Memórias de uma ilusão fatal. Entrevista com Gershon Knispel

“Nós, da geração de 1948, chegamos à conclusão de que a grande euforia por um Estado não levou em conta que iríamos nos tornar um país ocupante e, com o tempo, um país baseado nos princípios fascistas mais radicais. Temos agora uma bomba atômica e um muro de 650 quilômetros de extensão e 8 metros de altura.”

O trecho acima é de 1912, extraído de uma entrevista do artista plástico judeu Gershon Knispel a Paula Sacchetta (O Estado de S.Paulo), republicada pelo Instituto Humanitas Unisinos dois dias depois, em 27 de novembro. Vale relembrá-la, neste dias de genocídio. E ela está transcrita abaixo:

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Memórias de uma ilusão fatal. Entrevista com Gershon Knispel

No IHU

Toco a campainha da casa em Santana algumas vezes, mas com a música clássica em alto e bom som, que dá pra escutar do lado de fora, ele certamente não deve ouvir meu chamado. É o ateliê de Gershon Knispel, artista plástico, de 80 anos. Telefono e ele vem abrir a porta. Vai logo baixando o som, “desse jeito não dá nem pra conversar, mas a música é minha inspiração, sem ela não consigo trabalhar”. Ele mora em um apartamento em Higienópolis com a namorada, mas passa o dia no ateliê.

De origem judaica, Gershon nasceu em Köln, na Alemanha, em 1932 e, aos 3 anos, mudou-se para a Palestina. Muitos acreditaram que Hitler não duraria tanto, mas seu pai sabia que aquele que havia chegado ao poder pelo Partido Nacional-Socialista em 1933 seria uma ameaça à família. E assim, na Palestina, entre árabes e judeus, começa a vida e a formação do simpático velhinho que hoje afirma ser “um pintor de protesto”. Tudo que viveu permeia nossa conversa e nos rodeia em pinturas e gravuras espalhadas pelo sobrado de tijolo iluminado por luz natural. Entre quadros e aquários, ele me recebe com uma camiseta preta na qual dá para enxergar a etiqueta para fora com letras em hebraico. No momento está organizando sua obra para um livro que deve sair em abril, mas diz que odeia tudo que o faz parar de pintar. Humanista e humanitário, afirma que sua rotina é reagir. Um dos pioneiros na chegada dos judeus à “terra prometida”, explica como testemunha da história a origem dos conflitos de hoje, nos quais judeus e árabes continuam se matando entre mísseis, homens-bomba e assassinatos seletivos.

A hostilidade de um gueto

“O grande erro naquela terra foi que os primeiros judeus que chegaram, russos e poloneses principalmente, vieram com uma cultura de gueto. Chegaram sentindo-se ameaçados e assim se isolaram. Cercaram suas casas com muros de madeira, pedras, sacos de areia. Compravam terras dos fazendeiros árabes endinheirados, os efêndis, que não avisavam os camponeses que nelas trabalhavam e iam embora para a Europa. Nelas, os judeus faziam os kibutzim (kibutz no plural), com muros, todos cercados. E foram, aos poucos, criando uma atmosfera hostil. Construíam torres, diziam que era para a caixa d’água, mas eram torres de vigilância. Tiravam as pedras e as usavam para cercar e delimitar o território de cada um. Expulsavam camponeses que trabalhavam nas terras e as cercavam. Esses pioneiros chegaram sem disposição para criar qualquer vínculo com aqueles que já moravam ali. Os alemães, que chegaram pouco depois, eram mais abertos, mas aí já era tarde.

Um outro povo na terra

“A partir desse choque e desse antagonismo foi surgindo um nacionalismo árabe. Os judeus recém-chegados tinham sindicatos e organizações, e os árabes, que começaram a se sentir mais fracos, queriam organizar-se também – e o fizeram. Além disso, a língua falada nas ruas passou a ser o hebraico e até o iídiche foi liquidado, pois era preciso fortalecer uma espécie de orgulho nacional. Toda uma cultura forte que existia na região foi ignorada e praticamente desapareceu. Quando cheguei à Palestina não conseguia falar hebraico direito. Falava alemão na rua e era chamado de nazista pelas outras crianças judias. Já com os vizinhos árabes a coisa era diferente: as casas deles estavam sempre com as portas e janelas abertas, não tinham muitos móveis, mas eram cheias de tapetes e almofadas onde podíamos nos encostar e deitar. As casas tinham mosaicos de azulejos coloridos e fontes no quintal. Era diferente da minha própria casa, onde a gente entrava com os pés sujos de lama e tomava bronca da mãe. Eles recebiam bem quem chegasse. Eu me comunicava com eles em árabe, o pouco que aprendi na rua com as outras crianças. Para mim já era claro: não haveria futuro se nos fechássemos. E eu queria me adaptar. Minha família se estabeleceu em Haifa, uma cidade portuária, de pequenas praias, e como meus pais não tinham muito dinheiro, ficamos na parte mais pobre da cidade. Todos os meus vizinhos eram árabes. Quando chegamos já havia outro povo na terra, não era um deserto. Tinha um povo que era nosso irmão e precisávamos respeitá-lo. E também eram donos daquela terra.

Dividir para reinar

“Nos anos 1930, judeus intelectuais da Palestina fundaram uma organização política, a Brit Shalom, que pregava a coexistência pacífica entre judeus e árabes. Era a primeira tentativa de negociação de paz na região. Pregavam que o maior inimigo era o mandato britânico e que os palestinos, árabes e judeus, precisavam se juntar pela paz permanente e tirar os ingleses da terra. Lutavam pelo estabelecimento de um Estado binacional onde árabes e judeus tivessem direitos iguais. Abdicavam do sonho sionista da criação de um Estado puramente judeu. Mas não conseguiram, pois já estava enraizada toda uma infraestrutura para tornar Israel um Estado judeu. O Grande Levante Árabe de 1936, que chega até nós, hoje, como um levante contra o povo judeu, era contra a Inglaterra e seu mandato na Palestina, contra o domínio colonial. Para piorar a situação, David Ben Gurion, que viria a ser o primeiro primeiro-ministro de Israel, inventou o conceito de ‘trabalho judaico’. Os camponeses expulsos de suas terras e sem trabalho nas cidades, já que judeus só empregariam judeus, começaram a sentir mais raiva ainda. Os conflitos começaram a se aprofundar e a Inglaterra, obviamente, usava isso a seu favor. Dividindo os povos, poderia dominar mais facilmente. Em vez de nos juntarmos, nos separamos. Ben Gurion chegou à Palestina em 1908, e os judeus alemães, mais ‘abertos’ à convivência com os palestinos, só nos anos 1920 e 30.

O primeiro choque

“Sou da chamada ‘geração de 1948’. Participei de cinco guerras como oficial do Exército, mas foi em 1953 que tive meu maior choque, que foi a morte de todo aquele idealismo pra mim. Aos 12 fui morar em um kibutz socialista ao norte de Israel. Meus pais ficaram em Haifa e fui recebido por Shlomo e Tzilla Rozen. Eu era do Mapam, o partido socialista sionista em 1953, quando um amigo me levou para visitar Nazaré. Passamos por um hotel para peregrinos que se chamava Casa Nova. Fiquei horrorizado. O hotel era sujo, tinha um cheiro horrível de urina e muita gente e colchões amontoados nos quartos. Comecei a andar pelos corredores e vi que conhecia a gente que estava ali. Eles eram de Maalul, um dos centenas de vilarejos tirados do mapa e apagados por Israel depois de 1948. Eles confirmaram que eram de lá, também me conheciam e estavam esperando, me disseram. Estavam naquela situação havia mais de cinco anos. Esperando o quê? Nas guerras contra o mandato britânico seus vizinhos do kibutz, o mesmo onde eu morava, os tiraram da aldeia para protegê-los, disseram. Eles ficariam longe de casa durante a guerra, mas voltariam depois, sãos e salvos. Cinco anos haviam se passado e eles continuavam esperando. Fiquei com raiva. Voltei ao kibutz e perguntei a Shlomo o que significava aquilo. Contei tudo que havia visto em Nazaré. Ele ficou branco e me respondeu: ‘Você conhece Ben Gurion? Ele é impossível. Não deixa que devolvamos as aldeias aos árabes’. Mas essas aldeias ainda existem?, perguntei. E ele: ‘Não vamos entrar em detalhes’. Mas por que então ele fazia parte do governo de Ben Gurion (Shlomo era ministro da Imigração)? ‘É melhor assim porque sem ele ficaremos pior’, respondeu. Rasguei a carteira do partido na cara dele e saí sem me despedir. Entrei no Partido Comunista logo depois.

Brasil, um painel e um passaporte

“Em 1958, Nina, que tinha sido minha namorada em Israel e veio para o Brasil com a família, me avisou de um concurso promovido pela TV Tupi para a execução de um mural no prédio deles. Eu já era artista plástico. Me inscrevi, mandei os croquis e venci. O painel ainda está lá: são índios de 7,5 metros de altura, no lugar mais alto de São Paulo, no Sumaré, onde hoje funciona a MTV. Uma vez no Brasil, me juntei ao pessoal do CPC, Centro Popular de Cultura, o Guarnieri, o Juca de Oliveira, o Augusto Boal e, entusiasmado com eles, fui ficando. Fiz uma gráfica para imprimir gravuras. O Brasil se tornou minha pátria também. Me juntei ao Partido Comunista com Mário SchenbergVillanova Artigas e Oscar Niemeyer, que se tornou um amigo próximo. O prédio da MTV foi tombado recentemente, recebi a notícia com muita alegria. É uma garantia de que aquilo será preservado. Em 1964, no dia seguinte ao golpe militar, já comecei a ser procurado. Estava envolvido demais com o Partido Comunista e o CPC, era perigoso para eles. Peguei um cachimbo, tabaco, um passaporte e um talão de cheques e fui atrás de gente do Mapam, aquele mesmo partido do qual eu havia rasgado a carteirinha, em São Paulo. Tínhamos divergências, mas numa hora dessas eles precisavam me ajudar. Me transferiram para o Rio, onde ficava a Embaixada de Israel. Fiquei lá alguns dias e arranjaram um voo para Israel. De 1964 a 1986 morei em Haifa e trabalhei como conselheiro de arte da prefeitura. Em 1986, virei presidente do conselho dos artistas plásticos de Israel. Em 1987, 20 anos depois da Guerra dos Seis Dias, fizemos uma exposição com 67 artistas, metade árabes e metade judeus, contra a ocupação israelense de terras palestinas. Voltei ao Brasil em 1995 e fiquei.

Reféns de um Estado distante

“O problema é que a política do Estado de Israel, desde sempre, foi de derrubar tentativas de negociação de paz, pois eles não queriam um Estado palestino ou um Estado binacional. Nós, da geração de 1948, chegamos à conclusão de que a grande euforia por um Estado não levou em conta que iríamos nos tornar um país ocupante e, com o tempo, um país baseado nos princípios fascistas mais radicais. Temos agora uma bomba atômica e um muro de 650 quilômetros de extensão e 8 metros de altura. Nos jornais dos últimos dias, senti uma tristeza enorme ao ver fotos de israelenses procurando abrigo nas ruas das cidades bombardeadas. Afinal, os mísseis e foguetes que saíram de Gaza não passaram por cima do muro? Então para que ele serve? Serve para separar famílias, tornar o caminho dos palestinos mais difícil, e eles já estão fartos disso. Um pacifista israelense, Gershon Baskin, disse que o assassinato de Ahmed Jabari, líder militar do Hamas, foi um ‘erro estratégico’. Não foi um erro estratégico, é a estratégia de sempre. A estratégia é não querer a paz. Yitzhak Rabin (primeiro-ministro de Israel em 1974-1977 e 1992-1995) e Yasser Arafat (líder da Autoridade Palestina) representavam os maiores perigos para Israel, pois eram capazes de estabelecer uma paz de fato na região. Rabin foi morto por um judeu ortodoxo de extrema direita e Arafat terá seu corpo exumado ainda este mês porque suspeita-se que ele tenha sido morto por exposição a substâncias radioativas pelo serviço secreto israelense. Quando começaram esses últimos ataques jovens saíram às ruas aqui em São Paulo, na Av. Paulista, para protestar contra o Hamas. Eu me pergunto, o que eles estão fazendo? Aqui, por serem judeus, ficam reféns de um Estado que pratica essas atrocidades. Não têm o direito de votar lá, mas assumem, aqui, os crimes deles.

A ilusão final

“Manter Israel como é mantido hoje, como uma coisa única e completa, é suicídio. Hannah Arendt, em seu relato sobre o julgamento de Adolf Eichmann, nazista executado nos anos 1960, criticou a tendência dos israelenses de fazerem uma expansão desenfreada, criando uma situação em que todos os esforços se concentram em armas, transformando a cultura e o Estado ‘modelo’ que eles queriam em uma ilusão fatal. Quanto tempo, perguntou ela, vai durar um Estado que só sobrevive à base da força? Precisamos acabar com essa história de Israel grande, precisamos devolver os territórios ocupados e derrubar o muro da vergonha. Nossa geração, que achava que estava libertando o Oriente Médio do colonialismo, percebeu que aquilo era uma ilusão. Em 1956, na Guerra do Suez, eu era paraquedista e fui enganado. Derrubamos o projeto do Nasser para nacionalizar o Canal de Suez, que era legítimo. Achei que estava ajudando, mas foi uma aventura colonialista ao lado da Inglaterra e da França. Hoje somos usados de novo: Israel é o maior parceiro das aventuras imperialistas norte-americanas no Oriente Médio. E eu não paro de falar, escrever e pintar. Não paro porque é um bom jeito de ficar vivo.”

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Amyra El Khalili.

O artista Gershon Knispel concede entrevista em seu ateliê, em São Paulo. Foto: Reprodução Youtube /TVPUC /a Brasil de Fato

 

 

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