Governo Brasileiro pede desculpas pelos crimes perpetrados contra a Comunidade Japonesa após a Segunda Guerra

Por Joaquim Shiraishi Neto[1] e Mirtes Tieko Shiraishi[2]

No dia 25 de julho deste ano de 2024, às 14 horas, em Brasília, muitos descendentes de imigrantes japoneses, presentes em caravana, se sentiram contemplados pelo pedido de perdão, formalizado pela Comissão da Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, representando o Estado brasileiro.

O ato ocorreu no edifício-sede do referido Ministério e resultou do pedido de reparação coletiva, sem fins pecuniários, à comunidade japonesa no Brasil, em razão das graves violações aos direitos humanos, perpetradas após a 2ª. Guerra Mundial.

Mario Jun Okuhara idealizou o movimento e esteve à sua frente desde o início, com a formulação do pedido em 11/11/ 2015, e a produção de um relatório e de um documentário, contando posteriormente com o apoio da Associação Okinawa Kenjin do Brasil que se juntou à causa em 2018.

Em retrospecto, na sessão histórica de julho recente, Mario Jun relembrou que o processo de reparação despontou na audiência pública realizada em 2013, perante a Comissão da Verdade Rubens Paiva, da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, então presidida pelo deputado Adriano Diogo (PT-SP). Ali, foram denunciados casos de tortura e morte de imigrantes japoneses entre 1946 e 1952, com destaques para os casos da Ilha Anchieta[3] em razão da existência de vítimas ainda vivas naquela ocasião.

Na  audiência pública de 2013, Mario Jun registrou que foram evidenciados episódios de perseguição política, tortura, prisões arbitrárias, humilhação, abusos, racismo, como herança do governo de Getúlio Vargas[4]. Ele ainda destacou naquela sessão, que todos os acontecimentos ocorreram durante o período democrático, “constitucional” do Brasil, no pós-guerra, sob o governo do presidente eleito, Eurico Gaspar Dutra, quando uma Assembleia Constituinte trabalhava na elaboração de uma nova Carta Constitucional para o país.

No período do pós-guerra, como evoca o proponente Mario Jun, os imigrantes japoneses, antes tidos como inimigos do povo brasileiro, passaram a ser considerados também como terroristas, sofrendo inúmeras restrições aos seus direitos. Essa repressão acabou por gerar uma polarização interna na comunidade japonesa, que gerou atentados na cidade de São Paulo e interior do estado. Tais episódios bastaram para estimular a ação truculenta do DOPS – Departamento de Ordem Política Social, na qual se inserem a prisão de 172 imigrantes japoneses, detidos no Instituto Correcional Ilha Anchieta entre os anos de 1946-1948, e a expulsão de outros membros da comunidade na cidade Santos em 1943.

Dentre os prisioneiros na Ilha de Anchieta, estavam Fusatoshi Yamauchi e Fukuo Ikeda, acusados de crimes contra a segurança nacional e infrações previstas na legislação então vigente. Sem acusação formal, como conta ainda Mario Jun, eles foram submetidos a interrogatórios ilegais, incluído o “fumiê”, método pelo qual, colocada a bandeira do Japão ou o retrato do Imperador, no chão da delegacia de polícia, os imigrantes eram provocados a pisar sobre eles. Se o fizessem, eram liberados; se negassem, eram presos. Diante da recusa, foram conduzidos para a Ilha Anchieta, no litoral norte do estão de São Paulo.

Fusatoshi Yamauchi resistiu e tornou-se uma liderança entre os imigrantes aprisionados na Ilha.  Fukuo Ikeda, contudo, não resistiu às torturas e faleceu em 1948. Oficialmente, em seu prontuário, está registrado o cometimento de suicídio quando tinha apenas 23 anos de idade.

Mario Jun ainda revelou perante a Comissão da Anistia que os restos mortais de Ikeda estão enterrados numa “vala comum”, pelo visto, prática comum de regimes ditatoriais, na cidade de São José dos Campos, interior de São Paulo, visitada por ele pessoalmente.

A eclosão da 2ª. Guerra Mundial já causara à comunidade japonesa severa restrição e cerceamento de direitos: rádios e jornais impedidos de transmitir notícias em língua japonesa; proibição aos imigrantes do uso da língua natal, o  japonês, em público; decretação do fechamento de escolas; proibição de associação; expropriações; confinamento em campos de concentração; interdição de locomoção sem salvo-conduto.

Com base nos fatos ocorridos com Yamauchi e Ikeda, relatados perante a Comissão da Verdade, pleiteou-se o reconhecimento da existência de perseguição política contra a coletividade de imigrantes japoneses e seus descendentes, por meio de atos perpetrados pelo Estado brasileiro com a aplicação da legislação do Estado Novo, contrária à “preservação da dignidade das famílias japonesas” (Okuhara, 2024). O pedido oficial de desculpas não previa qualquer indenização pecuniária.

A reparação coletiva buscou atender à pretensão da comunidade e de seus descendentes, envolvendo dois atos: o reconhecimento do erro do Estado brasileiro, por meio da declaração de anistia política coletiva, e o pedido de desculpas, consequência do primeiro.

Somaram-se aos casos da Ilha Anchieta, para embasar o pleito de reparação, como rememorado na cerimônia de julho de 2024, as milhares de prisões sem fundamento efetuadas pelo DOPS;  o confisco de bens; os campos de concentração em Tomé-Açu, no estado do Pará, e na cidade de Tupã, no estado de São Paulo; a expulsão em massa na hotelaria da rua Conde de Sarzedas, na cidade de São Paulo, e a remoção forçada de 6.500 de imigrantes japoneses e descendentes, num prazo de 24 horas, da cidade de Santos, estado de São Paulo, para a hospedaria dos Imigrantes, atual Museu da Imigração.

O Decreto-lei nº 4.166, de março de 1942, que assegurou o confisco dos bens,   ainda continua em vigor, a despeito de recente pedido de sua revogação.

Em sua defesa perante a Comissão da Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Mario Jun frisou que a violência do Estado contra os imigrantes japoneses ocorreu num período em que eles “não estavam em guerra”, eram civis, ocupados tão somente com sua “sobrevivência” e com a” busca de um “lugar ao sol” para si e suas famílias, seus filhos nascidos em solo brasileiro, trabalhando nas lavouras, integrados à sociedade brasileira, em diversas áreas.

Embora o pedido apresentado perante a Comissão da Anistia tivesse como base os episódios da Ilha Anchieta, o proponente salientou que os outros fatos citados, sobretudo os ocorridos na cidade de Santos, envolvendo a repressão à comunidade japonesa, demonstravam que houve um continuum fático de perseguição no pós-guerra, em função da legislação oriunda do Estado de Novo.

Por fim, a conclusão da Comissão da Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, proferida na sessão ocorrida em dia 25 de julho, foi no sentido da comprovação da perseguição exclusivamente política sofrida pela coletividade de japoneses, de conhecimento oficial do Estado brasileiro.

Voltando às palavras do idealizador e proponente do movimento de reparação, Mario Jun Okuhara, a retratação feita pelo Estado brasileiro perante os imigrantes japoneses e seus descendentes representou uma grande oportunidade para o Brasil “reconciliar-se com o seu passado” e “corrigir um “erro histórico”. E para as famílias, trouxe a possibilidade de “honrar os seus antepassados”, “trazer um pouco de conforto emocional”. E, “sem apagar as atrocidades cometidas”, criar uma oportunidade para ”aprender com os fatos” para que não voltem a acontecer, “independente de sua origem ou etnia. São histórias de resistência que nos inspiram a lutar contra o racismo, a xenofobia, o ódio e a intolerância em todas as suas formas …”

Para as “novas gerações”, segundo Mario Jun, o movimento representa ainda “o compromisso com a defesa do estado democrático de direito para um futuro mais justo, mais solidário e mais humano”.

A cerimônia de julgamento possibilitou ao proponente também a defesa do papel da educação como o principal instrumento para que as futuras gerações compreendam “a importância de valorizar a diversidade e a construir uma sociedade onde todos possam conviver com respeito e dignidade”, sem quaisquer formas de preconceito, xenofobia e racismo, tal como disposto na Constituição Federal de 1988.

Na leitura de seu voto, a relatora Vanda Davi Fernandes de Oliveira, da Comissão da Anistia, relembrou o indeferimento parcial do pedido em sessão realizada no dia 30 de novembro de 2021, época sombria vivida recentemente, que foi objeto de recurso pelos proponentes.

Em seu pronunciamento, ela reconheceu a existência de “documentos suficientes e aptos a demonstrar a detenção de japoneses em campos de concentração no Instituto Correcional Ilha Anchieta entre os anos 1946-1948”, reveladora da perseguição política sofrida pelos imigrantes japoneses e seus descendentes, de conhecimento oficial do Estado brasileiro, a ensejar a declaração de anistia política.

Deferido o pedido formulado, foi declarada a anistia coletiva à comunidade japonesa e aos seus descendentes, com base no artigo 1º, inciso I, da Lei 10.559/2002, oficializando-se em nome do Estado brasileiro o pedido de desculpas pela perseguição sofrida no período ditatorial.

A presidenta da Comissão da Anistia proclamou, enfim, a decisão do Conselho da Comissão de Anistia e, dirigindo-se a todos os presentes naquela solenidade, integrantes da comunidade de imigrantes japoneses, e a todos os demais que a assistiam virtualmente, reconheceu o erro do Estado brasileiro ao perseguir os imigrantes japoneses e pediu desculpas em nome do mesmo Estado brasileiro, aos seus antepassados, “por todas as barbaridades, atrocidades, crueldades, torturas, preconceito, ignorância, xenofobia, racismo.”[5]

Também manifestou sua intenção de que as histórias trazidas perante aquela Comissão possam ser contadas às gerações futuras para que não se repitam e para que se possa construir um país de respeito aos direitos humanos, à diversidade e à pluralidade.

***


Referências

Brasil pede desculpas por perseguição a imigrantes japoneses, julho de 2024. Disponível em: https://youtu.be/ZXiOiV6Idw4?si=XXUmCb19GhTxK9Qj. Acesso em 18 de dezembro de 2024.

OKUHARA,  Mario Jun. Defesa do proponente.Brasília, 25 de julho de 2024. (mimeo).

OKUHARA,  Mario Jun. Yami no Ichinichi – o crime que abalou a colônia japonesa no Brasil, de Okuhara (2012). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QDf_egB3MG4. Acesso em: 18 de dezembro de 2024.

SHIRAISHI NETO, Joaquim; SHIRAISHI, Mirtes. Código Amarelo: dispositivos classificatórios e discriminatórios de imigrantes de japoneses no Brasil. São Luís: Edufma, 2016.

[1] Advogado. Bolsista Sênior da Universidade Estadual do Maranhão vinculado ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Socioespacial e Regional (PPDSR).

[2] Advogada.

[3] A respeito das violações cometidas pelo Estado brasileiro no período, sugerimos o documentário: Yami no Ichinichi – o crime que abalou a colônia japonesa no Brasil, de Okuhara (2012).

[4] No período do governo de Getúlio Vargas, vários foram os dispositivos legais editados contra os imigrantes japoneses, com vistas a dificultar a sua imigração. A ideia do “perigo amarelo” foi utilizada como pretexto a promover preconceitos, xenofobia e violências à comunidade japonesa. A propósito dessas medidas legais, consultar o Código Amarelo de Shiraishi Neto; Shiraishi (2016).

[5] Sobre o ato solene de pedido de perdão da Comissão da Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, representando o Estado brasileiro, ver o vídeo no youtu.be: Brasil pede desculpas por perseguição a imigrantes japoneses, julho de 2024.

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

dois × dois =