“É preciso saber que percentual de água o São Francisco pode dispor para depois avaliarmos que tipo de projeto vamos realizar, inclusive para saber se vamos resolver todo ou parte do problema hídrico e de abastecimento da região”, adverte o engenheiro agrônomo
Por Patricia Fachin – IHU On-Line
“Depois de analisar e acompanhar a atual situação do Rio São Francisco, diria que o Estado deveria ter apostado na revitalização do rio: precisávamos primeiro ter água de boa qualidade e em volume no Rio São Francisco para futuramente discutir se seria preciso uma transposição”, diz João Suassuna à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone.
Segundo ele, mesmo se a transposição tivesse sido concluída, dada a atual situação de seca no Nordeste brasileiro – quadro que se repete há cinco anos – “hoje não seria possível retirar água do São Francisco para abastecer 12 milhões de pessoas”, frisa.
Apesar dessa situação, Suassuna defende a conclusão da obra “porque do contrário” ela “será um elefante branco, ou seja, seria assumir um atestado de incompetência gastar 8,2 bilhões de reais num projeto e deixá-lo se transformar num elefante branco”. Entretanto, alerta, “depois da conclusão, teremos um problema grave: de onde retirar água para satisfazer as necessidades de 12 milhões de pessoas que estão sedentas no Nordeste”.
Na entrevista a seguir, João Suassuna apresenta um panorama da exaustão hídrica das represas nordestinas e também comenta a proposta do governo interino de Michel Temer de investir 10 bilhões de reais na revitalização do Rio São Francisco nos próximos dez anos. Trata-se de “uma ação louvável”, diz, mas “se o governo Temer pretende gastar 10 bilhões na revitalização do São Francisco, ele tem que olhar para a região e entendê-la de uma forma sistêmica, porque, do contrário, não acredito numa revitalização”, adverte.
Suassuna também comenta brevemente os casos de corrupção envolvendo a transposição do Rio São Francisco e frisa que, por enquanto, segundo informações do Tribunal de Contas da União – TCU, “200 milhões de reais estão envolvidos em superfaturamento nessas obras, o que não foi esclarecido ainda diante da opinião pública. Sabemos que várias das empreiteiras envolvidas na Lava Jato atuam na obra de transposição do Rio São Francisco e há necessidade de que essas informações sejam muito bem esclarecidas diante da sociedade, para que ela perceba o que está acontecendo e possa, depois, julgar esse projeto da transposição do rio. É dinheiro público que está envolvido na ‘jogada’ e não podemos deixar essa situação ser conduzida da forma como está sendo; a população tem que se manifestar”.
João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da fundação Joaquim Nabuco, no Recife, e especialista em convivência com o semiárido.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a situação do Rio São Francisco hoje? Recentemente o senhor informou que a represa de Sobradinho, uma das principais da região, está funcionando com 25% da sua capacidade. O que isso significa em termos de abastecimento da população?
João Suassuna – Depois analisar e acompanhar a atual situação do Rio São Francisco, diria que o Estado deveria ter apostado na revitalização do rio: precisávamos primeiro ter água de boa qualidade e em volume no Rio São Francisco para futuramente discutir se seria preciso uma transposição. O que está acontecendo hoje? O rio está seco, o Nordeste está precisando de água, e se a transposição tivesse sido concluída, hoje não seria possível retirar água do São Francisco para abastecer 12 milhões de pessoas.
Gostaria de fazer uma observação sobre a situação da bacia do Rio São Francisco: há cinco anos ocorrem secas sucessivas no Nordeste, porque as chuvas foram abaixo da média. Além disso, há um problema muito sério de uso excessivo das águas de subsolo na bacia do São Francisco. Essas águas abastecem a vazão de base, a qual tem uma importância muito grande no regime volumétrico do Rio. Para se ter uma ideia, existe um aquífero na Bacia, chamado Urucuia, o qual é o mais importante no que diz respeito à gestão da vazão e da quantidade de água que corre no seu leito através desses aquíferos e chega a Sobradinho.
Metade da vazão de Sobradinho é proveniente do aquífero Urucuia. É em cima desse aquífero que hoje está se expandindo a cultura da soja, que está sendo irrigada com pivô central. Mas o problema é que quando se irriga com pivô central, está se secando os aquíferos, e ao secar os aquíferos, se interfere nas vazões de base.
A represa de Sobradinho, quando foi construída, tinha a finalidade de regularizar a vazão de 2.060 metros cúbicos por segundo do rio São Francisco. Com a retirada dessas águas do subsolo, essa vazão média está caindo e está atualmente em 1.850 metros cúbicos, quer dizer, a tendência é cair mais ainda. Somada a essa retirada de água exacerbada do subsolo e somados esses anos de seca, a represa de Sobradinho está atuando com 25% da sua capacidade, com a perspectiva de entrar em volume morto no próximo mês de novembro, segundo laudos já apresentados por técnicos. Ou seja, teremos um problema muito sério porque a população que vive na margem do São Francisco não terá água para beber e para irrigar as suas culturas.
IHU On-Line – Qual é a atual situação das obras de transposição do Rio São Francisco iniciadas no governo Lula?
João Suassuna – Até o final da gestão Dilma, essas obras estavam cerca de 80% concluídas. A gestão Temer está dando sinais de que quer investir não na conclusão da obra de transposição, mas na revitalização do rio, e já se fala em alocar 10 bilhões de reais para isso. É uma ação louvável, não resta dúvida, mas acho que devem concluir esse projeto da transposição, porque do contrário essa obra será um elefante branco, ou seja, seria assumir um atestado de incompetência gastar 8,2 bilhões de reais num projeto e deixá-lo se transformar num elefante branco. Então, acho que a transposição deve ser concluída. Contudo, depois da conclusão, teremos um problema grave: de onde tirar água para satisfazer as necessidades de 12 milhões de pessoas que estão sedentas no Nordeste. O São Francisco não vai ter essa água.
Por isso, defendo que os hidrólogos têm de sair a campo novamente para identificar quais são as reais necessidades de água para beber. Tem de se encontrar um volume que seja capaz de atender às necessidades dos nordestinos. Esse trabalho precisa ser feito também na bacia do Rio São Francisco para saber que volume de água o rio tem para oferecer no sentido de atender às necessidades da população. Os hidrólogos tinham uma ideia de qual era esse volume antigamente, mas o cenário hidrológico mudou e, além disso, há muitas cisternas instaladas na área rural. Então, essa nova equação ainda não foi feita. Identificado esse volume, vamos ter que partir para a identificação de uma instituição que garanta a distribuição da água e que não sofra ingerências políticas para abrir e fechar essas torneiras.
Você pode me perguntar que instituição é essa. De fato, é difícil encontrar uma instituição que não sofra ingerências políticas, mas quem sabe a polícia federal tenha que intervir para garantir a distribuição da água, porque às vezes a situação chega a um ponto que vira caso de polícia.
IHU On-Line – Por que considera que é mais importante concluir a transposição do rio ao invés de iniciar um novo projeto que visa à revitalização? Dada a atual crise, será possível investir nesses dois projetos?
João Suassuna – Porque só faltam 20% para concluir a obra. O meu receio é que depois do dinheiro que foi gasto, essa obra vire um elefante branco. Não podemos deixar que o São Francisco entre no hall da lista negra. Se der para começar a revitalização e concluir a obra, seria o mais viável.
A transposição serviria para resolver um problema emergencial que está ocorrendo em Campina Grande, porque o principal reservatório que abastece a cidade e outros 18 municípios está funcionando com 7% de sua capacidade. Então há a previsão de a represa que abastece Campina Grande entrar em volume morto. Se isso acontecer, veja o problema que vamos ter: 450 mil pessoas, que é a população dessa região, ficarão sem água, mas elas têm que ser abastecidas de alguma forma, ou seja, precisa chegar água para essas pessoas terem o que beber.
Mas com a atual situação do Nordeste, com todas as represas numa situação de exaustão, essa água virá de onde? A única solução será a água do São Francisco. Por isso defendo a conclusão do projeto, para que a transposição possa resolver, de forma emergencial, esse problema que está acontecendo hoje em Campina Grande. Se não colocar esse projeto a funcionar, Campina Grande não terá água para dar de beber ao seu povo. Fala-se em implementar outros sistemas, como os de adução de engate rápido, e isso é possível, mas vamos tirar a água de onde? É nisso que temos de pensar.
Os hospitais de Campina Grande estão sendo abastecidos por caminhões-pipa; isso é uma loucura. Se a transposição tivesse sido concluída, já estaria chegando água para resolver esse problema. Mas para que a água chegue não podemos descuidar desse trabalho que lhe falei anteriormente: temos de saber que volumes de água o São Francisco pode nos fornecer.
IHU On-Line – Como está avaliando o novo programa de revitalização do Rio São Francisco, anunciado pelo governo interino, chamado de Novo Chico, que pretende gastar 10 bilhões até 2026, e atuar em três frentes: recuperação das nascentes e áreas degradadas, modernização de agricultura irrigada e programa de aquicultura; conclusão de 124 projetos de saneamento; e gestão e fiscalização ambiental com recuperação de unidades de conservação?
João Suassuna – É uma proposta interessante; não resta dúvida. Todas as lagoas do São Francisco estão com problemas sérios porque o rio não está tendo volumes suficientes para reabastecer as lagoas. E quando as lagoas secam, os peixes somem. Temos que olhar para tudo isso de modo sistêmico e entender que a gota de esgoto que cai no Rio das Velhas vai poluir outras regiões, porque moramos num vaso fechado que é o planeta Terra. Essa proposta de revitalização é importante, mas como eu já disse anteriormente, temos de saber também que volumes de água o Rio São Francisco vai poder fornecer. Precisamos avaliar isso porque é a partir desse número que será possível planejar a irrigação que está sendo feita no Rio São Francisco, planejar que quantidade de água será lançada das represas do São Francisco etc.
IHU On-Line – É possível fazer esse cálculo rapidamente?
João Suassuna – Esse é um trabalho que demora, mas que precisa ser começado. Não podemos ficar de mãos atadas, ver o Nordeste seco, sem uma gota d’água e sem saber o que fazer.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a nova proposta para o São Francisco à luz do projeto anterior de transposição do governo Lula? Em que aspectos essas propostas se diferenciam?
João Suassuna – Se a obra de transposição não tivesse sido feita, a situação seria outra. Inclusive, o Lula fez questão de enaltecer um diferencial ao dizer que sua proposta era diferente da de Fernando Henrique Cardoso. A proposta de FHC, ele dizia, apenas visava à transposição das águas, mas o Lula dizia que queria mais, queria investir na revitalização do rio. Eu fiquei muito animado naquela época, porque ele inclusive deu início a essa proposta ao criar uma subsecretaria só para mexer com a revitalização do São Francisco, mas a vontade foi diminuindo de tal modo que começaram a investir muito mais na transposição do que na revitalização, chegando ao ponto de que em uma determinada época o orçamento da transposição era de 1 bilhão de reais e o da revitalização era de 100 milhões. A partir daí não pude mais acreditar num projeto de revitalização em que se aplicava 10% do que estava sendo investido num projeto de transposição. Já nessa época eu comecei a não acreditar no projeto de revitalização do rio São Francisco do governo Lula, com essa divisão de recursos.
Estamos numa situação emergencial no Nordeste, e se você me perguntasse se esse projeto resolveria a situação do Rio, eu diria sinceramente: resolveria se chegássemos a detectar qual é o volume de água que o São Francisco pode dispor. É preciso saber que percentual de água o São Francisco pode dispor para depois avaliarmos que tipo de projeto vamos realizar, inclusive para saber se vamos resolver todo ou parte do problema hídrico e de abastecimento da região. Depois de voltarmos à situação de chuvas e os reservatórios estarem abastecidos, temos de fazer um trabalho de gestão dos recursos hídricos, porque do contrário voltaremos à estaca zero.
Para não dizer que não foi feito nada, houve uma ação de tratamento de saneamento em algumas regiões, mas ficou somente nisso. A revitalização de uma bacia é uma coisa muito maior porque tem que resolver a questão de reflorestamento das matas ciliares, cuidar dos vazamentos sanitários, olhar a parte de dragagem dos rios que já estão assoreados, cuidar da fauna, mas nada disso foi feito.
Se o governo Temer pretende gastar 10 bilhões na revitalização do São Francisco, ele tem que olhar para a região e entendê-la de uma forma sistêmica, porque, do contrário, não acredito numa revitalização.
IHU On-Line – Como a discussão política tem repercutido na região em que está sendo realizada a transposição do Rio São Francisco neste momento de crise e de risco de abastecimento de água, dado que várias empreiteiras e políticos estão sendo denunciados na Lava Jato por conta da corrupção envolvendo essas grandes obras, por exemplo?
João Suassuna – Tenho acompanhado essas questões e inclusive já estão divulgando informações sobre a má administração dos recursos públicos nas obras da transposição. O Tribunal de contas da União já chegou à conclusão de que 200 milhões de reais estão envolvidos em superfaturamento nessas obras, o que não foi esclarecido ainda diante da opinião pública. Sabemos que várias das empreiteiras envolvidas na Lava Jato atuam na obra de transposição do Rio São Francisco e há necessidade de que essas informações sejam muito bem esclarecidas diante da sociedade, para que ela perceba o que está acontecendo e possa, depois, julgar esse projeto da transposição do rio. É dinheiro público que está envolvido na “jogada” e não podemos deixar essa situação ser conduzida da forma como está sendo; a população tem que se manifestar.
Se você fizer uma pesquisa hoje na região setentrional do Nordeste, 99% das pessoas dirão que são favoráveis à obra, porque ainda não a receberam. O resto do Nordeste é contra a obra porque não vai participar do recebimento dessas águas. De outro lado, parte da população que era favorável ao projeto, já está achando que ele não vai sair por causa das “falcatruas” que são feitas em torno da má administração do dinheiro público e porque vários dos canais da transposição estão rachando e ninguém está ligando para isso. Tudo isso está fazendo a opinião do nordestino mudar em relação ao projeto. Isso é lamentável de dizer? Sim, mas ninguém mais acredita nesse projeto.
O problema maior do Nordeste é a falta de gestão dos recursos hídricos, porque os principais açudes do Nordeste estão em uma situação lamentável em termos de volume de água por conta de uma má gestão desses volumes. Quando se constrói uma represa de grande porte, essa represa regulariza o rio que foi represado num volume de regularização. Para você ter uma ideia, se utilizarmos o volume dessa represa em volumes maiores do que a da regularização, a represa seca, mesmo se tiver enormes volumes de água.
O que acontece hoje no Nordeste é que os volumes de regularização dessas represas estão sendo menores do que o volume de água que está sendo retirado dela. Isso leva à exaustação e foi assim que acabaram com açudes em várias regiões. Diante dessa situação, a solução apresentada é trazer água do Rio São Francisco, mas essa água vem de uma parte do rio que também já está praticamente seca. Quando essa água chegar à represa, ela vai continuar sendo mal gerida e, portanto, a água do São Francisco nessas represas também vai acabar. Essa é a triste situação hídrica do Nordeste brasileiro.
–
Imagem: Mapa da transposição do Rio São Francisco. Fonte: Portal EcoDebate
O Rio São Francisco tem muita água, precisa armazenar mais agua e precaver para momentos de seca que ocorreu nestes anos.
Somente é contra a transposição quem não vivencia a realidade de quem vive no semiárido.
Temos que aumentar a quantidade de água armazenada e ampliarmos os canais para distribuição de água.