“Povos indígenas de Mato Grosso do Sul são vítimas de um holocausto”, afirma antropólogo

Por André Bento, de Dourados – Midiamax

O assassinato do guarani-kaiowá Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, de 26 anos, morto a tiros durante um conflito fundiário que também deixou outros sete índios baleados em Caarapó, a 273 quilômetros de Campo Grande, é mais um capítulo do holocausto em curso contra os povos indígenas de Mato Grosso do Sul. A afirmação é do antropólogo Jorge Eremites de Oliveira, renomado pesquisador do tema que foi professor universitário de 1996 a 2012 no Estado. Professor da Universidade Federal de Pelotas e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq, Eremites é antropólogo social, arqueólogo e historiador. Mesmo a distância, garante que continua a desenvolver estudos sobre os povos indígenas que vivem em terras sul-mato-grossenses. Em entrevista por e-mail ao Jornal Midiamax, o especialista traz uma ampla contextualização dos conflitos fundiários na região e avalia que o ataque na Fazenda Yvu, vizinha à Aldeia Te’ Ýikuê, “foi provavelmente o mais covarde, repugnante e reprovável ato do agrobanditismo nos últimos anos”.Confira.

Considerando que em 2013 um adolescente indígena foi morto por um fazendeiro em Caarapó e que eram cada vez maiores os rumores sobre novas ocupações na região, podemos dizer que o ataque de 14.06.2016 contra índios em Caarapó foi uma tragédia anunciada?

Sim, sem dúvida alguma. Há décadas que pesquisadores, organizações da sociedade civil, instituições internacionais ligadas à defesa dos direitos humanos, parlamentares, movimentos indígenas etc., têm denunciado a situação de extrema vulnerabilidade dos Guarani e Kaiowá em Caarapó e em outros municípios sul-mato-grossenses. Portanto, este último ataque criminoso, planejado e executado pelo agrobanditismo local, é mais uma tragédia previamente anunciada. No caso, utilizo o termo “agrobanditismo”, recorrido por geógrafos e outros profissionais que estudam o assunto, para designar a ação violenta de grupos armados a serviço de setores ligados ao movimento ruralista e seus aliados. Compreender esta situação histórica e buscar soluções objetivas para resolver o problema, especialmente no que se refere às tentativas de genocídio contra os Guarani, Kaiowá e outros povos indígenas, como é o caso dos Terena, é dever do Estado e da sociedade nacional. Definitivamente, não pode haver Estado Democrático de Direito diante de tamanha violência e, sobretudo, frente à certeza da impunidade que estimula a promoção de crimes desta natureza, classificados como crimes de genocídio.

Pelo número de vítimas, podemos avaliar como o mais grave ataque aos Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul?

Este é, indiscutivelmente, mais um gravíssimo ataque armado contra os Guarani e Kaiowá que ocorreu neste século, provavelmente o mais covarde, repugnante e reprovável ato do agrobanditismo nos últimos anos. Todavia, não foi o primeiro, tampouco será o último, pois a certeza da impunidade possui respaldo na história dos poderes constituídos na República. O que a imprensa local, regional, nacional e internacional tem noticiado, às vezes de forma distorcida e radicalmente parcial, ocorre dentro de um contexto mais amplo de Estado de exceção. Quando digo isso, refiro-me ao fato de estarmos a testemunhar os desdobramentos de um golpe parlamentar de Estado, orquestrado para retirar do poder uma mandatária impopular e acusada de várias irregularidades. Em seu lugar, porém, foi colocado no poder central alguém ligado a pessoas e grupos envolvidos em vários esquemas e escândalos de corrupção, os quais estão a serviço de forças ultraconservadoras, incluindo a chamada “bancada BBB” (Boi, Bíblia e Bala). Tal bancada, que conta com representantes de Mato Grosso do Sul no Congresso Nacional, também é constituída por pessoas que estão a serviço do agrobanditismo e de outras formas de violação dos direitos fundamentais. Quero dizer, que se faça bem entendido, que observo uma tendência marcante no aumento desses crimes em um dos estados mais anti-indígenas de todo o território nacional. Quando digo isso, não o faço para denegrir a imagem do meu estado natal, mas para alertar a população sul-mato-grossense e mundial para um verdadeiro e agravante holocausto em curso nesta parte da América do Sul.

Qual a origem do problema fundiário na região de Caarapó? Período de início e causa. A quem compete resolver e como?

De maneira geral, o problema fundiário verificado na região de Caarapó e em outras partes do estado teve início após o término da guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870), sobretudo a partir da década de 1880. Foi quando o governo central concedeu vastas extensões do território dos Guarani e a Kaiowá à exploração da Companhia Matte Larangeira (1882-1949), incluindo a área correspondente à antiga Fazenda Campanário, e seus desdobramentos. Como se trata de um tema demasiado amplo e complexo, respondo a esta questão fazendo menção a partes de um recente artigo, publicado em 2015, intitulado “Uma história (indígena) da erva-mate na região platina: da Província do Guairá ao antigo Sul de Mato Grosso”, escrito em parceria com o historiador Paulo Marcos Esselin e disponível na Internet para acesso gratuito.

Nos anos 1880 já existiam muitas comunidades Guarani e Kaiowá na região, cujos antepassados mais antigos ali chegaram há pelo menos 1.500 anos. Elas tinham a posse de um grande território, mas não possuíam títulos de propriedade das áreas que ocupavam. São povos originários que estão na região antes mesmo da invenção do Brasil e, mesmo assim, suas terras foram declaradas como devolutas pelo Estado nacional. Dessa maneira, o governo central entendia que poderia arrendá-las ou transferi-las a governos municipais e provinciais ou estaduais. Este entendimento, contudo, em certo sentido contrariava a própria Lei de Terras de 1850, que em seu Art. 12 previa a destinação de áreas para os indígenas: “Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessárias: 1º, para a colonização dos indígenas; 2º, para a fundação de povoações, abertura de estradas, e quaisquer outras servidões, e assento de estabelecimentos públicos; 3º, para a construção naval”.

Posteriormente, nos primeiros momentos da República, implantada em 1889, muitas terras tidas como devolutas foram transferidas para o governo do antigo Mato Grosso. Este, por sua vez, apoderando-se de grandes extensões e desconsiderando a mencionada norma, seguiu repassando territórios indígenas a terceiros. Esta transferência ocorreu por meio de esquemas de corrupção de dimensões alarmantes, envolvendo governantes, parlamentares e outras pessoas que se apoderaram do aparato estatal para enriquecimento ilícito. Quando os novos proprietários ou seus sucessores tomaram posse das terras, muitos promoveram esbulho contra os nativos e posseiros pobres não-índios que viviam naquela e em outras partes do antigo sul de Mato Grosso. Isso ocorreu com mais frequência após a estruturação das fazendas, quer dizer, posteriormente à exploração do trabalho indígena na derrubada da mata, formação de pastagens, abertura de estradas etc. Esta exploração é análoga ao que chamamos atualmente de trabalho escravo. Não raramente as expulsões contaram com a ação de jagunços e até mesmo com o protagonismo de agentes do Estado: forças policiais (como a polícia conhecida como “Captura”), servidores da agência indigenista oficial etc. Deste processo, grosso modo compreendido entre a segunda metade do século XIX e a primeira do XX, teve origem parte significativa da propriedade privada da terra e da estrutura fundiária regional.

À época, o SPI (Serviço de Proteção aos Índios), criado em 1910 com outra nomenclatura, estava a assegurar oito áreas de uns 3.600 hectares para a formação de reservas indígenas no antigo sul de Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul, incluindo a Reserva Indígena de Caarapó, chamada Tey’i Kue. Para lá deveriam ser enviados os coletivos Guarani e Kaiowá que viviam na região. Com isso foi criada a ideia de que lugar de índio é na reserva, isto é, em áreas oficialmente reservadas pelo Estado para o confinamento dos povos originários. No entanto, muitas famílias indígenas resistiram a esta imposição e permaneceram até parte da segunda metade do século XX em pequenas extensões de seus territórios tradicionais, chamados tekoha, de onde mais tarde acabaram sendo expulsas. Por este motivo, em pouco tempo, especialmente durante o declínio e o fim da companhia, as terras indígenas existentes fora das reservas foram transformadas em propriedades privadas. Este é o vício na origem dos títulos de muitos imóveis rurais existentes em Mato Grosso do Sul, conforme apontado em laudos periciais produzidos por determinação da Justiça Federal.

Trata-se, com efeito, de um tema demasiado complexo e por este motivo, igualmente convido as pessoas interessadas em saber mais sobre o assunto a lerem o artigo “Para compreender os conflitos entre indígenas e fazendeiros em Mato Grosso do Sul”, publicado em 2015 e disponível no sítio eletrônico de vários jornais virtuais, também escrito em parceria com o historiador Paulo Marcos Esselin.

Em linhas gerais, compete à União demarcar a todas as terras indígenas existentes no território nacional. Esta atribuição está explícita na Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, a qual estabeleceu um prazo de cinco anos para o cumprimento da determinação. Contudo, o Estado não tem cumprido com o que estabelece a própria Lei Maior, cabendo denúncias às cortes internacionais. Neste sentido, como o Estado brasileiro mostra-se colonialista e incapaz de regularizar as terras indígenas existentes em Mato Grosso do Sul, os Guarani e Kaiowá decidiram, após longuíssima e traumática espera, fazer cumprir a Carta Magna e demarcar parte de seus territórios tradicionais.

Tem informações sobre qual a extensão territorial reivindicada pelos indígenas na região do conflito em Caarapó?

Recentemente, a presidência da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) assinou a aprovação dos estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Dourados Amambaipeguá I, situada na região. Segundo informações divulgadas no sítio eletrônico da FUNAI, na data de 12/05/2016, a área é terra de ocupação tradicional e possui 55.590 hectares. Outros estudos ainda precisam ser oficialmente concluídos e aprovados. No caso, a aprovação é apenas uma etapa do longo processo de regularização de terras indígenas no Brasil e está, pois, de acordo com a legislação, incluindo o Art. 231 da Constituição Federal de 1988.

De todo modo, o fato é que o estado de Mato Grosso do Sul possui uma vasta extensão territorial, com uma área maior que 357.000 km², superior ao tamanho de vários países distribuídos em todo o mundo. Nesta área é possível haver várias terras indígenas regularizadas e isso não afetará negativamente a economia do estado, pelo contrário. Omitir este fato é abraçar a farsa do discurso ruralista, cuja lógica está baseada na percepção da terra como mera mercadoria, simples commodities, onde se produz produtos de baixo valor agregado para atender, sobremaneira, o mercado externo.

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