Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental
Ser integrante do Ministério Público não garante, como deveria, um compromisso prioritário com os interesses do Povo-Nação. Mas quando se trata dos procuradores da República ligados à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, nossa expectativa em geral ganha novos contornos. Trabalhar com Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais não é exatamente espaço para se buscar rapapés, trampolins para outros cargos ou alimento para vaidades. Quem faz esta opção sabe que disporá de menos recursos e terá de brigar com as chamadas elites, com o capital e, até mesmo, com os governos, como demonstram conflitos como os de Mato Grosso do Sul e Belo Monte. Em troca, receberá algo impossível de ser avaliado no mercado, mas muitíssimo valioso: algo que poderia ser definido como o reconhecimento de sua própria humanidade.
Assim, confesso que minha primeira reação ao saber que o novo Ministro da Justiça havia sido ligado à 6ª CCR e inclusive participado do processo de demarcação da Terra Indígena Yanomami, juntamente com a coordenadora Deborah Duprat, me fez quase feliz. E se a esta altura do campeonato Dilma Rousseff decidisse que chegava de bajular as elites e que ainda estava em tempo de governar para quem de fato merece? Quem sabe esta manhã eu ligaria o micro e descobriria que todas as terras indígenas com processos engavetados tinham sido homologadas e que todas as demais deveriam ser imediatamente identificadas e delimitadas! Mais: que o Diário Oficial portava igualmente determinações irrevogáveis quanto à obediência não só à Constituição, como ao Convênio 169 da OIT, por exemplo, também no que toca a todas as Comunidades Tradicionais…
É claro que acordei e nada disso havia acontecido. De qualquer forma, havia ainda alguma esperança: afinal, quem seria de fato o subprocurador da República Eugênio José Guilherme de Aragão? Em meio a outros textos e documentos, dei com as notas taquigráficas da sua participação numa audiência pública da Comissão Especial da PEC 215, na Câmara, em junho de 2015. E aí a realidade bateu fundo: corroborando a Lei de Murphy mais uma vez, descobri que o novo Ministro da Justiça não só era favorável à PEC, como a considerava necessária e até tinha sugestões para aprimorá-la!
Segundo ele, a população indígena é sua primeira preocupação, mas “não se pode querer resolver o problema dela de forma unilateral, não pensando no resto. Isso tem custo, e o custo vai ter que ser pago por alguém”. O modelo proposto pelo artigo 231 da Constituição de 1988 está ‘esgotado’ e “deve também ser olhado criticamente sob a sua consistência jurídica”, na medida em que toda a demarcação deveria estar concluída em 5 anos:
“Se em 5 anos não se conseguiu fazer essa demarcação, cabe a indagação: esse modelo não perimiu, não deixou de existir com uma perempção administrativa? Simplesmente deixou de fazer sentido depois de 5 anos, que era o comando constitucional”.
Para solucionar isso e para evitar um genocídio que arrisca ser consequência da atual “insegurança jurídica”, Eugênio Aragão sugere substituir as demarcações pela compra de terras pela União: “Se a porta da demarcação deve ser restritiva, porque o modelo está esgotado, a porta da compra deve ser generosa, ou seja, deve-se autorizar o poder público amplamente a poder comprar a terra”.
Nenhuma menção sequer a terras devolutas e/ou griladas por ruralistas e seus jagunços. Aparentemente, o pressuposto é de que todas as ‘propriedades’ incidentes em terras indígenas foram lidimamente adquiridas. E ele acrescenta, indo mais longe ainda que o Senado no cuidado com a questão:
“E hoje nós sabemos que, pelo marco atual do art. 231, a União é proibida de indenizar a terra nua. Então, isso tem que desaparecer. E nós temos que, pelo contrário, estimular a compra, temos que abrir essa porta dentro do normativo constitucional. Parece-me que aí será quase uma escolha natural. No momento em que se fecha a porta da demarcação, mas se abre a porta da compra, a tendência é ir tudo pela compra, o que não é ruim, porque realmente acaba convidando a se assumir um novo paradigma”.
Aceito esse novo paradigma, o valor total a ser gasto pela União na compra das terras necessárias para abrigar apenas as populações Kaiowá do Cone Sul de Mato Grosso do Sul superaria, segundo o atual novo Ministro, R$ 1 bilhão. Mas um estudo do Conselho Nacional de Justiça, do qual participou juntamente com a Famasul, abriu a hipótese de uma solução de médio prazo via ‘leasing’: arrendamento seguido de compra. A isso seriam ainda somados (1) os gastos com o assentamento e oferta de opções profissionais para as pessoas que vendessem suas terras (ninguém do agronegócio internacional, pelo visto; todos pequenos agricultores familiares); (2) um montante a ser reservado para o ressarcimento aos municípios que seriam alegadamente prejudicados pela queda nos impostos provocada pelas saída desses ‘produtores rurais’; e (3) garantias de que os indígenas teriam treinamento, equipamentos, condições e monitoramento até terem condições para produzir de forma sustentável e, inclusive, substituir os ‘produtores removidos’ em termos de arrecadação para o município.
A situação das terras homologadas e que a PEC 215 põe sob risco também é lembrada: sua sugestão envolve acrescentar à proposta “algum dispositivo” que garanta as demarcações já feitas. Só. Isso considerado, sua opção é clara:
“É verdade que provavelmente para demarcar todas as áreas dos quatro Estados vão alguns bilhões, é possível, mas é o custo da pacificação do campo. Nós queremos ou não queremos entrar no círculo das nações civilizadas, produtivas, respeitadas mundo afora? Nós precisamos pagar esse custo. Não dá para a gente achar que dá para fazer atalho e deixar um grupo pagar pelo resto, como acontece hoje”.
Em nenhum momento, qualquer menção ao agronegócio, repito, ou à origem criminosa de grande parte das terras esbulhadas. Igualmente, nenhuma lembrança ao fato de que as tais “nações civilizadas” já realizaram alguma forma de reforma agrária e têm legislações cuidadosas em relação a limites diversos para a propriedade de terras. Direito originário? O que é isso mesmo?
Tomara que eu esteja errada, mas, considerando a fala do novo Ministro na famigerada Comissão Especial da PEC 215 (abaixo), não acredito que teremos muito a comemorar.
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CÂMARA DOS DEPUTADOS – DETAQ COM REDAÇÃO FINAL
Comissão Especial – PEC 215-A, de 2000 – Demarcação de Terras Indigenas
Fala de EUGÊNIO JOSÉ GUILHERME DE ARAGÃO
“Exmo. Sr. Deputado Osmar Serraglio, Relator da Comissão Especial, em nome de quem eu cumprimento todos aqui presentes e agradeço, penhoradamente, a oportunidade de poder falar com as senhoras e os senhores.
Essa emenda constitucional deve ser vista dentro de um contexto maior, de um momento que o País vive de certo impasse na consecução de sua política indígena, na própria implementação do mandamento constitucional no que diz respeito aos direitos indígenas, e que deve nos levar a uma profunda reflexão sobre as razões de manutenção do atual paradigma demarcatório das terras indígenas.
Para quem milita e militou durante muitos anos com os direitos indígenas, o momento é de perplexidade e frustração. O modelo atual, a toda evidência, está apresentando sinais claros de esgotamento. Por quê? Porque, mesmo quando o Poder Executivo, depois de longuíssimas tramitações, consegue promover a demarcação de uma área indígena, a reação imediata é a judicialização do respectivo ato administrativo, o que leva a um impasse, e não se vai nem para frente nem para trás. E isso basicamente se repete, é recorrente em todas as áreas do País.
Quem sofre com isso é, em primeiro lugar, claro, a população indígena, com suas expectativas de ter o seu território demarcado, mas também produtores, Municípios, enfim, uma variedade de atores que estão no meio desse redemoinho de uma política de impasse que nós estamos vivendo hoje. Então me parece que o momento deve ser muito oportuno para essa reflexão e para a gente repensar esse paradigma, o paradigma demarcatório.
Esse paradigma demarcatório entrou na Constituição em 1988, num momento muito peculiar. O Brasil realmente tinha uma enorme dívida com a população indígena e, àquela altura de democratização do País, se queria fazer face a essa dívida a ferro e fogo, de qualquer jeito.
O processo concebido na Constituição no art. 231 é um processo unilateral. É um processo em que a administração pública, ex officio, identifica e demarca as áreas olhando, sobretudo, apenas em uma direção, a direção do bem-estar do indígena.
O problema é que, ao longo dos anos, foi se percebendo que essa visão unilateral de só olhar para a população indígena, esquecendo as circunstâncias, levaram, na verdade — eu posso dizer isso com a maior tranquilidade —, a uma política genocida. Por quê? Porque, na medida em que a gente olha só para um lado do problema, todos os outros que estão excluídos da atenção do poder público produzem ressentimento, e o ressentimento acaba levando à estigmatização, e a estigmatização, por sua vez, acaba levando ao genocídio.
Então, na verdade, o grande culpado, hoje, pela violência que se tem produzido em relação à população indígena é, antes de mais nada, o poder público, com sua política unilateral de olhar só para um lado do problema.
Nós podemos dizer que o modelo de 1988, além de apresentar certa fadiga, deve também ser olhado criticamente sob a sua consistência jurídica, porque o art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias dizia que essa demarcação toda deveria ser concluída em 5 anos. É um prazo exauriente, ou seja, na Constituição há um modelo demarcatório e há um prazo para que essa demarcação seja feita.
O comando era de 5 anos, e é uma norma excepcional, porque passa por cima de muitos direitos e garantias. É um processo diferenciado. Se em 5 anos não se conseguiu fazer essa demarcação, cabe a indagação: esse modelo não perimiu, não deixou de existir com uma perempção administrativa? Simplesmente deixou de fazer sentido depois de 5 anos, que era o comando constitucional.
De fato, vamos dizer, esse processo político da demarcação das áreas indígenas obedeceu a um movimento de afunilamento. Começou-se a demarcar as áreas que eram mais tranquilas — principalmente em terras amazônicas, pouco habitadas — e, à medida que se ia progredindo nessa demarcação de áreas, foi se entrando em áreas mais problemáticas.
Pode-se dizer que, com 20 anos de atraso na demarcação das terras indígenas, a União conseguiu demarcar em torno de 90%, 91% das áreas previstas inicialmente. Então, falta demarcar 9% a 10%. Esses 9% a 10% que faltam ser demarcados podem se definir como carne de pescoço. São as áreas que sobraram, as mais difíceis. Por quê? Porque são áreas indígenas ou, pelo menos, regiões que se pretende demarcar em territórios densamente povoados ou com grande valor econômico, porque, enfim, áreas destinadas à produção agrícola industrializada ou à produção agrícola tradicional. Portanto, demarcar terras indígenas nesses territórios, além do custo econômico, tem também elevado custo social.
Nós não podemos, quando nos interessamos a resolver o problema dos povos indígenas, deixar de olhar para o lado e ver qual é, vamos dizer, o contexto em que essa possível demarcação se dá e quais as consequências gravosas que ela pode criar para os outros atores desse processo. Está na hora de olhar para eles.
Se nós quisermos fazer hoje uma política indígena para proteger a população indígena, nós temos que, definitivamente, adotar uma postura holística, nós temos que olhar para todos os lados do problema, e não apenas para o lado unilateral do índio, porque, olhando para o lado unilateral do índio, nós estamos estigmatizando esse índio.
Uma postura holística demanda, sobretudo, que a gente olhe para os outros vetores do problema. Quais são os outros atores da política indígena? Além da população indígena, o produtor da terra, a população do respectivo Município e o Governo Municipal. Todos eles, de uma forma ou de outra, são impactados por essa política ou pela falta de política. Está na hora de olhar para todos eles.
Parece que o modelo de 1988 — e com isso também os atores que buscavam defender a população indígena —, ao olhar de uma forma muito unilateral para esse problema, acabou por optar por um atalho, pelo caminho mais barato. É o baratinho que saiu caro. Ou seja, vamos demarcar as terras sem indenizá-las, podendo apenas ser indenizadas as benfeitorias que o poder público unilateralmente considerar de boa-fé. Coloca-se ali dentro a população indígena e lava-se a mão, como Pôncio Pilatos nessa circunstância. De fato, com isso se deixa de investir no Município, se deixa de criar alternativas econômicas para o produtor. Sai mais barato para o poder público; agora, as consequências têm sido nefastas. Foi o barato que saiu caro.
Para nós fazermos uma política indígena consequente, é importante neste momento que a sociedade brasileira tenha claramente em conta que fazer política indígena custa dinheiro. Não há soluções baratas que não tragam consequências nefastas. O barato sai muito caro. Se nós queremos uma solução que pacifique o território rural em que a população indígena se encontra, nós precisamos investir. O modelo demarcatório unilateral que não leve em consideração a indenização da terra está fadado a criar ressentimento, conflito e genocídio. Isso nós temos que ter claro em nossa mente.
Então, em primeiro lugar, o que seria necessário? Nós precisaríamos encontrar uma brecha. Hoje, na Constituição, vamos dizer, na normativa constitucional muito estreita que nós temos no art. 231… Nós teríamos que encontrar uma brecha de permitir a compra de áreas indígenas. Eu estou falando “compra”, não estou falando “desapropriação”, porque a desapropriação por interesse social tem um viés autoritário também. O viés autoritário é qual? É o preço unilateralmente estabelecido pela administração: deposita-se em juízo, e o outro que vá atrás se não concordar com o preço. Não. Nós precisamos, nesse processo, que os outros atores saiam com um sorriso de uma orelha para a outra, felizes da vida, dizendo que fizeram um excelente negócio, e por isso mesmo abracem a causa indígena com… (Falha na gravação.) É fundamental isso.
Nós precisamos de atores satisfeitos para acabar com o conflito. E, para isso, o produtor deve ser instado, convidado a vender a sua terra pelo preço que o mercado oferece. Imagino assim, você chega para o produtor: “Quanto é que o senhor daria por sua terra?” “Ah, ela vale 23 milhões!” “Pois é, o INCRA diz que vale 15. Chegamos a 20?” E compra realmente a preço de mercado. Mas não é o suficiente, porque nós sabemos hoje perfeitamente que não existe estoque de terras. Não existe estoque de terras disponível na maioria dos Estados hoje afetados. Eu falo principalmente de Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que são as áreas hoje mais impactadas. Claro, existem também áreas indígenas ainda disputadas em São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, algumas no Nordeste, mas as áreas mais complicadas hoje de intensa agricultura são em Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Ali nós sabemos que o estoque de terras é quase inexistente. Por exemplo, no caso do xokleng, em Ibirama, no Estado de Santa Catarina, se nós ali tivermos que desalojar, nos 10 mil hectares, as quase mil famílias que lá residem há muitos e muitos anos praticando agricultura familiar, se nós formos retirar aqueles familiares dali, não vai haver estoque de terras em Santa Catarina para realojá-los.
O Estado precisa, por isso, assumir a responsabilidade de reorientar essas famílias economicamente. Não é simplesmente botar o dinheiro na mão e “Agora se vire”. É dar o dinheiro e utilizar estruturas, como, por exemplo, o SEBRAE e o SENAR, para reorientar economicamente essas famílias, para que elas possam fazer um investimento que lhes dê sustentabilidade. Sai da agricultura, vai para o entreposto, vai trabalhar, digamos, na CEASA, com entreposto de venda de produtos agrícolas, fazer aquilo, enfim, que eles sempre souberam fazer. Não serão necessariamente produtores. De alguma forma, tem que ser dada uma destinação. Não se pode simplesmente virar as costas para essas pessoas e fingir que elas não existem.
Por outro lado também, outra preocupação legítima diz respeito ao Município. Nós sabemos perfeitamente que, na hora em que essas famílias deixarem as suas terras, a arrecadação de ICMS no Município vai despencar, criando uma séria crise de gestão. Hospitais, escolas, pavimentação de ruas, serviços públicos, tudo isso deixa de ter condição de ser mantido no patamar que tinha antes, porque o Município não arrecadará mais. O Município estará sendo impactado por força de uma política federal. Então, é mais do que justo que se crie um fundo federal de compensação para compensar o Município durante algum tempo — que seja 10 anos — pela ausência de arrecadação. É fundamental que isso seja feito para dar sustentabilidade.
E, finalmente, em relação à população indígena, não é simplesmente assentá-la. É necessário que lhe seja dada também uma sustentabilidade, para que não seja jogada na mendicância. É importante que haja programas que transformem, pelo menos, a economia indígena numa economia que dê sustentabilidade a essa população, com grãos, com maquinário, cooperativização, de forma que, num determinado prazo de tempo, o Município possa novamente contar com a riqueza que é produzida ali dentro.
Nós sabemos por experiências que existem, por exemplo, no Paraná, com a Itaipu binacional, por exemplo, em Eldorado, que os investimentos feitos em sustentabilidade econômica indígena que são interrompidos levam imediatamente ao desfazimento de tudo o que foi feito. Os indígenas não têm uma cultura de produção — essa cultura tem que ser permanentemente assessorada —, não que eles não queiram, eles querem, mas não têm a tradição. Não basta querer dar o material, o ensino agrícola, tem que haver um contínuo acompanhamento. Isso tem custo, mas tem que ser feito.
Então, os senhores veem: a indenização adequada da terra, uma política de sustentabilidade daqueles que são retirados das áreas indígenas, a compensação da arrecadação e a sustentabilidade indígena, isso, sim, em conjunto, compõe um programa coerente e consistente para pacificar as áreas rurais que sofrem o impacto do indigenato. Se nós não fizermos isso, vamos ter conflitos para os próximos anos e décadas e não vamos resolver o problema. A demarcação tem levado à judicialização, e a judicialização tem levado ao conflito e ao ressentimento. Nós precisamos dar um basta a esse ciclo vicioso; agora, isso tem custo.
Eu participei de uma comissão do Conselho Nacional de Justiça, que foi coordenada pelo Desembargador Sérgio Fernandes Martins, para tratar das áreas ocupadas pelos kaiowás no chamado Cone Sul, do Estado de Mato Grosso do Sul. Ali a comissão analisou processo por processo das áreas que têm processo litigioso de demarcação. Fizemos um levantamento de quais seriam as soluções possíveis. É claro que todas elas passam pela aquisição onerosa da terra indígena. O custo, somente em termos de compra de terra, superava bem 1 bilhão de reais. Mas, quando conversamos com os parceiros que estavam também na comissão ali com os outros membros, principalmente com a FAMASUL, viu-se claramente a disposição construtiva dos produtores de adotar um sistema de leasing: arrendariam as terras, através de um procedimento de capitalização das prestações, que no final de um prazo determinado seria complementado pelo que falta. Ou seja, aquela taxa de arrendamento seria, ao mesmo tempo, já uma forma de capitalização final, e se imaginaria um prazo de 5 a 10 anos de arrendamento para a compra final. Até essa boa vontade, deve-se dizer, houve por parte dos produtores. É um modelo criativo, parece-me, que deve ser levado em consideração — a possibilidade de fazer o leasing das terras —, para que elas possam ser adquiridas pela União por certo prazo.
Se pegarmos, digamos, 1 bilhão de reais num prazo de 5 anos, são 200 milhões por ano, para pacificar uma área de Mato Grosso do Sul, não se pacifica por completo, porque faltam os outros programas, claro, a articulação de outros programas de sustentabilidade, mas, pelo menos, a parte realmente fundiária ficaria resolvida. É um custo alto? É relativo. É um custo para a pacificação de um Estado que hoje está sofrendo forte impacto da depreciação das suas terras, da insegurança jurídica, que está diminuindo a produção. Mato Grosso do Sul hoje produz menos que Mato Grosso. Na época em que participava do Estado maior, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul era o celeiro do Estado, a parte mais rica do Estado. Hoje produz menos do que Mato Grosso, por quê? Por causa da insegurança jurídica. As terras ali hoje não valem nada. As pessoas estão fugindo dos investimentos ali dentro, porque não sabem como vai ser o dia de amanhã.
Esse é um outro problema. Se a gente for adotar um sistema de aquisição onerosa das terras indígenas, é importante dar segurança jurídica e previsibilidade ao produtor, para ele saber quando é que vai sair, porque ele tem o direito de, até a data da sua saída, produzir, receber empréstimos do banco, poder pagar os empréstimos, ter uma previsibilidade da sua vida econômica. Não se pode de um dia para o outro dizer assim: “Amanhã você vai sair”.
Eu já vi situações no Superior Tribunal de Justiça, mais vinculadas à reforma agrária do que propriamente à área indígena, mas que são situações extremamente dramáticas. Um casal, por exemplo, aqui em Minas Gerais, aplicou o seu recurso do PDV do Banco do Brasil para a compra de terra, começou a produzir, fez uma fazenda modelo, e ela foi invadida pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. A fazenda era produtiva, e ele estava devendo rios de dinheiro aos bancos pelos investimentos que fez. Foi invadida, depois de 4 anos sem conseguir tirar o pessoal de lá, finalmente propuseram para ele que aceitasse a desapropriação. Ele disse: “Tudo bem”. “O senhor vai pelo menos receber um dinheiro pelas benfeitorias e poder pagar o que o senhor investiu”. Ele já estava muito apertado, acabou aceitando. Quando veio o laudo do INCRA, o laudo dizia que a terra era improdutiva e que todas aquelas benfeitorias não existiam porque estavam destruídas. O que ofereceram a ele foi muito menos do que ele devia ao banco.
Então, nós não podemos deixar esse tipo de situação acontecer. Isso gera insegurança jurídica. Nós precisamos que o produtor saiba quando e quanto vai receber e o que ele vai fazer com esse dinheiro, como vai se reorientar economicamente. Isso é fundamental para o País; isso é fundamental para que, vamos dizer, esse setor continue a poder produzir para a nossa economia.
E, claro, aqui ninguém está dizendo que nós devemos deixar a economia se sobrepor ao interesse indígena. Não! A população indígena é, vamos dizer, nesse contexto todo, a primeira preocupação, mas é que não se pode querer resolver o problema dela de forma unilateral, não pensando no resto. Isso tem custo, e o custo vai ter que ser pago por alguém. A sociedade tem que se conscientizar disso, saber que isso tem custo. É verdade que provavelmente para demarcar todas as áreas dos quatro Estados vão alguns bilhões, é possível, mas é o custo da pacificação do campo. Nós queremos ou não queremos entrar no círculo das nações civilizadas, produtivas, respeitadas mundo afora? Nós precisamos pagar esse custo. Não dá para a gente achar que dá para fazer atalho e deixar um grupo pagar pelo resto, como acontece hoje.
Só para concluir, eu estive examinando a emenda constitucional, acho que é fundamental — não sei como é que foi a tramitação posterior — que haja algum tipo de dispositivo no ADCT que, pelo menos, conserve as demarcações já feitas. Isso aí é fundamental até para a segurança jurídica também, porque depois, modificando o paradigma da demarcação, não se venha a questionar tudo o que já foi feito, o que me parece que ia gerar um conflito muito maior. Esse eu acho que é um aspecto importante.
Mas há dois outros aspectos que me parece que foram deixados de fora e que eu acho que seriam muito importantes. Um seria abrir a porta para a aquisição para a compra de terras, o que nós não temos aqui. Eu acho que essa porta deve ser aberta, e essa porta deve ser generosa. Se a porta da demarcação deve ser restritiva, porque o modelo está esgotado, a porta da compra deve ser generosa, ou seja, deve-se autorizar o poder público amplamente a poder comprar a terra.
E hoje nós sabemos que, pelo marco atual do art. 231, a União é proibida de indenizar a terra nua. Então, isso tem que desaparecer. E nós temos que, pelo contrário, estimular a compra, temos que abrir essa porta dentro do normativo constitucional. Parece-me que aí será quase uma escolha natural. No momento em que se fecha a porta da demarcação, mas se abre a porta da compra, a tendência é ir tudo pela compra, o que não é ruim, porque realmente acaba convidando a se assumir um novo paradigma.
Agora, outro aspecto que me parece ser fundamental aqui é que de alguma forma se ancore nessa proposta também a obrigação da compensação, primeiro de uma política de sustentabilidade em relação àqueles que foram, vamos dizer, removidos das suas áreas e também de compensação dos Municípios. Isso é responsabilidade da União. Parece-me que isso deve fazer parte do capítulo da política indígena. Somente se a gente olhar todos esses aspectos é que teremos uma tranquilidade maior, uma pacificação e uma segurança jurídica. Parece-me que são aspectos fundamentais hoje para a gente resolver esse problema.
E hoje nós sabemos que, pelo marco atual do art. 231, a União é proibida de indenizar a terra nua. Então, isso tem que desaparecer. E nós temos que, pelo contrário, estimular a compra, temos que abrir essa porta dentro do normativo constitucional. Parece-me que aí será quase uma escolha natural. No momento em que se fecha a porta da demarcação, mas se abre a porta da compra, a tendência é ir tudo pela compra, o que não é ruim, porque realmente acaba convidando a se assumir um novo paradigma.
Agora, outro aspecto que me parece ser fundamental aqui é que de alguma forma se ancore nessa proposta também a obrigação da compensação, primeiro de uma política de sustentabilidade em relação àqueles que foram, vamos dizer, removidos das suas áreas e também de compensação dos Municípios. Isso é responsabilidade da União. Parece-me que isso deve fazer parte do capítulo da política indígena. Somente se a gente olhar todos esses aspectos é que teremos uma tranquilidade maior, uma pacificação e uma segurança jurídica. Parece-me que são aspectos fundamentais hoje para a gente resolver esse problema”.