Perversidades e retrocessos na agenda do aborto. Por Flávia Biroli

É razoável impor a maternidade a crianças a quem a sociedade não foi capaz de proteger? Em que tipo de sociedade é legítimo tratar uma mulher estuprada com penalidades mais duras que a do estuprador? Em que contexto de exercício de poder pode ser normalizada a ideia de que uma mulher deve morrer ou ir para a cadeia se a gestação é de risco, mesmo havendo lei que prevê que ela teria acesso ao aborto nesse caso?

Desde 1940, as mulheres brasileiras podem legalmente realizar um aborto quando a gestação resulta de estupro ou se há riscos de que morram devido a problemas gestacionais. São duas situações extremas, que foram tacitamente aceitas por muito tempo, embora o acesso ao aborto legal tenha sido sempre difícil no país. Em 2012, passamos a ter uma terceira exceção à criminalização, a anencefalia fetal, caso também extremo em que não há possibilidade de vida fora do útero. Também nos anos 2000, no primeiro ciclo de governos do PT, a Norma Técnica Atenção Humanizada ao Aborto, do Ministério da Saúde (2005 e 2014), apontava para uma orientação estatal alinhada à legislação existente, procurando garantir atendimento às mulheres que decidissem abortar nos casos permitidos por lei.

É essa regulação, tímida e insuficiente, que tem sido atacada por aqueles que entendem que a mulher deveria ser obrigada pelo Estado a manter a gestação contra sua vontade. O instrumento mais recente é o PL 1904/2024, proposto e sustentado, em particular, por parlamentares da extrema-direita brasileira. Há poucos anos, em 2015, mulheres foram às ruas de todo o país contra outro projeto, o PL 5069/2013, proposto pelo então deputado Eduardo Cunha em conjunto com outros parlamentares evangélicos e católicos. Eles também tinham como objetivo dificultar e restringir o acesso de mulheres que sofreram estupro ao aborto legal.

O PL 1904/2024 prevê pena de até 20 anos de prisão para mulheres que abortem a partir de 22 semanas de gestação. Os casos em que se chega a essas 22 semanas são, comumente, o de crianças que foram estupradas e não têm experiência para reconhecer o que está acontecendo no seu corpo. Ou têm medo de contar a alguém, já que, segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a maior parte dos abusos acontece em casa e é cometida por familiares ou conhecidos. Estamos falando de uma redução radical do direito ao aborto, já que um terço dos abortos legais ocorrem nessa fase da gestação.

Outro caso em que o PL poderia incidir brutalmente, a depender do texto final que seja votado, é o de mulheres que correm risco de morrer se prosseguirem na gestação. As que têm mais tardiamente diagnósticos de risco são justamente aquelas para quem o acesso ao sistema de saúde é precário ou lento. Mulheres pobres, negras, que vivem em áreas rurais ou áreas urbanas com difícil acesso a atendimento. São, muitas delas, mães que estão apavoradas com a possibilidade de deixar órfãos os filhos que já têm, as pessoas que amam. Os parlamentares que defendem o PL 1904/2024 estão determinando que, a partir de 22 semanas de gestação, essas mulheres teriam que escolher entre morrer ou ser presas.

As manifestações e debates suscitados em 2015 e, neste momento, contra o PL 1904/2024, apelidado de PL dos estupradores, mostram que há disposição de mulheres de diferentes idades para lutar contra decisões arbitrárias que comprometem sua saúde, sua integridade física e mental, sua condição de cidadãs plenas. Também representaram um processo de construção coletiva e aprendizado. Os protestos de 2015 foram importantes para manifestações políticas que vieram depois, como o “#ForaCunha!” e o “#EleNão!”. Em todos os casos, está presente a denúncia de que há relação entre os ataques às mulheres, a expansão de posições violentas no campo da direita e a erosão da democracia.

A expansão do direito ao aborto na região, assim como os ataques a esses direitos, são uma janela para a compreensão das disputas em torno dos sentidos e do escopo da democracia. As demandas dos movimentos feministas têm historicamente pressionado pela democratização do Estado e da sociedade. E têm sido um dos alvos dos movimentos que atuam para restringir as democracias e normalizar formas autoritárias e abertamente excludentes de gestão dos conflitos políticos e sociais.

As estratégias para restringir o aborto legal e criminalizar as mulheres se acentuaram com a descriminalização do aborto em alguns países, nos anos recentes – no Uruguai (2012), na Argentina (2021), no México (2021) e na Colômbia (2022), além da definição de novas exceções à criminalização, desde 2007, no Brasil, na Bolívia, no Chile, no Equador e no Panamá, de acordo com dados do Observatório da Igualdade de Gênero da Cepal e da Human Rights Watch. No mesmo período, alguns países nos quais as leis são altamente restritivas permaneceram estagnados (Honduras, Paraguai e Peru) ou ampliaram a criminalização, por mudanças nas leis (Nicarágua e República Dominicana) ou persecução penal mais rigorosa a mulheres que abortam (El Salvador). Em alguns deles, o processo de erosão das democracias e construção de um estado penalista autoritário tem sido acentuado.

A extrema-direita brasileira não esconde sua hostilidade aos feminismos e a outros movimentos de luta pelos direitos humanos e a coloca no centro de suas investidas contra a democracia. Durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-22), ativistas contrários ao aborto ocuparam cargos em ministérios chave para as políticas de gênero, como o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e o Ministério da Saúde. Dessa posição, atuaram para restringir o acesso de meninas e mulheres ao aborto legal. A ministra Damares Alves se envolveu pessoalmente na tentativa de impedir que uma criança de 10 anos, violada pelo tio no Espírito Santo, tivesse acesso ao aborto nos termos definidos pelo Código Penal desde 1940. Em 2022, o secretário de atenção primária à saúde, hoje um dos atores que têm orientado a política do Conselho Federal de Medicina contra os direitos das mulheres, elaborou uma cartilha para gestantes que ignorava a legislação brasileira, afirmando que “todo aborto é crime” e que os casos de aborto previstos em lei deveriam ser acompanhados por investigação policial. Denúncias dos movimentos feministas e de direitos humanos levaram a uma revisão da cartilha, mas a orientação de limitar o acesso e tornar mulheres e agentes de saúde objeto de desconfiança e potencial penalização segue sendo ativada pela extrema-direita no Congresso, nos conselhos de medicina e em algumas instâncias do Judiciário.

Assim, o esforço para limitar o acesso ao aborto legal e criminalizar as mulheres que desejam interromper a gestação, com foco nos casos previstos por lei, dá a tônica das disputas atuais: mantém os movimentos feministas e de direitos humanos numa posição em que a luta é por garantir o pouco que já temos, em vez de expandir um direito fundamental à cidadania de meninas e mulheres.

A política da perversidade de parlamentares e médicos que querem impedir que meninas e mulheres abortem está na contramão de valores humanitários. Muitos desses parlamentares, médicos e juristas radicalizados, escondem sua desumanidade sob a ideia de crença. Mas renegam os sentidos de solidariedade e empatia compartilhados por diferentes religiões e filosofias seculares. Seu cálculo político e seu fanatismo os impedem de reconhecer o sofrimento de mulheres e meninas, mas, principalmente, impedem que se orientem pela proteção à dignidade humana.

É razoável impor a maternidade a crianças a quem a sociedade não foi capaz de proteger? Em que tipo de sociedade é legítimo tratar uma mulher estuprada com penalidades mais duras que a do estuprador? Em que contexto de exercício de poder pode ser normalizada a ideia de que uma mulher deve morrer ou ir para a cadeia se a gestação é de risco, mesmo havendo lei que prevê que ela teria acesso ao aborto nesse caso?

Não acredito no diálogo com quem lidera o caminho para a barbárie. Mas há muitos outros, inclusive religiosos, no nosso cotidiano e no Congresso nacional a quem pode ser importante perguntar: você pactua com uma norma que obriga crianças estupradas a serem mães?

Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em coautoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014) e com Maria das Dores Campos Machado, Juan Marco Vaggione, Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina (Boitempo, 2020).

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