‘O Brasil mantém os indígenas como segmento anexado’, afirma antropólogo Gersem Baniwa

Pesquisador adverte para retrocesso do Estado brasileiro na inclusão dos indígenas como parte natural da sociedade e aponta combinação de fatores que ameaça a existência desses povos

Por Ivânia Vieira, em A Crítica

O pensamento prevalente nas décadas de 1960 e 1970, quando os povos indígenas eram tratados como empecilho ao desenvolvimento nacional, está de volta. Reaparece forte e sustentado por vários instrumentos de efeitos combinados na estrutura de poder do Brasil. É essa a percepção de um dos mais respeitados intelectuais indígenas do País, o antropólogo Gersem José dos Santos Luciano.

“Vivemos um retrocesso e, se não cuidarmos dessa questão com a atenção que ela merece, voltaremos ao estágio de cinco décadas atrás, quando a ordem era extinguir os povos indígenas”, afirma o pesquisador e diretor do Departamento de Ações Afirmativas da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

Por meio do Fórum de Educação Escolar Indígena (Foreeia), do qual é coordenador, e em parceria com organizações do movimento indígena da região, Gersem Baniwa trabalha, desde o ano passado, para realizar em Manaus um encontro de discussão e proposição a partir dos indígenas.

A data está definida: 17 e 18 deste mês. Um dos temas que mais o  mobiliza é a educação escolar indígena. O estudioso tem denunciado a precariedade das escolas indígenas no Amazonas e o silêncio oficial sobre o assunto. Nesta entrevista a A CRÍTICA, Gersem Baniwa explica o porquê do retrocesso brasileiro que mantém os povos indígenas como anexados.

Por que o senhor afirma que o Brasil retrocede no trato com os povos indígenas?

O que está aí foi uma espécie de concessão para os índios em situação de esgotamento. O ano de 2015 mostrou muito claramente como os indígenas não estão recepcionados, não estão acolhidos em definitivo no seio da sociedade brasileira. Os povos indígenas voltaram a ser tratados como segmento anexado. Dito de outra forma, os povos indígenas não compõem  a sociedade brasileira.

No que se baseia para situar os indígenas como anexados?

Estamos lidando com a volta da visão civilizatória da colonização.  Nós, indígenas, estamos no lugar errado, no espaço errado e no tempo errado porque essa sociedade é calcada numa civilização ocidental européia capitalista, monopolista e individualista, enquanto nossas sociedades, as culturas indígenas, o pensamento indígena não se encaixam nesse modelo. Os povos indígenas não estão a fim e não querem aderir a uma civilização com essas características, que preza o processo cumulativista com forte viés de degradação dos valores humanos e cosmológicos. Como indígenas, voltamos ao pensamento que prevalecia nas décadas de 1960/1970,  de que éramos empecilhos para o que essa civilização chama de desenvolvimento. As hostilizações às quais os indígenas estão sendo submetidos mostram essa realidade, estão aí os sinais de maior incidência de racismo, de preconceito e de discriminação.

No caso específico do Amazonas vejo que em 2015 ficou mais nítida a presença da frente expansionista no Estado. O problema em Humaitá (Sul do Amazonas, envolvendo os Tenharim) não é cultural, e sim de fundo econômico: por trás de todo o conflito criado está o interesse de chispar os povos indígenas. Primeiro tem que desqualificar esses povos para depois negar os direitos e “limpar” os territórios indígenas, a fim de que a vontade e as formas de expansão capitalista avancem e se realizem. Talvez tenhamos imaginado que essa era uma etapa vencida a partir das reformas, da Constituição de 1988, enfim, dos direitos instituídos constitucionalmente, do ingresso de indígenas na universidade. O que está ocorrendo mostra exatamente o contrário: não superamos e, pior, caminhamos para retroceder no que foi conquistado porque não somos, de fato, parte, apenas anexos.

Mas, na outra ponta ou mesmo em meio a esse processo está o movimento indígena agindo, reagindo…

Sim e esse é o outro dado importante. Se a dimensão cultural ainda se preserva fortemente no Brasil dando continuidade a uma visão filosófica colonial, de predominância européia que considera ter o direito de se sobrepor a qualquer outro povo, a outra cultura, a novidade é que temos outras formas hoje: intelectuais indígenas, educadores, há protagonismo. Os indígenas avançaram e se tornam cada dia mais sujeitos na construção da sua história e não iremos nos submeter calados ao retrocesso.

Agora, alguns sinais sobe como somos tratados devem ser vistos e refletidos. A ausência de indígenas na partilha e na participação dos campos superiores do poder é  um exemplo do tratamento dos povos indígenas como anexados. Nós não temos os mesmos direitos dos cidadãos neoeuropeus. Não temos em nenhum campo do poder, por exemplo no Amazonas, indígenas participando. Os índios não estão acolhidos na conformização do Estado. Examine as PECs no Congresso Nacional, todas elas são para negar direitos dos indígenas principalmente aqueles ligados aos territórios. Ora, sabemos que os povos indígenas sem território não existem. Logo há de fato uma ameaça de que voltemos a viver a década de 1970, quando a extinção dos povos indígenas era o discurso dominante.

Como o senhor qualifica a relação dos povos indígenas com o Governo do Amazonas?

É problemática, nebulosa e didaticamente confusa. Embora registremos que os espaços conquistados são resultados das estratégias e dos processos  construídos legitimamente pelos povos indígenas (como foi o caso da Seind, extinta no ano passado) ocorre mais uma vez dois aspectos: um, os povos indígenas subestimaram a importância desses espaços não considerando o que é o Estado, a serviço de quem o Estado está e de que modo o Estado opera e se organiza e em função de quais interesses. O Estado aproveitou esse espaço para se impor ainda mais neutralizando, domesticando e, de algum modo, manipulando a vida, a dinâmica, as pautas, as agendas, as resistências indígenas. Por outro lado, os povos indígenas, por meio das suas organizações, não foram capazes de perceber essas operações, estudar, refletir e agir sobre elas. Precisamos fazer do diálogo uma das nossas disposições em relação ao Estado.

Você poderia me perguntar, bem mas os índios  não conseguiram mais espaços e isso não é expressão do diálogo?  Eu digo não é. As ocupações de espaços diminuíram e até anularam o diálogo. Isso porque os índios ao ocuparem os espaços se tornaram mediadores e não conseguiam mais dialogar com os governantes, com os políticos. Estavam postos para dar conta de outras demandas e como são espaços subalternos, como foi o caso da Seind (uma secretaria interessante, mas [sem] recursos). Há muito tempo o governo não recebe indígenas para conversar. eu não me recordo quando foi a última vez. A volta da mobilização indígena tem que reposicionar o diálogo, ele é fundamental para o que os indígenas defendem.

Por que o diálogo não ocorre, o que o impede?

Os dirigentes do Amazonas não estão mais habituados a dialogar. São dirigentes que, em geral, não aceitam críticas porque passaram a última década sem receber críticas. Os índios, em suas funções, se tornaram alvo das críticas. A esfera superior do poder não suporta crítica. Então, temos que desenvolver, juntos, movimento indígena, governantes e políticos, um processo pedagógico para aprender a lidar com os movimentos sociais porque se não houver, nesse campo, a mínima combinação, o processo será muito mais difícil e doloroso. O objetivo das mobilizações não é apenas para marcar terreno, tem um desejo concreto de construir e avançar na construção de políticas de interesse dos povos indígenas. Hoje, qualquer crítica feita aos governos é recebida como sendo problema pessoal. Tratar dessa maneira é querer manter as coisas do jeito como estão.

O senhor tem sido vítima dessa interpretação?

Sim. Contudo, continuaremos a falar e a lutar para que possamos conversar, somar esforços e superar os problemas. Veja, ninguém quer assumir, por exemplo, a vergonha que é a infraestrutura das escolas indígenas. Querem manter invisíveis os problemas sérios que temos. Tentam convencer que o Amazonas é um Estado ambiental e socialmente bem organizado, sem problemas, pacífico, onde a paz reina. O movimento indígena deixou e o governo se aproveitou do momento silencioso para construir essa imagem. Agora, quando a gente  reage e expõe as mazelas que estamos vivendo, as autoridades entendem que é problema pessoal. Não é possível esse tipo de comportamento. No caso das escolas indígenas, eu tenho fotografias desses espaços e a precariedade é geral. No Vale do Javari o que se vê é deplorável, agride a todos nós. Como calar diante dessa realidade? Por isso, precisamos reinstaurar o diálogo para buscar soluções que não são fáceis e não podem ser unilaterais”.

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Perfil

Nome e idade: Gersem José dos S. Luciano ‘Baniwa’, 51 anos
Escolaridade: Graduado em Filosofia pela Ufam, Mestre e Doutor em  Antropologia Social pela Unb
Experiências: Co-fundador da Foirn, da Coiab; secretário municipal de Educação em São Gabriel da Cacheira; Atuou como coordenador-geral de Educação Escolar Indígena da Secad/MEC
Formação: Graduado em Filosofia (Ufam); Mestre e doutor em Antropologia Social (UnB); Recebeu o Prêmio Capes de Tese, em 2012;
Cargos: Gerente do Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas (PDPI); É professor da Faced/Ufam  e coordenador do Fórum de Educação Escolar Indígena do Estado do Amazonas (Foreeia).

Destaque: Gersem Baniwa é pesquisador e diretor do Departamento de Ações Afirmativas da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Foto de Evandro Seixas.

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