Mulheres, política e violência

“Nossa mulher, graças a Deus, é essencialmente caseira e doméstica e é no lar que ela exibe suas boas e más condições. É ali que reside a sua força e sua graça. Os que ainda temos algo, ainda que pouco, de latinos não queremos, não toleraremos, a mulher politiqueira, a mulher de ação oradora, jornalista ou redentora do povo”
(Armando Silano, El Tiempo, Bogotá, 03/08/1935)1

Flávia Biroli* – Blog da Boitempo

Existe alguma relação entre o ministério sem mulheres de Michel Temer e o recente estupro coletivo da adolescente de 16 anos, no Rio de Janeiro, além do fato de ambos terem despertado forte reação nos movimentos de mulheres no Brasil?

Minha resposta é que sim. Há algo em comum entre o apagamento da presença das mulheres na política e a violência contra as mulheres. Há, também, um elo entre a sua exclusão e a cultura do estupro.

O que têm em comum é o apagamento das mulheres como sujeitos, como interlocutoras legítimas. Trata-se de ações diferentes, mas que as colocam na posição de objeto – um “aquilo” sobre o que os homens falam, mas que não fala por si. Promovem situações que as colocam na posição de objetos sobre os quais a ação dos homens intervém, de corpos sobre os quais suas vontades e leis são inscritas. As mulheres são, assim, excluídas das esferas nas quais decisões importantes para suas vidas são tomadas (a forma política da violência) e apagadas na sua humanidade, pela violação que lhes reduz a corpos inertes (a violência sexual).

O que se procura anular nos dois casos é a mulher como sujeito autônomo, dotada de capacidade para determinar o curso da sua vida, certamente em conjunto com outras pessoas, mas não em resposta às ordens e ao domínio dos homens.

Na política, a exclusão histórica das mulheres significa que eles têm sistematicamente falado por elas. E essa fala é forte, isto é, ela é vinculante. Quem tem voz e influência no âmbito institucional participa de decisões que incidem sobre as demais pessoas. Políticas públicas que terão efeitos sobre as vidas das mulheres são definidas em ministérios comandados, historicamente, por homens.

Numa sociedade em que as experiências de mulheres e de homens são em muitos sentidos distintas e nas quais há desigualdades importantes entre umas e outros, a exclusão das mulheres significa que são eles, os homens, que terão os instrumentos para dar sentido e definir qual é o peso, qual é a importância, das experiências e das necessidades delas na esfera pública.

Assim, quando teóricas e ativistas políticas feministas trazem para o centro da crítica política a exclusão das mulheres, o problema que explicitam é o da seletividade das democracias contemporâneas. Nelas, a exclusão das mulheres não é aleatória, mas sistemática. E ela tem efeitos: permite que o exercício desigual de influência molde instituições, políticas e discursos de forma que é vantajosa para os homens, e sobretudo para homens que têm posições bem definidas na sociedade por serem privilegiados não apenas pela sua condição masculina, mas pela sua posição nas relações de classe e de raça.

Se a política masculina suprime ou reduz a participação das mulheres na sociedade, a violência sexual é a supressão crua da condição de sujeito de uma outra pessoa. A mulher é anulada na sua humanidade, reduzida a objeto da vontade e do poder de outro. A dominação se inscreve no seu corpo. Tem um componente singular e interpessoal, que é o da história única de cada mulher cuja vida é marcada pela violência. Mas é fundamentalmente social: ela se faz de estímulos sistemáticos a um modo de relação entre mulheres e homens e de compreensão do feminino e do masculino. Faz-se, sobretudo, de tolerância social – a tolerância de cada um, no seu cotidiano, mas também aquela que organiza as instituições e define os comportamentos de seus operadores.

Susan Brownmiller, em uma formulação bastante conhecida, considerou o estupro como “nada mais, nada menos, do que um processo consciente de intimidação pelo qual os homens mantêm todas as mulheres em um estado de medo”2. Sylvia Walby, por sua vez, viu a violência contra as mulheres como uma das estruturas-chave do patriarcado nas sociedades ocidentais contemporâneas. Para ela, “a violência masculina contra as mulheres tem todas as características que se poderia esperar de uma estrutura social” e não pode ser entendida fora da análise do patriarcado3.

Entendo que o patriarcado (ou dominação masculina, como prefiro) é composto por diferentes estruturas, que se conectam na reprodução das desvantagens e da vulnerabilidade das mulheres nas sociedades contemporâneas. A violência sexual é uma delas, a exclusão política é outra – embora não esgotem todas as estruturas de dominação, são, em conjunto com a divisão sexual do trabalho, as que considero mais determinantes. Ambas se alimentam e ao mesmo tempo ativam estereótipos de gênero nos quais o feminino convencional está associado à domesticidade e à aceitação, pelas mulheres, da autoridade masculina.

A violência contra as mulheres ultrapassa a violência sexual. Corresponde a um amplo conjunto de práticas, como “assédio, intimidação e ridicularização com o objetivo de degradar, humilhar e estigmatizar os membros de um grupo”. Pode ser vista como “sistêmica porque dirigida aos membros de um grupo simplesmente por serem membros daquele grupo”4. Assim, emboras as mulheres sejam diferentemente afetadas pela violência sexual, elas são alvos potenciais dessa violência por serem mulheres. Do mesmo modo, a exclusão política certamente se dá de modo que raça, classe e gênero se apresentam entrelaçados, mas corresponde a barreiras inclusive para as mulheres que pertencem a grupos que, do ponto de vista da classe e da raça, têm acesso privilegiado aos espaços de poder.

Quando a política é atualizada como esfera masculina, é reforçada a visão de que as mulheres não pertencem a esse espaço, mas sim a outro, o da vida doméstica e privada.

A cultura do estupro, por sua vez, atua para acuar e repelir as mulheres da esfera pública. Embora a violência exista em diversos espaços, o fato de as mulheres estarem – e de fato estão, queiram ou não as lideranças atuais dos retrocessos – em muitos lugares é mobilizado pelo pensamento machista como justificativa para que, “desviantes”, tenham sofrido violência.

Algumas farsas ocupam papel importante na justificação da violência, tanto na violência da exclusão política quanto na sexual. Uma dessas farsas é a de que as mulheres não se interessam pela política e são tão pouco ativas, tão pouco competentes e experientes, que os partidos não teriam como indicá-las para cargos no alto escalão. Nesse sentido, estaríamos diante da autoexclusão. A outra é que as mulheres seriam as culpadas pela violência sexual que sofrem sistematicamente. Aqui, o problema seria que elas estão onde não deveriam estar, se vestiriam como não deveriam, isto é, se comportariam como se fossem livres. Essas duas farsas foram mobilizadas no contexto recente, nos dois casos as mulheres são responsabilizadas por formas estruturais de opressão que bloqueiam suas possibilidades e as vitimizam.

No primeiro caso, o que se oculta é a exclusão sistemática das mulheres, que se dá pela atualização do controle histórico dos homens sobre a política e sobre os recursos que a financiam. Oculta-se o machismo nos partidos políticos, a violência que sofrem as mulheres na política. Oculta-se também a economia política do cotidiano, na qual a responsabilização desigual pela vida doméstica e pelo cuidado das crianças se desdobra em tempo e oportunidades desiguais.

No segundo, o da violência sexual, a mentira mais deslavada é a de que a violência se daria no mundo lá fora, isto é, quando as mulheres transpõem a barreira de proteção que a vida familiar significaria. Ora, há décadas dados oficiais e pesquisas de diferentes tipos mostram que as mulheres (e as crianças) sofrem cotidianamente violência dentro de casa. A Lei Maria da Penha, que neste ano completa uma década, é o reconhecimento do Estado brasileiro de que é preciso agir sobre a violência que perpassa a sociedade brasileira e vitimiza as mulheres dentro de casa. No momento, a idealização da família é, no entanto, a tônica dos retrocessos, ao mesmo tempo em que são desmontadas estruturas importantes para a ação no combate e prevenção à violência no âmbito federal.

Felizmente, o que expus até agora é apenas um lado da história. Os padrões sociais de exclusão e de violência que essas farsas procuram justificar e naturalizar são justamente aqueles que são desafiados pelas mulheres na sua luta política. Os movimentos de mulheres e feministas, assim como o pensamento feminista, implodem as falsas afirmações sobre a exclusão política e a violência sexual.

Mesmo em pequeno número na política institucional, as mulheres têm se organizado e atuado em diferentes espaços. Direitos políticos, direitos sexuais e direitos reprodutivos, legislação que coíbe e criminaliza a violência, legislação que exige equiparação salarial e limites ao exercício da autoridade dos homens na vida privada e pública resultaram dessa atuação. Historicamente, os movimentos de mulheres procuraram incidir sobre a lógica seletiva machista da política e procuraram garantir que as instituições efetivem direitos, em vez de violentar e constranger. É essa luta que a ofensiva atual tem como alvo.

O governo interino, que se constituiu pelo afastamento da primeira mulher a chegar à presidência no Brasil, optou pelo aprofundamento da exclusão política das mulheres quando constituiu um ministério de homens (e brancos, lembrando que nenhum negro ou negra compõe o gabinete de Michel Temer) e quando desintegrou o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Mas fez ainda pior: indicou para a atual Secretaria de Políticas para Mulheres, situada no Ministério da Justiça e sob a batuta de um homem, uma mulher que representa o desprezo pelos movimentos e direitos das mulheres. Sua posição contrária ao direito de interromper uma gravidez em casos previstos pela legislação brasileira há mais de setenta anos, como a gravidez seguida de estupro, expõe a enorme distância que assume em relação às demandas e à atuação histórica dos movimentos.

Ressalto que a exclusão se aprofunda pela recusa do governo interino a reconhecer os avanços político-institucionais que ampliaram o combate e a prevenção à violência. Mais uma vez, os elos entre exclusão e violência sexual ficam claros: após desmontar a estrutura que atuava no combate à violência contra as mulheres, após recusar-se a dialogar com os movimentos de mulheres e instaurar um ministério de homens, Michel Temer se expôs publicamente como quem inventa a roda, atribuindo funções à Polícia Federal no combate à violência sexual em vez de ativar as estruturas e programas políticos existentes.

Mas, novamente, a história não se esgota aí. Seu outro lado é a luta das mulheres brasileiras. Embora tenhamos passado tão rapidamente do “mais mulheres no poder” ao “nenhuma a menos”, o feminismo nunca foi tão capilarizado na sociedade brasileira e nunca esteve tão presente nas ruas. As mulheres, sobretudo as mais jovens, parecem ter cada vez mais clareza de que seu lugar é qualquer lugar e de que ocupar espaços na política é fundamental para fazer valer suas experiências e dar sentido político a suas necessidades e interesses.

Embora as lideranças do retrocesso nos queiram caseiras e domésticas, somos cada vez mais politiqueiras, para retomar a epígrafe a esse texto, escrita pelo pensador conservador colombiano nos anos 1930. As mulheres que têm ido as ruas em todo o país não aceitam o receituário dado por um deputado católico, no Plenário da Câmara dos Deputados, ao dizer que as mulheres de verdade querem proteção e amor. Pelo contrário, são mulheres que compreendem que de sua atuação política dependem seus direitos, inclusive o de viver em uma sociedade livre de violência.

NOTAS

1. Tradução livre da citação feita por María Paula Hoyos Carrero em “Mujeres en altos cargos públicos: las consequencias de incomodar al ‘orden natural’”, em Mujeres muy políticas, mujeres muy públicas (Bogotá, Friedrich Ebert Stiftung, 2014).
2. Susan Brownmiller, Against our will: men, women, and rape. New York, Fawcett Books, 1975; p. 15.
3. Sylvia Walby, Theorizing patriarchy. Oxford: Basil Blackwell, 1990; p. 128.
4. Iris Marion Young, Justice and the politics of difference. Princeton, Princeton University Press, 1990; pp. 61-2.

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*Professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente.

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