É hora de apontarmos culpados? Por Milly Lacombe

No UOL

As imagens que chegam do Rio Grande do Sul nos transbordam. Corpos boiando, cemitérios destruídos, ossos dos mortos pelas águas, infestação de ratos e baratas, cachorros ganindo por ajuda já quase inteiros submersos, famílias separadas, crianças que procuram seus pais e mães; pais e mães que procuram suas crianças, corpos de bebês afogados, alerta de infecções por causa da invasão de água putrefata, alerta de aumento de dengue por causa do calor absurdo combinado às águas paradas, o ambiente ideal para que os mosquitos proliferem rapidamente, hospitais alagados e interditados, gado boiando, o céu desabando.

Distopia. Ficção científica. Filme de terror.

Chamemos como quisermos sem jamais esquecer que é de vidas muito reais que estamos falando.

Corta.

Uma quantidade inédita de pessoas, do país inteiro, fazendo doações e se mobilizando para ajudar. Cidadãos e cidadãs entrando nas ruas alagadas para resgatar vizinhos, cachorros, vidas. Repórteres chorando ao vivo. Milionários mandando seus aviões e barcos para as áreas afetadas. A população civil entregue a fazer o que estiver ao seu alcance.

Como chegamos até aqui?

A chuva cai sobre esse planeta há bilhões de anos. Ela chegou aqui milênios antes da gente. Aliás, nós dependemos dela e ela não depende da gente. Chuvas torrenciais fazem parte da necessidade que a natureza tem de se equilibrar. Calores extremos provocam chuvas extremas. Chuvas que caem sobre uma mesma região e se negam a seguir seu rumo fazem isso porque a alteração forçada daquela vegetação encurrala a tempestade.

Não se desmata e queima a Amazônia, o Cerrado, os Pampas sem que a natureza busque um novo equilíbrio – e ela tem feito isso em grandes movimentos. É o que ela está fazendo agora diante de nossas ações predatórias e gananciosas.

Desde a década de 1970 cientistas avisam sobre o que aconteceria com o clima do planeta se seguíssemos acelerando capitalismo adentro. Há relatórios, há documentos, há registros dos alertas. Parem, diziam os cientistas chamados de alarmistas pela opinião pública sempre tão influenciada pela mídia.

“Se a noção de progresso esteve até hoje tão vinculada à ideia de dominar a natureza, de desencantá-la pelo cálculo, pela mensuração e quantificação, de poder organizar previsões que nos imunizassem contra a escassez, de controlar o involuntário e o contingente, é porque o desejo de progresso sempre esteve fundado no medo de estarmos diante de forças que não controlamos, que colocam em risco nossa autopreservação”. Esse trecho tirei do livro “O Alfabeto das Colisões”, de Vladimir Safatle.

Foi com esse ideal fictício de “nós contra a natureza” que os governos militares deram início ao desmatamento institucionalizado da Amazônia, que eles chamavam literalmente de “inferno verde”.

Era a noção arrogante e liberal de que tínhamos que dominar o meio ambiente para nos proteger e desenvolver.

Saímos por aí devastando tudo em nome de um certo progresso que nunca chegou e, agora sabemos, não vai chegar. Achamos que éramos nós que impactávamos o meio e estamos descobrindo, das formas mais trágicas, que é o oposto: é o meio que nos impacta.

Podemos voltar esse filme até chegar em Colombo e Cabral? Facilmente. O colonialismo e a exploração desenfreada da terra têm tudo a ver com o que está acontecendo. Lembremos que o Brasil, antes de ser uma nação, foi um experimento econômico latifundiário escravagista exportador, como ensinou Celso Furtado.

A crise é socioclimática e é mundial.

Hoje é o Rio Grande de Sul. Ontem foi o litoral de São Paulo. Antes, o Rio. Enquanto Porto Alegre submerge, cidades no Texas e nos Emirados passam pelo mesmo fenômeno.

Saímos de uma pandemia e enquanto esperamos pela outra – também fruto da crise climática porque espécies que não deveriam se misturar com humanos seguem em busca de territórios seguros para elas também – estamos lidando com a dengue, com rastros da covid, com chuvas e secas jamais experimentadas por civilizações anteriores.

Mas seria essa a hora de buscarmos culpados?

Sim.

É a exata hora para isso. Aliás, desconfie de quem diz o oposto. Mostrar solidariedade com os que sofrem não nos impede de deixar a raiva sair e ser dirigida a quem merece.

E quem seriam essas pessoas?

Num recorte mais fechado de tempo, talvez possamos começar com os militares na década de 70. Mais fechado ainda, teríamos que falar das políticas entreguistas de Fernando Henrique Cardoso e de sua privataria que ofereceu por centavos a gestão dos recursos nacionais a interesses privados e internacionais.

Lula e Dilma entram também nessa conta da negligência, especialmente com Belo Monte.

Aqui precisamos fazer um aprofundamento que explica muita coisa sobre o que está acontecendo no Rio Grande do Sul.

O relatório “Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima”, encomendado em 2014 pela gestão de Dilma Rousseff, do PT, apresentava resultados dramáticos a respeito dos anos futuros e sugeria que deveríamos agir de imediato para que o caos climático não nos atingisse.

Na época, uma equipe de cientistas e pesquisadores notáveis se dedicou a um trabalho sério e inédito cujas conclusões foram apresentadas ao governo de Dilma em um documento tão histórico quanto, hoje, secreto. Para resumir: o documento foi engavetado e a equipe que nele trabalhou foi demitida. “Esse assunto é sem relevância na nova SAE”, teria dito Mangabeira Unger, ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

O jornal Intercept recentemente tentou acesso ao estudo e relatou toda a dificuldade para encontrá-lo. A repórter Tatiana Dias fala de sua saga num texto que deve ser lido e cujo link disponibilizo ao final do texto.

O governo Dilma Rousseff fez o que todos fizeram antes e depois dele. Negligenciou a crise climática e fechou com os interesses privados da exploração predatória.

Chegamos ao governo do Rio Grande do Sul e às posturas negacionistas de seu líder Eduardo Leite.

Um google bem rápido mostra todas as ações do governador que colaboraram para destruir a natureza e aprofundar a crise.

Agora, numa cara de pau assombrosa, ele vai às redes sociais cobrar que cidadãos e cidadãs façam um Pix aí pelo amor de deus, olha que tragédia, chuvas sem precedentes, não é hora de acharmos culpados, estamos todos juntos, chega aí Lula, deixa eu vestir um coletinho da defesa civil para sair na foto, vamos sobrevoar as regiões alagadas e produzir aquele vídeo clássico dos gestores gerindo, depois jantamos no palácio tomamos um vinho, esquece o que eu falei sobre você no verão passado, esquece que eu disse coisas contra a vacina da covid, esquece que me recusei a te apoiar contra Bolsonaro, esquece que eu dei declaração a favor do Bolsonaro mesmo sabendo que ele quer ver gays mortos.

Esse é o governador que nesse momento soa desesperado.

Falamos do prefeito de Porto Alegre e de tudo o que ele fez para colaborar para o aquecimento da região? Talvez não precisemos, mas tem aqui matéria sobre como ele não investiu um centavo na prevenção contra enchentes para quem se interessar. Basta saber que se trata de uma réplica dos ideais liberais de Leite. E de todos os deputados, deputadas, senadores e senadoras que votam com o agro para que rios sejam destruídos.

Agora mesmo existem uma série de PLs transitando no parlamento que acentuam a crise climática. O PT de Lula apoia a exploração de petróleo na Amazônia. Tem gente ali que se orgulha de achar que o correto é explorar até a última gota. Esquerda e direita se beijam e dormem juntas quando o assunto é crise climática.

Quando virem a próxima imagem de um corpo boiando nas ruas de Canoas ou de Lajeado ou de Porto Alegre, ou uma senhora chorando a casa perdida, ou um cachorro com água até o focinho ganindo por ajuda pensem naqueles que negam a crise climática.

“O Brasil precisa discutir seriamente a decretação de um estado de emergência climática que limite drasticamente a devastação ambiental do agronegócio, que imponha política rígidas de reflorestamento urbano e crie fundos permanentes para obras contra catástrofes”, escreveu Safatle no Twitter.

Acho que não há como contestar a necessidade. Mas para isso teríamos que mudar imediatamente nosso modelo de pensamento.

Contextualizar o que entendemos por progresso e desenvolvimento e compreender que aquilo que chamamos de progresso rima apenas com catástrofe: a catástrofe do crescimento exponencial num planeta de recursos finitos ou, como colocou Celso Furtado: a ideia de que pessoas pobres podem um dia desfrutar do estilo de vida das pessoas ricas é simplesmente inalcançável.

Furtado, conta Safatle em “O Alfabeto das Colisões”, chegou a essa conclusão depois de ter acesso a um relatório chamado “Os limites do crescimento” publicado – atenção para a data – no começo dos anos 70.

Nele ficava claro que o estilo de vida proposto pelo capitalismo seria, sempre, destinado a poucos na conta de muitos. É a velha máxima do “não haveria Manchester sem Mississipi”. Não haveria essa Europa sem a exploração devastadora de África também. Quando se fala em riqueza de alguns seria importante lembrar que ela não existiria sem a miséria de muitos.

O que temos que fazer é aumentar as áreas dos parques nacionais e das reservas ecológicas para começar a reverter a situação de calamidade. Isso significa escutar mais o que dizem as populações originárias do que o que dizem CEOs e executivos.

Há hoje no bioma Pampa, esse que está na região atingida pelas chuvas no Sul, aproximadamente de 6 milhões de hectares de campo nativo. São 60 mil quilômetros quadrados ou 30% da área total do bioma. É pouco. A monocultura da soja que destrói o bioma está voltada para a exportação. Para alimentar refugiados na Europa ou na África? Não. Para alimentar vacas europeias e para fazer óleo combustível.

Temos a Lei de Proteção da Vegetação Nativa determinando que toda propriedade rural tem que ter 20% da sua área de vegetação nativa protegida. Por que? Porque em um metro quadrado de campo nativo encontram-se 56 espécies de plantas. É uma riqueza imensa. É vida que não acaba e que a gente não se importa em destruir em nome de interesses privados.

Mas quem deveria fiscalizar esse troço? A Secretaria do Meio Ambiente de cada estado.

Por lei, toda propriedade tem que declarar quanto tem de vegetação nativa, quanto está sendo cultivado, quais são as áreas de preservação permanente e a de reserva legal. Já seria um começo que a lei fosse cumprida e fiscalizada. Só que acontece que, segundo o Professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da UFRGS, Valério Pillar, a Secretaria do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul simplesmente não faz a verificação.

Segundo estudo do IPEA, o faturamento das grandes empresas do agronegócio voltado para exportação cresceu mais de 210% (140% acima da inflação) entre 2017 e 2022. Vamos lembrar que no governo de FHC foi sancionada a Lei Kandir, que isenta do pagamento de ICMS as exportações de produtos primários e semielaborados ou serviços. Você paga ICMS? Pois o Agro não paga. Não paga, dizem, para melhor nos servir. O que, claro, só acredita quem acha que faz bem para a saúde comer a quantidade industrial de agrotóxicos liberada pelo governo Bolsonaro para deixar o agro ainda mais ágil e rentável.

Tudo isso está dentro do que estamos vendo acontecer no Rio Grande do Sul. Mas façamos o recorte curto de tempo.

Mesmo dentro de um recorte curto de tempo, o passo a passo da tragédia no Rio Grande do Sul é simbólico.

Empresas de meteorologia fizeram alertas seguidos, tudo ignorado pelo governador que, há menos de um ano, testemunhou seu estado afundar.

Vai dar ruim, dizia muitos dias antes o MetSul, uma empresa de meteorologia que alguns chamam de alarmista. Havia nos alertas um tom de desespero que foi ignorado pelas autoridades locais. A jornalista Bela Reis fez a pesquisa desses avisos e desenhou uma linha do tempo assombrosa a respeito do que fez – ou deixou de fazer – o poder público. Recomendo que escutem o episódio 234 do podcast Angu de Grilo, com Bela e Flavia Oliveira.

Qual o planejamento feito pelo gestor do estado diante dos alertas que chegaram com dias e dias de antecipação? Nenhum. Zero. Nada.

Pelo contrário: No começo de abril ele estava sancionando uma lei que flexibilizava regras ambientais para a construção de barragens em área de preservação permanente. Aplaudido por grandes produtores rurais. O agro, afinal, é, assim como o governador do Rio Grande do Sul que na última catástrofe estava dançando com Ivete Sangalo em São Paulo, muito pop.

A catástrofe de setembro de 2023 se repete no estado de Leite em Maio de 2024 e tudo o que temos é a figura do político de mangas arregaçadas, coletinho da defesa civil, cara de homem sério, tentando mostrar que está trabalhando.

Quando Leite finalmente resolveu dar ouvidos para o que falavam as empresas de meteorologia, foi para as redes sociais, com sorrisinho de lado, dizer: olha, não sou o homem do tempo, mas? e fez uma performance vazia e bastante rasa de moço do tempo. A tempestade dobrando a esquina e ele com ares de “que saco isso. Vou sair daqui e ver se descolo ingresso para o show da Madonna no Rio”.

O vídeo da performance moço do tempo está disponível na Internet para quem quiser se enfurecer um pouco mais.

É um teatro macabro e seria importante que não nos deixássemos enganar.

Há políticos sérios que de fato estão trabalhando. São senadoras, senadores, deputados e deputadas que faz anos falam da crise climática. São ativistas e pesquisadores. São professores, artistas, criadores e lideranças de movimentos sociais como o MST que nos alertam para a necessidade de pararmos imediatamente de fazer o que estamos fazendo com o planeta.

Passou da hora de prestarmos atenção nessa gente que há décadas fala sozinha. Passou da hora de colocarmos as políticas liberais de lado. Passou da hora de ignorarmos o voto em quem se recusa a abordar a crise climática como central em sua campanha.

Acho bonito e importante que nos solidarizemos com os gaúchos. Doem. Importem-se. Rezem. Façam o que puderem. Mas se não apontarmos o dedo para os verdadeiros responsáveis que agora se fantasiam de gente decente de nada adiantará e amanhã estaremos, outra vez, chorando pela próxima população que a água levará ou a seca sufocará. O pior lugar do mundo é aqui e agora. Estamos juntos nessa e ninguém vai se salvar sozinho. Agir é imperativo.

Então, se você chegou até aqui, saiba que essa é a exata hora de apontar responsáveis. Apontar responsáveis não mata pessoas em cheias. Quem mata pessoas em cheias é político compactuado com desmatamento. Apontar responsável não impede doações. Quem barra dinheiro para população carente é teto de gastos. Se não apontarmos culpados agora, quando?

Aqui o link para texto do Intercept citado.

Foto: Amanda Perobelli / Reuters / Agência Brasil

 

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