sociais da região. Contra o extrativismo assassino, pesquisadores propõem: fortalecimento da bioeconomia amazônica é chave para proteção do bioma e da vida

por Guilherme Arruda, Outra Saúde

Há quase um ano, no dia 21 de janeiro de 2023, o Governo Federal recém-empossado declarou uma emergência em saúde pública no território Yanomami, a mais extensa área indígena do país. No comunicado que anunciou a decisão à época, o Ministério da Saúde (MS) relatou a identificação de “crianças e idosos em estado grave de saúde”, sofrendo especialmente de “desnutrição grave, além de muitos casos de malária, infecção respiratória aguda (IRA) e outros agravos”.

Dois escritos publicados nos Cadernos de Saúde Pública, veículo parceiro de Outra Saúde, trazem importantes reflexões sobre essa crise, com o olhar apurado pelo relativo distanciamento temporal e pela disposição de tirar lições críticas (e concretas) dela. Ambos fazem parte do Espaço Temático Amazônia, uma iniciativa dos Cadernos para estimular investigações em profundidade sobre problemáticas ligadas à Saúde no maior bioma do país, onde vivem mais da metade dos indígenas brasileiros.

Os artigos, assinados por pesquisadores ligados à Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fiocruz (instituição também responsável pela edição dos Cadernos) e ao Instituto Socioambiental (ISA), se complementam em reflexões que partem de um ponto comum: o reconhecimento do papel central – e criminoso – do garimpo na crise sanitária yanomami. Essa atividade econômica, extrativista e exploratória, está na raiz da transmissão de diversas doenças na região – e seus perpetradores, nas inúmeras violações dos direitos da população originária já registradas, que aprofundaram o horror do que muitos já denominam um genocídio yanomami.

Contudo, alegam os estudiosos, ainda é possível reverter o que um dos escritos denomina de “trajetória de degradação” provocada pelo garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, bem como em outros territórios. Tal virada de chave passaria obrigatoriamente pelo enfrentamento dos problemas econômicos e sociais dessas regiões. É necessária uma ação decidida – e multissetorial, não se restringindo à Saúde. Para isso, medidas como o fortalecimento da bioeconomia local, integrando-a ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), assim como a efetivação dos instrumentos da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), retomada em 2023, serão fundamentais, apontam.

A crise também é econômica e social

Em Garimpo de ouro na Amazônia: a origem da crise sanitária Yanomami, seu artigo para o Espaço Temático Amazônia dos Cadernos, o sanitarista da ENSP/Fiocruz Paulo Cesar Basta compartilha uma série de fatos econômicos, poucas vezes lembrados pelas interpretações hegemônicas, que são essenciais para compreender o processo histórico que desembocou na emergência de saúde na Amazônia.

O aumento vertiginoso do preço do ouro no mercado mundial após a crise de 2008, por exemplo, parece guardar importante relação com a explosão da mineração irregular na Amazônia. Segundo a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), hoje já são 4.114 pontos de garimpo ilegal em todo o bioma, que se espalha por 9 países. No caso específico do Brasil, a expansão dessa atividade econômica chegou ao espantoso ritmo de 7,8% por ano na última década. E a interligação desse aumento com o descaso governamental frente às populações indígenas está claro: 90% dele ocorreu em terras Kayapó, Munduruku e Yanomami, frisa o autor.

A precariedade e a violência associadas ao garimpo trazem consequências devastadoras para as áreas onde ele se introduz. Uma métrica denominada Índice de Progresso Social (IPS), aponta um outro estudo, sugere que o garimpo diminui a capacidade dos municípios de “atender às necessidades básicas de seus cidadãos [e estabelecer] as condições para a melhoria da qualidade de vida e sustentabilidade ambiental”: localidades como Jacareacanga (PA) e Amajari (RO), focos garimpeiros, chegam a registrar um IPS cerca de 15% menor que a média da Amazônia e 25% menor que a média nacional.

O âmbito da saúde é um dos mais afetados. Como explica Paulo César, “a expansão da atividade [garimpeira] também se reflete no aumento de casos de doenças infectocontagiosas em escala local, em especial da malária”. No contexto da pandemia da covid-19, o médico é taxativo: para ele, “o garimpo foi um dos principais vetores de introdução do novo coronavírus nas Terras Indígenas (TI) da Amazônia”. Isto é, milhares de casos de covid-19 entre povos originários podem estar relacionados à presença indevida da mineração.

Os territórios originários em Roraima, como o dos Yanomami, são particularmente afetados por esse quadro. Paulo César Basta lembra que, apesar da escalada recente no governo Bolsonaro, esta TI demarcada em 1992 está sob infiltração contínua de mineradores clandestinos desde essa mesma época. Houve ainda um pico de garimpo anterior nos anos 1980, só interrompido por ações federais como a Operação Selva Livre, no início da década de 1990, que expulsaram milhares de criminosos da região.

A desestruturação da vida social originária hoje alcança até mesmo a situação alimentar dos povos: Basta relata que, após desestabilizar as aldeias com sua chegada, os garimpeiros tentam “comprar” a simpatia dos indígenas entregando cestas básicas repletas de ultraprocessados – o que eleva os índices de diabetes, obesidade e hipertensão nas comunidades.

O ápice da crise gestada por essa série de fatores enumerados pelo sanitarista foi visto em 2022. No ano final do governo Bolsonaro, período em que a atividade do garimpo foi largamente estimulada e a fiscalização relaxada, foram registrados os óbitos de 343 indígenas Yanomami, 99 deles crianças. Segundo dados do MS, as cinco principais causas das mortes, em ordem decrescente, foram as doenças respiratórias, as agressões, a desnutrição, as doenças infecciosas intestinais e as infecções por protozoários – todas, como indicam os apontamentos de Basta, guardando relações com a introdução do garimpo ilegal e de suas mazelas sociais e sanitárias associadas.

Para aprofundar as ações

Por meio da declaração da emergência sanitária, ainda no primeiro mês de 2023, o governo Lula e o Ministério da Saúde encabeçado por Nísia Trindade deram um importante primeiro passo para enfrentar essa crise multifacetada. O MS lista “a ampliação do número de profissionais em atuação no DSEI-Y, a realização de testes em massa para detecção de malária, a implementação do plano de ação para a desnutrição infantil e a reabertura de 7 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI) e Polos Base fechados” como componentes importantes de sua intervenção em Roraima.

Para Paulo César Basta, a “decisão da Receita Federal que obriga a emissão de notas fiscais eletrônicas em todas as transações de compra e venda de ouro” e a “revitalização do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAM)” também foram importantes ações para conter a economia da destruição que está tomando aquela região amazônica.

Contudo, a redução nas mortes entre os yanomami em 2023 foi modesta. Em relação ao ano anterior, elas passaram de 343 para 308 – número ainda alto, e com uma proporção mais alta de óbitos infantis (mais de 50% correspondem a crianças menores de 4 anos). Além disso, o garimpo segue fortemente presente na TI.

Para resolver de forma mais definitiva esse quadro, os pesquisadores do Instituto Socioambiental (ISA) Antonio Francisco Perrone Oviedo – também ligado à Universidade de Brasília (UnB) – e Estevão Benfica Senra propõem um pacote ainda mais amplo de medidas em seu artigo Modificando a trajetória de degradação do garimpo em Terras Indígenas.

A primeira delas é incontornável: é preciso, com urgência, deter o avanço do garimpo na Amazônia brasileira. A ampliação das ações de destruição de infraestrutura clandestina e da fiscalização rigorosa da região, a expulsão imediata dos invasores, bem como o cancelamento do todos os processos minerários registrados na Agência Nacional de Mineração (ANM) que incidam em Terras Indígenas, são medidas de urgência máxima listadas pelos autores.

Por outro lado, a desestabilização da estrutura econômica e social das comunidades originárias exige que as autoridades ofereçam formas de torná-las menos vulneráveis às chantagens do garimpo. Oviedo e Senra citam uma instigante alternativa: “a normatização dos sistemas agrícolas tradicionais de povos indígenas como práticas de manutenção da biodiversidade e combate às atividades ilegais”, promovendo “a produção de produtos e serviços da sociobiodiversidade (produtos da roça, da floresta, das águas, dos quintais, turismo comunitário, restauração ecológica)”.

Por esse caminho, eles avaliam, o “fortalecimento da bioeconomia” pode se tornar o “principal antídoto contra o garimpo”. Integrar essa produção local a políticas federais como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), sugerem os pesquisadores, seria fundamental.

No governo Bolsonaro, houve tentativas de impor programas e leis que implantariam definitivamente o garimpo nas terras indígenas – com possíveis perdas incalculáveis em vidas. O Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala (Pró-Mape) e o PL 191/2020, proposta do Executivo que legalizaria a atividade garimpeira nas TIs, felizmente foram derrotados.

Mas a aprovação do Marco Temporal pelo atual Congresso Nacional relembra que a ameaça aos povos originários segue de pé. Oviedo e Senra também sublinham que o novo governo praticamente não realizou ações estruturadas para erradicar o garimpo nas TI Kayapó e Munduruku até o momento.

A crise sanitária, econômica e social provocada pelo garimpo no seio dos povos indígenas da Amazônia, sugerem os ensaios publicados nos Cadernos de Saúde Pública, precisam ser enfrentadas com mais vigor e criatividade a curto prazo – as meias medidas podem ser, literalmente, fatais.

Foto: ALAN CHAVES/AFP

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