“Preto” e “Natureza”: Ampliando o conceito de Racismo Ambiental

Por Larry Lohmann, no boletim do World Rainforest Movement*

É difícil imaginar que o ambientalismo um dia tenha prescindido do conceito de “Racismo ambiental”. Ele dá nome a uma realidade que não pode ser combatida “antes” ou “depois” de campanhas ambientais, mas tem que ser confrontada todos os dias, na construção de movimentos contra as formas com que as sociedades opressivas organizam a natureza.

Atacando a atitude generalizada entre ambientalistas de classe média (“eu não sou racista, então não me fale de racismo”), o conceito destaca as maneiras em que pessoas legais, sem visões racistas, também participam do racismo – não apenas ao desconsiderarem o grau em que a poluição flui em direção a negros e pardos [sic] e para longe dos brancos, mas também ao obedecerem às regras da sociedade educada, que tendem a proibir até mesmo que se mencionem essas questões incômodas.

Cidades e Florestas

A ideia do racismo ambiental cresceu nos Estados Unidos, na década de 1980, entre grupos minoritários cujos corpos estavam sendo forçados a absorver enormes quantidades de venenos de lixões nucleares ou químicos, aterros municipais, centrais elétricas poluentes, incineradores, ar carregado de pesticidas ou água com chumbo.

O que os grupos norte-americanos estavam descrevendo, é claro, acontecia no mundo todo. Em 1984, a fábrica química da Union Carbide, em Bhopal, na Índia, e a planta de gás propano líquido da PEMEX, na Cidade do México, explodiram, destruindo um milhão de vidas. Não muito tempo depois, o trabalho altamente tóxico de desmontar computadores obsoletos começou a recair principalmente sobre a mão de obra barata da Ásia e da África.

O racismo ambiental desse tipo também havia ficado evidente nas florestas. Entre 1964 e 1992, a Texaco submeteu dezenas de milhares de indígenas e camponeses equatorianos (em grande parte, mestiços) à intensa poluição proveniente de seus campos de petróleo de Lago Agrio, que nunca teria sido tolerada nos bairros brancos ricos de Nova York. Na década de 1990, começou-se a “atribuir” a comunidades indígenas de todo o mundo o trabalho de usar suas florestas e páramos para ajudar a absorver a poluição de dióxido de carbono que fluía de indústrias cujos lucros beneficiavam desproporcionalmente outros grupos étnicos.

Dos Estados Unidos à República Democrática do Congo

Na verdade, para cada exemplo de racismo ambiental nas cidades, provavelmente se pode encontrar outro exemplo em florestas.

Movimentos por justiça ambiental dos Estados Unidos há muito apontaram o racismo que é inerente à forma como algumas grandes organizações ambientais de Washington se esforçam ao máximo para fazer maquiagens verdes em indústrias cujos lucros permanecem baseados, em parte, na distribuição desigual da poluição no país.

Porém, perguntamos: não seria igualmente racista, por exemplo, o Grupo CDC – braço do governo do Reino Unido para o financiamento do desenvolvimento – investir dinheiro público na empresa de óleo de dendê (palma) Feronia, na República Democrática do Congo? Os negócios precários da Feronia poderiam ser sustentados sem ocupar terras com florestas roubadas de comunidades ao longo do Rio Congo durante a ocupação colonial belga, entre 1908 e 1960? Dado o legado persistente de desnutrição e dependência de baixos salários que continua a afetar a população local, não é racista o CDC alegar que está apenas tentando “melhorar uma situação” que “herdou”, pela qual não tem qualquer responsabilidade e sobre a qual nada pode fazer?

Outra dimensão

Mas o racismo ambiental não é apenas uma questão de distribuição racializada da poluição pré-existente ou da natureza pré-existente. Ele também tem relação com as maneiras em que pessoas, grupos étnicos, a natureza e a poluição são codefinidas. E esse aspecto do racismo ambiental talvez seja ainda mais visível nas florestas do que em outros lugares.

Por exemplo, o REDD é racista não apenas porque toma terras dos povos indígenas para limpar emissões de dióxido de carbono que não foram geradas por indígenas. Também é racista porque discrimina ideias indígenas sobre a terra. As visões indígenas sobre as florestas nem chegam a ser desconsideradas, porque nem sequer se reconhece que elas existam. Um racismo semelhante é inerente ao que a socióloga argentina Maristella Svampa chama de “zonas de sacrifício”, onde os valores indígenas da terra são ignorados como obstáculos à economia de exportação de commodities.

Ou então, observemos a “natureza” que é preservada em inúmeras áreas protegidas em todo o mundo. A partir da época da criação do Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos, aquela natureza passou a depender da exclusão dos povos indígenas. Inúmeras relações entre seres humanos, animais e plantas foram banidas e substituídas por novas relações que envolvem administradores da natureza, pesquisadores acadêmicos, guardas florestais, turistas e empresas de comunicação.

Em essência, essas transformações não são novidade. Na Inglaterra medieval, as palavras em inglês para “parque” e “floresta” significavam lugares onde havia veados reservados para as elites nobres caçarem, e não necessariamente lugares onde havia árvores. Mas a prática pós-Yellowstone acrescentou novas mudanças. As elites fingiram sair de cena afirmando ser representantes da “natureza” não humana. No entanto, a palavra “protegidas” na expressão “áreas protegidas” ainda significava pouco mais do que “protegidas dos ignorantes de pele escura”.

É claro que, sob regimes progressistas, alguns “nativos” foram autorizados a regressar a essas “naturezas”. Mas, no processo, eles geralmente tinham que concordar em se converter em pitorescos “nobres selvagens” ou em agentes do manejo ecológico ocidental. Por exemplo, eles podem ter de dividir sua terra em duas partes distintas: campos agrícolas permanentes e florestas sem agricultura, sem deixar espaço para outras formas, como áreas utilizadas para a agricultura itinerante. Essas naturezas permaneceram inevitavelmente racistas. Lutar contra o binário ser humano/natureza que os definia se tornou parte da luta contra o racismo em geral.

Naturezas estereotipadas

E será que o racismo não andou sempre de mãos dadas com as ideias preconceituosas de que a natureza estaria, de alguma forma, fora e abaixo do humano?

Não seria mais do que uma coincidência, por exemplo, que as conotações depreciativas de muitas palavras para “floresta” sintonizem com o tom racista de termos muitas vezes aplicado a grupos minoritários marginalizados?

Na Tailândia, onde o conservacionismo racista tem defendido frequentemente programas para reassentar as minorias das montanhas em locais afastados de florestas com bacias hidrográficas, thuen (selva) é apenas outra palavra para “fora da lei”, e paa (floresta) é aquilo que não é siwilai (civilizado). Quantos epítetos racistas do mundo todo – indios de mierda, khon thuen, nyika, spruce monkey, kariang, jangli , jungle bunny – não situam implicitamente seus referentes bem nessas zonas estereotipadas de primitivismo florestal?

Com frequência se pensa que saber viver nesses ambientes supostamente “selvagens” e conviver com eles – ter as habilidades para variar, ampliar, enriquecer ou interagir com eles sem reduzi-los simplesmente a recursos para crescimento infinito – reduz a humanidade da pessoa. Os pensadores colonialistas europeus como John Locke não consideravam os indígenas da América capazes de acrescentar quaisquer ingredientes humanos à terra. Na Índia colonial, as terras “improdutivas” eram consideradas ocupadas por pessoas “criminosas”. Hoje, o Banco Asiático de Desenvolvimento afirma oficialmente que só removendo as pessoas das áreas montanhosas de floresta é que elas podem ser trazidas à “vida normal”.

Ciência e Responsabilidade

Isto nos leva diretamente a uma pergunta que pode ser ainda mais desconfortável: se determinadas naturezas são racistas, as ciências que as estudam podem ser inocentes?

A realidade da ciência é que ela não pode questionar tudo ao mesmo tempo. Ela tem que se basear em certas premissas que, por um tempo, não são contestadas, para testar outras coisas. Hoje em dia, uma divisão entre um racismo humano e natural costuma ser um desses pressupostos.

Por exemplo, uma ciência ambiental cujos problemas são definidos por uma agenda fixa de “reduzir o impacto dos seres humanos sobre a natureza” ou “determinar a capacidade de suporte” terá um viés racial, independentemente das intenções dos cientistas que a praticam.

No entanto, as ciências que estudam coisas como “a natureza do Yellowstone” não podem permanecer para sempre livres da responsabilidade de questionar – cientificamente – a própria construção daquilo que investigam. Hoje, é amplamente reconhecido que uma antropologia que trata os povos que estuda como peças de museu estáticas, a ser “protegidas” da mudança, é racista. Mas a restauração ecológica não é racista exatamente da mesma maneira? E o que dizer dos modelos climáticos que procuram maneiras de “estabilizar” as temperaturas globais em níveis economicamente ideais?

É claro que alguns cientistas corajosos o suficiente para desafiar axiomas racistas dentro de sua própria disciplina estão, para seus colegas, agindo fora do espírito científico ao qual dedicaram suas vidas. Em vez disso, suas atitudes são interpretadas como ataques pessoais que semeiam a divisão.

Racismo, dizem eles, não é nada mais do que alguns bandidos individuais se comportando de forma imoral ou não profissional, ao passo que, em se tratando de “natureza”, a ciência “não vê raça”. Essa reação é generalizada em parte porque tem sido tão eficaz para defender o prestígio da classe científica e daqueles cujo poder a ciência legitima. Mas, no fundo, é apenas mais uma reafirmação da mesma divisão ser humano/natureza. É um obstáculo à discussão racional, como os próprios epítetos raciais.

Desconforto ou Construção de Movimentos?

Os ativistas florestais estão prontos para considerar a ideia de que certos conceitos de natureza e floresta que ajudam a definir o trabalho não apenas de muitos cientistas, mas também de organizações como o Banco Mundial, a FAO, a UNFCCC, a UNESCO e o CIFOR, em alguns aspectos, equiparam-se a palavras como preto ou nigger (termo usado pelos colonialistas ingleses para os negros da África e que se tornou uma maneira depreciativa para se referir aos negros de hoje)? Os ativistas estão dispostos a questionar a maneira como eles próprios, por vezes, usam esses termos?

Esse tipo de ampliação do conceito de racismo ambiental deve gerar resistência generalizada, se não histeria. Entre as classes profissionais, como observou anos atrás a jurista norte-americana Patricia J. Williams, “as questões de raça incomodam e são reprimidas de maneira muito semelhante às questões de sexo e escândalo: mencionar o assunto na presença de senhoras é considerado falta de educação”.

Mas talvez aqueles que se sentem desconfortáveis com o tema tenham que se adaptar. Durante séculos, povos indígenas e camponeses que dependem das florestas tiveram de suportar o racismo dos binários do tipo humano/natural, que foram impostos por atacado a eles e a suas florestas. Se ambientalistas de classe média e outros tiverem de passar por um pequeno desconforto temporário, não será nada em comparação com isso.

Principalmente quando os ganhos potenciais são tão desproporcionais. Quando, na recente cúpula sobre o clima da ONU, em Paris, alguns jovens ativistas afroamericanos que trabalhavam contra o racismo ambiental nos Estados Unidos encontraram representantes da coalizão “No REDD in Africa”, a conexão foi imediata e elétrica. Parte disso pode ter se devido simplesmente a diferentes aspectos de uma história ambiental global compartilhada, que de repente se revelou. Mas talvez também seja resultado de uma sensação de que antigos conceitos de opressão racial e libertação estavam sendo ampliados, e que coisas novas e surpreendentes poderiam estar por acontecer. Aquele era o tipo de momento de onde flui a transformação. Construção de movimento é construção de conceito.

Leituras complementares:

Larry Lohmann, “Ethnic Discrimination in Global Conservation”, http://www.thecornerhouse.org.uk/sites/thecornerhouse.org.uk/files/lohmann.pdf.

Larry Lohmann, “Forest Cleansing: Racial Oppression in Scientific Nature Conservation”, http://www.thecornerhouse.org.uk/resource/forest-cleansing#fn004ref.

Larry Lohmann, “For Reasons of Nature: Ethnic Discrimination and Conservation in Thailand”, http://www.thecornerhouse.org.uk/resource/reasons-nature.

John Vidal, “UK Development Finance Arm Accused of Bankrolling ‘Agro-Colonialism’ in Congo”, http://www.theguardian.com/global-development/2015/jun/05/uk-development-finance-arm-accused-

Julie Cruikshank, Do Glaciers Listen? Local Knowledge, Colonial Encounters and Social Imagination, University of British Columbia Press, 2005.

Eduardo Kohn, How Forests Think: Toward an Anthropology beyond the Human, University of California Press, 2013, http://www.anth.ucsb.edu/sites/secure.lsit.ucsb.edu.anth.d7/files/sitefiles/Kohn%20-%20How %20Forests%20Think%20-%20Introduction.pdf.

Stephen Corry, “The Colonial Origins of Conservation: The Disturbing History Behind US National Parks”, http://www.truth-out.org/opinion/item/32487-the-colonial-origins-of-conservation-the-disturbing-history-behind-us-national-parks.

Patricia J. Williams, Seeing a Colour-Blind Future: The Paradox of Race, Virago, 1997. Maristella Svampa, “The ‘Commodities Consensus’ and Valuation Languages in Latin America”, Alternautas, julho de 2015, http://www.alternautas.net/blog/2015/4/22/the-commodities-consensus-and-valuation-languages-in-latin-america-1.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ivonete Gonçalves.

Ilustração: Marcel Arte.

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