A justiça não pode ser personificada em homens, em heróis, em messias ou em justiceiros

Por Leonardo Isaac Yarochewsky, em Justificando

Em artigo intitulado “Somos todos Sergio Moro” (Tendências/Debates, Folha de S. Paulo, 21/3), Nino Oliveira Toldo, ex-presidente da Ajufe (Associação dos juízes Federais do Brasil), manifesta solidariedade irrestrita ao seu colega Sergio Moro pela condução da operação “Lava Jato” e conclama o povo a confiar em seus juízes federais.

Refere-se, ainda, o articulista, à luta incansável para que leis sejam alteradas e o sistema judicial criminal aperfeiçoado.

Na verdade, o subscritor do artigo representa a luta pelo incremento do Estado penal alimentado pela fúria punitivista. As “reformas” pretendidas pela Ajufe e seus representantes ferem frontalmente os princípios fundamentais consagrados na Constituição da República e norteadores do Estado Democrático de Direito.

Não é despiciendo salientar que no Estado de Direito há uma supremacia da lei sobre a autoridade pública. O Império da Lei prevalece sobre o Império dos Homens. De igual modo, o Estado Democrático de Direito está vinculado à Constituição da República como instrumento de garantia jurídica.

Recentemente, o princípio da presunção de inocência sofreu um duro golpe e foi mitigado pelo STF. Contudo, valiosa é a lição do jurista Luigi Ferrajoli de que o princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade, “fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”. Adverte-se que quando princípios constitucionais fundamentais são relativizados, na verdade, estão sendo eles simplesmente negados.

Por mais de uma vez o juiz Federal assinante do citado artigo refere-se à “impunidade”. Aqui, se faz necessário lembrar que o Brasil tem hoje cerca de 700 mil presos – terceira maior população prisional do planeta – vivendo em situação desumana e degradante.

No momento em que a sanha punitiva gerada pelo poder midiático envolve a sociedade; no tempo em que o processo penal do espetáculo assume o lugar do devido processo legal; no instante em que o poder punitivo estatal – Polícia e Ministério Público – se unem em “forças-tarefas” e atropelam diversas garantias processuais; e, por fim, no momento em que o judiciário começa a relativizar princípios fundamentais em nome do imaginário e moralista combate ao crime; é imperioso advertir que a democracia está em risco. E o pior, em risco e com autoritarismo.

As pretensões do ex-presidente da Ajufe, bem como o pacote de medidas contra a corrupção apresentadas à sociedade pelo Ministério Público Federal, afrontam o Estado de direito que, na concepção de Luigi Ferrajoli, é apresentado como sinônimo de “garantismo” e designando, assim e por esse motivo,

“não simplesmente um ‘Estado legal’ ou ‘regulado pelas leis’, mas um modelo de Estado nascido com as modernas Constituições e caracterizado: a) no plano formal, pelo princípio da legalidade, por força do qual todo poder público – legislativo, judiciário e administrativo – está subordinado às leis gerais e abstratas que lhes disciplinam as formas de exercício e cuja observância é submetida a controle de legitimidade por parte dos juízes delas separados e independentes (…); b) no plano substancial da funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das vedações legais de lesão aos direitos de liberdade e das obrigações de satisfação dos direitos sociais (…)”.

Hodiernamente, o processo penal é voltado, principalmente, para a garantia e realização dos direitos fundamentais, e tem como objeto a limitação do poder punitivo estatal. O processo penal acusatório – único compatível com a democracia – deve ser balizado e interpretado conforme a Constituição da República.

Na concepção do processo penal democrático e constitucional, a liberdade do acusado, o respeito à sua dignidade, aos direitos e garantias fundamentais são valores que se colocam acima de qualquer interesse ou pretensão punitiva estatal. Em hipótese alguma pode o acusado ser tratado como “coisa”, “instrumento” ou “meio”. De tal modo, não se pode perder de vista a formulação kantiana de que o homem é um fim em si mesmo.

Na concepção do Estado de direito, a justiça não pode ser personificada em homens, em heróis, em messias ou em justiceiros. Não se pode olvidar que aqueles que buscam por “heróis” em “tempos sombrios” (Hannah Arendt) acabam encontrando ditadores e fascistas.

Por tudo, é que não somos este ou aquele magistrado. Nós todos somos Estado de direito.

Belo Horizonte, 23 de março de 2016.

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado e Professor de Direito Penal da PUC-Minas.

Foto: Cris Fraga. O Globo.

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