Em pauta: os privilégios de uma classe média ressentida

Por Pedro Pulzatto Peruzzo, em Justificando

É muito interessante notar a forma como a classe média tem se organizado politicamente. Quero registrar que estou falando de dentro da classe média, pois bem ou mal é a essa classe que pertenço. Portanto, falo com conhecimento de causa e com consciência de classe.

No meio de todas essas discussões e disputas, tenho sentido que a únicas coisas que poderiam nos auxiliar a sair desse regime (sim, um regime) de corrupção seria a reforma política e mais investimento em políticas públicas sociais, especialmente em educação e cultura. A reforma política serviria para revolucionar e criar novas estruturas políticas, enquanto as políticas sociais se prestariam a colocar fim aos privilégios estamentais e de classe que ainda existem em nossa sociedade.

A revolução das estruturas políticas não seria uma decorrência pura e simples da possibilidade ou não de reeleição para cargos do Executivo e do Legislativo ou, ainda, o enrijecimento das regras para financiamento de campanha, mas, essencialmente, e com fundamento no parágrafo único do artigo 1º da CF, o enraizamento da democracia participativa através de uma mídia democrática, de consultas e audiências públicas, conselhos populares e do fortalecimento dos movimentos sociais (o governo legitimando o povo e não apenas o povo legitimando o governo).

Em relação aos privilégios estamentais e de classe, é sobre isso que quero refletir neste artigo. O que tem chamado a atenção é o fato de a classe média nunca ter tido nenhum interesse por política, sempre ter dito de boca cheia que “futebol e política não se discute”, e agora ter decidido vestir a fantasia do herói nacional e, passando por cima de direitos fundamentais conquistados a duras penas por quem sempre se interessou por política, sair atropelando tudo e todos pela busca de um ideal ainda indefinido.

E ainda tem mais! Essa classe média tem sido a cara e a cor dos atos de violência, racismo, nazismo, machismo, homofobia e tantas outras formas de opressão que temos assistido todos os dias não apenas pela televisão, mas especialmente na esquina das nossas casas e no nosso ambiente de trabalho. Ou seja, essa classe média que anuncia um compromisso com o fim da corrupção não parece estar muito preocupada em tencionar as estruturas da corrupção, pois isso significa tencionar também as estruturas dos privilégios que vieram do além-mar nos navios dos portugueses e que foram anunciados à classe média como algo certo ou, ao menos, como uma possibilidade.

Na real, parece haver um apego muito grande dessa classe média a esses privilégios ou, ao menos, com a possibilidade anunciada de acessar esses privilégios após a submissão a longuíssimas jornadas de trabalho que, longe de causar exaustão, apenas dignificam o homem. O antropólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen, que foi relator especial da ONU, escreveu um texto cuja leitura é mais do que recomendável neste momento político e que diz muito sobre a nossa tão aclamada classe média. O texto tem o título “7 teses equivocadas sobre a América Latina”[1] e uma das teses consideradas como equivocadas é aquela que diz que o desenvolvimento da América Latina é criação e obra de uma classe média nacionalista, progressista, empreendedora e dinâmica, que deve ser o foco da política social e econômica dos governos. Sobre essa classe, Stavenhagen afirma:

Los sectores que integran la “clase media” en su sentido estricto – pequeños y medianos empresarios, artesanos, profesionistas de diversa índole, etc. (es decir, que trabajan por su cuenta o que reciben un salario por trabajos no manuales) – no tienen generalmente las características que se les atribuyen. Dependen económica y socialmente de los estratos altos, están ligados políticamente a la clase dominante, son conservadores en sus gustos y opiniones, defensores del status quo, y sólo buscan privilegios individuales. Como clase, se han enriquecido más en América Latina mediante la especulación y la corrupción que con el trabajo. Lejos de ser nacionalistas, se aferran a todo lo extranjero, desde la ropa importada hasta Selecciones. Si bien son reclutados entre los estratos bajos, su bienestar económico y social está vinculado al de la alta burguesía y al de la oligarquía terrateniente, sin las cuales no podrían subsistir. Por lo tanto, constituyen fiel reflejo de la clase dominante, se benefician igualmente de la situación de colonialismo interno. Constituyen la principal masa de apoyo de las dictaduras militares en América Latina. [2]

Essa ideia dialoga de maneira muito próxima com a tese de Paulo Freire no sentido de que a classe média, introjetando a figura do opressor, tem como único desejo ascender às classes mais altas, sem se preocupar com o fato de que, para isso, tem de assumir uma figura de opressor.

Há, por outro lado, um certo momento da experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo. Isto se verifica, sobretudo, nos oprimidos de “classe média”, cujo anseio é serem iguais ao “homem ilustre” da chamada “classe superior”. [3]

Diante de algumas declarações racistas, machistas, classistas e homofóbicas, entre outras cositas más que ouvimos diariamente por aí, não é crível que o que está em pauta hoje na mídia e nos grupos que apoiam o impeachment da Presidenta é realmente o fim da corrupção. Isso porque não vi muitos defensores do impeachment colocando em pauta o fato de a maioria dos deputados da comissão do impeachment terem recebido dinheiro de empresas envolvidas na operação Lava Jato.

Ora, qual é mesmo a proposta de todas essas manifestações? O fim da corrupção estrutural ou apenas o reaparelhamento de um Estado colonial por grupos aristocráticos indispostos a negociarem seus privilégios estamentais?

Vale anotar também que a classe média, além de nunca ter se interessado por política, sempre foi muito mais afeita a líderes carismáticos do que as classes mais pobres. A diferença é que os líderes da classe média sempre foram os personagens das novelas ou dos programas de auditório. A classe média brasileira se rala de tanto trabalhar e segue lambendo o chão para aqueles que a exploram diariamente (vide notas de Stavenhagen e Freire acima). O resultado disso tudo é uma classe média ressentida e para esclarecer o que quero dizer quando me valho do termo “ressentimento”, recorro a uma obra da psicanalista Maria Rita Kehl intitulada “Ressentimento”[4] e que vai nos auxiliar bastante a compreender o que estou tentando falar.

A obra apresenta uma definição bastante simples: “Ressentir-se significa atribuir a um outro a responsabilidade do que nos faz sofrer”. Quando assisto a classe média raivosa nas ruas, nas repartições, nas universidades, dizendo que quer o impeachment a qualquer custo e condenando até mesmo os detalhes vermelhos na gravata dos professores sem questionar a legitimidade da própria comissão do impeachment, dizendo também que não sabe o que quer para o futuro (tudo, menos o que está aí hoje), essa definição de ressentimento faz todo sentido.

Vladimir Safatle[5] analisa essa obra da Maria Rita Kehl e traz considerações preciosas para compreendermos o atual momento político do país. Safatle comenta que essa responsabilidade que o ressentido atribui sempre a terceiros aparece sob a forma de ressentimento porque o ressentido não consegue responder à altura da ofensa recebida e sua palavra acaba ficando bloqueada no instante em que a defesa foi necessária. Naturalmente, quando sai alguma coisa, sai fogo, bala, veneno.

Nessa linha, temos que reconhecer que a classe média nunca se preocupou em se desenvolver politicamente e sempre esteve sem resposta à altura a um projeto de governo que decidiu colocar o Estado também a serviço dos mais pobres. Os privilégios foram ameaçados (que absurdo encontrar a empregada doméstica num vôo pra Maceió!) e o atual cenário político representa nada mais e nada menos que a oportunidade dessa classe média de poder voltar a gozar dos seus privilégios estamentais com exclusividade (pleonasmo proposital).

A classe média sempre teve um fetiche por líderes, pois nunca se interessou pela participação política direta e sempre preferiu passar os finais de semana zapeando entre Luciano Huck, Faustão e Fantástico. Quando ia às urnas, apertava a sequência de botões e depois se esquecia em quem tinha votado em questão de semanas. Aqui vale referência a Theodor Adorno, para quem a emancipação significa servir-se do entendimento sem a orientação de outrem[6]. O que a classe média conseguiu produzir em termos de resposta política nesses séculos todos foi não muito mais do que uma bateção de panelas esquisita que, diga-se de passagem, apesar de parecer ter sido copiada dos tambores resistentes do Maracatu, nada tem de consciência política que permita essa comparação e só evidencia uma falta de criatividade das grandes.

Da mesma maneira que a classe média sempre teve fetiche por líderes, por representantes, e sempre preferiu a posição de gado encabrestado à participação política direta, essa classe também tem criado fantasmas que mais parecem ter sido retirados de histórias em quadrinhos do que de avaliações realistas do cenário político colocado. No ressentimento, o “outro” responsável pelo sofrimento aparece sob o “quadro fantasmático de figuras infantis” nas quais convergem mecanismos de identificação (juiz super-herói) e de rivalidade (comunismo, bolivarianismo).

Nessa linha, fica mais do que claro que “o derrotado só se torna ressentido quando deixa de se identificar como derrotado e passa a se identificar como vítima, sobretudo vítima inocente de um vencedor que, nesses termos, passa a ocupar o lugar de culpado”. A classe média brasileira não tem demonstrado maturidade suficiente para lidar com a igualdade e, diante dessa imaturidade, o que restou foi a vitimização que, hoje, tem se transformado em agressividade e ódio.

Ou seja, como afirmou Safatle, não se trata simplesmente de exigências de reparações morais por injustiça, mas do reconhecimento da condição de vítima por um Senhor que deve aparecer, ao mesmo tempo, como rival imaginário e objeto de identificação simbólica. E, ainda, as demandas do ressentido são enunciadas para justificar a inação de quem não procura reordenar situações, mas simplesmente ser reconhecido como vítima, vítima a quem nenhuma responsabilidade pode ser imputada, “e lá onde nenhuma responsabilidade pode ser imputada, nenhum sujeito pode ser constituído.”

A covardia moral e a irresponsabilidade da classe média diante dos claros riscos de retrocessos em direitos fundamentais evidenciam que, talvez, numa próxima oportunidade, a principal política pública a ser assegurada deveria ser a garantia de psicanálise a todos os cidadãos pelo SUS. Sem o direito a superar ressentimentos com o auxílio de profissionais especializados, os cidadãos continuarão babando veneno e contribuindo pouco ou quase nada para a real revolução que precisamos, ou seja, a renovação absoluta de nossa estrutura política e o fim do regime de privilégios estamentais e de classes que ainda marcam a nossa sociedade.

Não é à toa que a histeria e a agressividade têm tomado a cena das manifestações de alguns apoiadores do golpe contra a democracia quando manifestam suas opiniões publicamente. A esse respeito, aliás, gostaria de convidar todos os que assumiram um compromisso com a legalidade e com a democracia a não se envolverem em brigas estúpidas com pessoas descompromissadas e violentas. Nossa ação política deve ser orientada pela reflexão coerente, pelo diálogo e pelo respeito às diferenças, sob pena de abrirmos mão de tudo o que conquistamos até aqui. Afinal, nem sempre temos como oferecer mais do que argumentos políticos à classe média ressentida. O carinho, o amor, o tesão e a paixão que temos no peito, mais do que nunca, precisam ser guardados para as pessoas que estão mais próximas de nós e ressentimento a gente cura na análise ou na Luta.

Sem a superação do ressentimento as pessoas continuarão confundindo liberdade de expressão com liberdade de opressão, coisa que, aliás, tem sido muito comum. Não faltam lideranças para dizer que o racismo, o machismo, a homofobia, a censura e outras formas de violência são apenas exercício do direito constitucional de liberdade de expressão. Acontece que a liberdade de opressão não está inscrita no texto da Constituição de 1988! No entanto, em razão do ressentimento, apesar de não existir previsão constitucional do direito à opressão, a coisa parece poder mudar em muito pouco tempo.

Pedro Pulzatto Peruzzo é advogado, professor pesquisador da PUC-Campinas e diretor da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Jabaquara.

[1] In. STAVENHAGEN, Rodolfo. Sociología y Subdesarrollo. 1981, p. 15-84.

[2] Id.

[3] FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 1987, p. 28.

[4] Cf. KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

[5] http://www.oretratodobrasil.com.br/reportagem/65/pdf/9.pdf

[6] ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. 1995. 119-138.

 

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