O legado olímpico, para os mais pobres, são remoções, especulação imobiliária, militarização da cidade. Não adianta tapar os vazamentos da Vila Olímpica. A face real dos Jogos é a Vila Autódromo
Por Guilherme Boulos – Outras Palavras
Duas semanas antes do início dos Jogos Rio-2016, a Vila Olímpica destinada ao alojamento dos atletas recebeu atenção internacional. Problemas de acabamento e vazamentos de água fizeram as delegações da Austrália, Argentina e Suécia se recusarem a ficar no local.
Cinco vezes maior que a previsão original, o valor pago pelo poder público para usar a Vila saltou de R$ 51 milhões para R$ 254,9 milhões. As obras foram feitas por um consórcio da Odebrecht com a Carvalho Hosken e tiveram um custo total de R$ 2,9 bilhões, financiados pela Caixa. A Odebrecht, lembremos, tinha em sua polpuda lista de doações eleitorais o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB), com o carinhoso apelido de “Nervosinho”.
Reportagem da ESPN, datada de julho de 2015, dizia que a promessa era de “instalações de alto padrão para as delegações, em um nível nunca visto anteriormente na história dos Jogos”. Ficou na promessa.
Mas, apesar dos holofotes no caso, o maior problema da Olimpíada do Rio não é o vazamento nas instalações da vila dos atletas. Antes fosse. O projeto da cidade olímpica veio acompanhado de segregação urbana e favorecimento dos interesses imobiliários, como aliás já havia ocorrido na Copa de 2014.
O caso mais emblemático desta lógica foi o da Vila Autódromo. Comunidade vizinha ao Parque Olímpico, a Vila Autódromo foi alvo de um assédio contínuo, com despejos, violência policial e intimidação por parte da prefeitura de Paes. A maioria das 600 famílias foi removida para moradias em região mais distante ou recebeu indenizações insuficientes para a aquisição de outra casa.
Mas a Vila Autódromo também tornou-se símbolo de resistência. Vinte famílias não arredaram pé, resistindo ao assédio, às pressões e agressões. Conseguiram permanecer no local. Maria da Penha, liderança desta luta, disse em entrevista recente ao “El País”: “As pessoas às vezes pensam no pobre como lixo para ser removido. Não somos lixo, somos pessoas com direitos que precisam ser respeitados”. Parece óbvio, mas não é: estima-se que mais de quatro mil famílias tenham sido removidas por obras ligadas direta ou indiretamente aos Jogos Olímpicos.
Muitas dessas remoções e obras para o evento convergiram com interesses imobiliários, servindo como instrumento de gentrificação em áreas valorizadas. A própria Vila Olímpica é expressão disso. Ao invés de optar por um projeto menos suntuoso, que poderia ser convertido em habitação popular após os Jogos – a exemplo de várias cidades que sediaram o evento– os organizadores decidiram por um complexo na Barra da Tijuca, que já está sendo comercializado pelas construtoras como condomínio de luxo.
Além disso, a Olimpíada militarizou o Rio de Janeiro. Sob o argumento da segurança para os Jogos e a prevenção ao terrorismo, intensificaram-se as incursões agressivas nas favelas e a repressão aos trabalhadores informais. A letalidade da PM cresceu consideravelmente no Estado durante o último período. Os cariocas pobres são tratados abertamente como inimigos.
Como agravante, a Câmara aprovou o projeto de lei 5.768/2016, que cria foro especial para militares que cometerem crimes dolosos contra civis durante os Jogos Olímpicos. Se confirmado pelo Senado, o projeto livrará os militares de serem levados à Justiça comum por crimes que venham a cometer. O autor da proposta, deputado Julio Lopes (PP), afirmou que isso dará “mais liberdade e vontade” para os policiais.
O legado olímpico para os mais pobres é de remoções, especulação imobiliária e militarização da cidade. Não adianta tapar os vazamentos da Vila Olímpica. A face real da Olimpíada é a Vila Autódromo.
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Foto: “Vila Autódromo foi alvo de assédio contínuo: despejos, violência, intimidação. Maioria das 600 famílias foi removida para regiões distantes ou recebeu indenizações insuficientes para comprar outra casa”
PS/ retifico “equação decifrável” para “equação indecifrável”, grato, peço desculpas.
A estruturação de uma cidade para a realização de uma olimpíada configura-se em um laboratório que garante à sociedade muitas lições, daí os debates, milhares de textos, artigos e livros, antes e depois de cada evento. Um prato cheio para quem gosta de estudar planejamento, organização, engenharia, gestão pública.
Tais condições não eliminam a discrepância das análises. Há extremismo econômico em certas análises, independente do curriculum dos debatedores, afinal, emoção, paixão e lógica resultam em uma equação decifrável. Vejam a complicação de inserir a linha de metrô como uma infraestrutura para os jogos olímpicos, a segurança em uma cidade permanentemente insegura, a mão-de-obra formada em um país que oferece péssimo ensino, começando pelo fundamental-médio. Trata-se de um projeto e cronograma de obras que exige – acima de aspectos legais, normativos – fiel cumprimento de itens com o execução, prazo e qualidade – já não falo em custos. Um excelente case para estudiosos de gestão pública. Diante de tudo o prefeito do RJ tem se comportado de forma ridícula; ao invés de assumir as falhas fez brincadeira de mau gosto, repassou culpa até para um engenheiro argentino. É inaceitável todo o périplo pelo qual passou a delegação da Austrália antes mesmo do início dos jogos. Torço para que tudo corra o melhor possível. O prefeito do RJ tem se portado de forma ridícula e demagógica.