O golpe em 1964 militarizou a política brasileira, mas também a polícia e, consequentemente, a repressão contra trabalhadores, democratas, estudantes, artistas e intelectuais. Hoje, o grande problema é que todo este aparato autoritário não foi desfeito com a redemocratização – pelo contrário, fortalecendo os setores mais golpistas do Exército.
Na Jacobin
Muito se repete que a Polícia Militar (PM) nasceu nos tempos da ditadura civil-militar iniciada em 1964. A afirmação não é correta, mas tem um certo fundo de verdade que é plenamente compreensível. A origem das PMs no Brasil tem uma relação muito mais profunda com o período de passagem do país de uma economia escravista para uma economia baseada na mão de obra livre lá no século XIX, e na consequente preocupação das elites brasileiras com o controle desse proletariado, sobretudo, o proletariado negro.
Mas o fundo de verdade dessa corriqueira afirmação também é bastante relevante para compreendermos a PM na atualidade. De fato, as Polícias Militares estaduais como as conhecemos hoje são fruto de reformas ocorridas ao longo do período ditatorial vivido pelo Brasil, principalmente nos chamados anos de chumbo.
Reorganizando o papel das PMs nos anos de chumbo
A efervescência do ano de 1968 agitava o país. Movimentos estudantis e de trabalhadores lotavam as ruas contra o regime militar que havia se instalado com o golpe ocorrido quatro anos antes. E a resposta militar foi massacrante: em dezembro daquele ano, era instaurado o AI-5, suprimindo uma série de direitos da população e inaugurando o período de maior repressão aos movimentos democráticos.
Esta é a resposta autoritária mais lembrada pela história, mas está longe de ter sido a única. A repressão não se materializaria apenas com a força de atos institucionais. A ditadura necessitava de um aparato que a colocasse em prática. Meses depois, em julho de 1969, uma resposta menos lembrada, mas igualmente terrível, seria posta em ação: o Decreto 667/1969.
“A medida teve efeitos práticos quase que instantâneos. Nos anos seguintes, pelos Estados do país afora, várias Guardas Civis passaram a ser extintas ou integradas às novas polícias estaduais.”
Este Decreto foi responsável por reorganizar as polícias militares estaduais de todo o país. Reforçando normas de subordinação delas ao Exército que já haviam sido impostas dois anos antes, o Decreto trouxe uma inovação que se faria sentir por toda a população brasileira até os dias de hoje. Em seu artigo 3º, ele estabelecia que, a partir daquele momento, as PMs passariam a “executar com exclusividade” a função de policiamento ostensivo.
A medida teve efeitos práticos quase que instantâneos. Nos anos seguintes, pelos Estados do país afora, várias Guardas Civis passaram a ser extintas ou integradas às novas polícias estaduais, muitas delas, às militares.
A mudança que ocorria não era pouca. Até então, o cotidiano policial brasileiro era ocupado por agentes de segurança pública de caráter civil. Com poucas exceções, como São Paulo, as Guardas Civis atuavam ostensivamente de forma subordinada às polícias civis estaduais, que acabavam realizando um ciclo completo de policiamento, da prevenção à repressão e investigação. As PMs, em sua maioria, ficavam grande parte do tempo aquarteladas, distantes do público, e só eram acionadas para reprimir movimentos de grande vulto, como protestos ou greves.
O que nós vemos a partir do Decreto de 1969, então, é uma verdadeira militarização do cotidiano policial no Brasil. A partir dele, o policial presente em cada esquina do país, próximo da população, ostensivo e preventivo, não possuiria mais um caráter civil como antes. Este policial agora seria um militar, subordinado ao Exército Nacional. Por isso, mais do que o cotidiano policial, podemos dizer que este Decreto militarizou o próprio cotidiano da sociedade brasileira como um todo.
“Tudo isso seria anabolizado pelo início da chamada ‘guerra às drogas’ com o endurecimento das leis de entorpecentes em 1976, deflagrando uma verdadeira guerra aos pobres.”
Constitucionalizando a repressão na redemocratização
Este regramento de 1969 logicamente não viria sozinho. Outras legislações sustentavam esta militarização. Dois anos antes, por exemplo, já havia sido criada a Inspetoria Geral das Polícias Militares, diretamente subordinada ao Exército. O mesmo Decreto que a criou estabeleceu que o efetivo das PMs se submeteria à Justiça Militar. Em 1970, outro Decreto instituiria o Regulamento para as PMs, conhecido como R-200, que estabelecia as diretrizes de trabalho das tropas para a função de manutenção da ordem. Tudo isso seria anabolizado pelo início da chamada “guerra às drogas” com o endurecimento das leis de entorpecentes em 1976, deflagrando uma verdadeira guerra aos pobres.
Não creio que seja necessário repetir os inúmeros casos de assassinatos, torturas e desaparecimentos do período. Nem como muitos destes policiais militares, anos mais tarde, passariam a integrar grupos de extermínio cujos homicídios nunca entraram para a conta oficial da letalidade da ditadura brasileira. Mas vale aqui ressaltar o estudo de Bruno Paes Manso, no qual ele demonstra que, na grande SP, os números de homicídios explodiram justamente a partir desta época, contrariando a velha falácia de que “na ditadura as ruas eram mais seguras”.
O grande problema é que todo este aparato não foi desfeito com a redemocratização. O Decreto 667/69, o IGPM, o R-200, nada disso foi realmente extinto com o fim do regime autoritário. Pior, a arquitetura policial da ditadura foi constitucionalizada. A nossa atual “Constituição Cidadã” consagrou o modelo de militarização do cotidiano policial no país, tornando a exclusividade militar do policiamento ostensivo uma matéria, agora, constitucional.
E este processo não ocorreu à toa. Em matéria de segurança pública, houve um verdadeiro lobby militar para que as coisas fossem aprovadas desta maneira.
A Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança, responsável por elaborar o Texto Constitucional na área da segurança pública, comandada pelo deputado Ricardo Fiúza, fez as sessões de debates contarem com 28 convidados: apenas 2 eram membros da sociedade civil. Os outros 26 eram membros das Forças Armadas ou de forças policiais do país.
“Enquanto a estrutura de polícia política dos DOPS era desmontada com a reabertura democrática, outra era fortalecida no seio das PMs para que o Exército Nacional pudesse continuar sua vigilância política.”
Antes da Constituinte, porém, os militares já preparavam terreno para, em tempos democráticos, manter seu poder sobre as polícias. Em 1983, ainda sob a ditadura, foi aprovado o Decreto 88.777, implementando o novo R-200. O regulamento não só reforçou a função de manutenção da ordem das PMs, como passou a estabelecer que as P-2 (divisões de inteligência das PMs) ficassem integradas ao Sistema de Informações do Exército.
Em outras palavras, enquanto a estrutura de polícia política dos DOPS era desmontada com a reabertura democrática, outra era fortalecida no seio das polícias militares estaduais para que o Exército Nacional pudesse continuar sua vigilância política sobre a população brasileira através da maior rede de inteligência policial do país.
Estado de exceção permanente
Em resumo, no processo de redemocratização brasileiro, as polícias militares viraram uma espécie de refúgio da ditadura. Para usar o termo de Luiz Eduardo Soares, um “enclave” autoritário abrigado dentro do nosso próprio Estado Democrático de Direito. Um espaço para que os militares pudessem continuar suspendendo direitos daqueles a quem consideram inimigos internos, é claro, em seus próprios termos do que se possa considerar um inimigo.
É a continuidade da história das polícias no Brasil como um verdadeiro mecanismo de Estado de exceção permanente. Um mecanismo que, da prisão por vadiagem ao esculacho nas periferias, suspende direitos de cidadãos e cidadãs mantendo a ordem desigual e injusta deste país. Um mecanismo que, perigosamente, vai cada dia mais se soltando da máquina estatal para girar como uma engrenagem autônoma, de vontades políticas próprias.
Por isso, pedir o fim da PM também é dizer: 64 nunca mais!
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Almir Felitte é mestre em Direito pela Faculdade de Ribeirão Preto (USP). Atualmente é advogado e academicamente atua nos seguintes temas: sociologia do direito, instituições policiais, segurança pública, direitos humanos e militarismo. É autor do livro A história da polícia no Brasil: Estado de exceção permanente? (Autonomia Literária, 2023).