MPF/MG ajuíza ação para garantir tratamento digno a moradores do Aglomerado Santa Lúcia

Cortes de energia elétrica pela Cemig têm penalizado ruas inteiras. Moradores ainda estão tendo de conviver com escombros e lixo de demolições feitas pela Prefeitura de BH, num cenário que mais parece de guerra

MPF/MG

O Ministério Público Federal em Minas Gerais (MPF/MG) ajuizou ação civil pública para impedir a continuidade das graves e sistemáticas violações de direitos dos moradores do Aglomerado Santa Lúcia, que estão sendo cometidas pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PMBH) e pela Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte (URBEL) na execução do Programa Vila Viva. A concessionária de energia elétrica, Cemig, também é ré na ação.

O Aglomerado Santa Lúcia, situado na região centro-sul da capital mineira, existe há quase 90 anos e é composto por seis vilas onde vivem mais de 16,9 mil pessoas.

Há cerca de seis anos, a Prefeitura iniciou a implantação do Vila Viva, um programa de reurbanização de favelas que conta, no caso do Aglomerado Santa Lúcia, com recursos da ordem de R$ 124,5 milhões, dos quais R$ 118,28 foram obtidos junto ao governo federal no âmbito do Programa Pró-Moradia, que integra o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

A previsão é de que serão removidas 1.150 famílias do aglomerado. Para reassentar essas pessoas, estão sendo construídas 587 unidades habitacionais distribuídas por 20 conjuntos residenciais, o que significa dizer que pelo menos 563 famílias não serão contempladas. Apesar disso, terão de deixar suas casas, seja para abrir espaço para os prédios, seja porque os locais onde hoje elas se encontram passarão por reforma urbanística, com a abertura de novas ruas e implantação de itens como rede de drenagem pluvial.

Segundo o MPF, o processo, que por sua natureza já é extremamente complexo, foi agravado pela forma como a prefeitura vem agindo em relação à população afetada direta e indiretamente pelo empreendimento.

“Os programas de reurbanização têm por objetivos diminuir o déficit habitacional e garantir moradia adequada para a população, mas o que se vê no caso do Programa Vila Viva no Aglomerado Santa Lúcia é a reprodução desse déficit e a piora na qualidade de vida das famílias removidas. Na maior parte das vezes, o valor das indenizações é tão baixo, que as famílias saem mais empobrecidas e não têm como adquirir outro imóvel nas mesmas condições”, afirma o procurador regional dos Direitos do Cidadão, Edmundo Antonio Dias.

Os moradores do aglomerado estão sendo obrigados a assistir ao contínuo acúmulo de entulho e lixo, bem como à interrupção do serviço de iluminação pública de ruas e becos, sem conseguir obter qualquer reversão dos fatos junto aos órgãos públicos responsáveis.

Para entender a situação, é preciso ver que as casas são demolidas gradualmente, poucas por beco ou rua, conforme vão sendo firmados os acordos individuais de remoção e de indenização. Após a demolição, ao invés de recolher os escombros, a URBEL, órgão responsável pela implementação do programa, frequentemente deixa os restos das demolições no local, onde vai se acumulando lixo e proliferando animais peçonhentos e ratos.

Os moradores que permanecem no local referem-se à paisagem com a qual têm de conviver todos os dias como “um cenário de guerra”.

O MPF alerta que, além do sofrimento e do desgaste emocional das famílias obrigadas a viver em meio a esse caos, a falta de prestação do serviço de iluminação das ruas coloca em risco a segurança pública. Além disso, o acúmulo dos escombros traz grave risco à saúde pública, em decorrência da provável proliferação de vetores de diversas doenças.

Ou seja, o principal ente responsável, em nível municipal, por cuidar da saúde pública vem cometendo atos que colocam em risco a saúde e a vida da população.

Corte de energia – Para agravar a situação, a remoção das famílias tem sido acompanhada do corte de energia não só das casas condenadas, como também dos postes situados nas imediações, prejudicando os moradores que ainda vivem ou transitam no local.

Trechos inteiros de ruas e becos estão às escuras, dificultando o deslocamento das pessoas que moram nas imediações, em especial idosos, crianças e pessoas com deficiência. A ação relata o depoimento de uma moradora em que ela indaga qual relação existiria entre a remoção de determinada família e o corte da iluminação pública na rua, afinal, todos os moradores que permanecem no local continuam pagando a taxa de iluminação pública.

“Não há dúvida de que a presença dos entulhos, somada ao corte da iluminação pública – serviço público essencial – torna o ambiente inóspito, aumentando a exposição dos moradores a situações de vulnerabilidade, em detrimento do direito à moradia adequada de todos quantos permanecem no Aglomerado Santa Lúcia”, destaca o MPF.

A conduta da Cemig desrespeita inclusive uma das condicionantes socioambientais do Estudo de Impacto Ambiental do empreendimento, segundo a qual “o Programa deverá garantir o atendimento dos serviços públicos de abastecimento de água e fornecimento de energia elétrica, principalmente, além do caminhamento dos efluentes líquidos, para toda a população enquanto durar as obras” (sic).

Valor insuficiente – Outro problema relatado pela ação, e que vem sendo objeto de frequentes questionamentos desde o início do projeto, diz respeito à falta de transparência da prefeitura quanto aos critérios utilizados no programa para a seleção dos beneficiários, como também pela opacidade relativa às indenizações.

O número de unidades habitacionais construídas no âmbito do Programa Vila Viva é bastante inferior ao número de famílias que serão removidas. As demais terão de ser indenizadas ou reassentadas em outro local da cidade.

A questão é que “os critérios divulgados pela Prefeitura do Município de Belo Horizonte são ainda muito obscuros, gerando dúvidas, insegurança, desconfiança, ansiedade e medo nas famílias que serão removidas de suas casas”, relata a ação.

A Urbel não explica, por exemplo, quais serão os critérios de desempate caso mais de 587 famílias atendam às exigências de enquadramento no programa.

Outro problema sofrido pelos moradores que terão de deixar suas casas diz respeito aos valores irrisórios das indenizações pagas pela prefeitura, que se revelam insuficientes para garantir nova moradia nos moldes daquelas onde hoje moram.

A principal causa dos baixos valores indenizatórios – tema presente em praticamente todas as reuniões ocorridas entre o MPF e pessoas removidas – é a falta de indenização da posse dos moradores.

“O Programa Vila Viva indeniza os moradores somente pelo valor das benfeitorias construídas e não pelo valor da posse, que é um direito que vem sendo ignorado pelo Poder Público municipal”, explica o procurador da República Edmundo Antônio Dias. “Sabe-se que a perda de um bem gera, para seu titular, o direito à reparação. A obrigação de indenizar a posse é, portanto, consequência lógica do reconhecimento do direito possessório. Ou seja, os moradores removidos de seus imóveis no âmbito do Programa Vila Viva, e que não serão reassentados no âmbito do programa, devem ser indenizados não só pelas benfeitorias construídas, como ocorre atualmente, mas também pela posse do terreno onde vivem”.

Além disso, a prefeitura também se recusa a indenizar os pontos comerciais, o que acaba acarretando a diminuição do patrimônio dos titulares dos respectivos fundos de comércio, além de, na prática, impossibilitar a continuidade desse meio de vida produtiva.

“Como se vê, a forma de execução do Programa Vila Viva, além de desagregadora do ponto de vista humano, é fragmentadora sob a perspectiva produtiva e empobrecedora sob o aspecto patrimonial”, afirma o MPF.

A ação sustenta que “a falta de informações ou a dificuldade em se obter acesso a dados de natureza pública, como são os valores despendidos pelos poderes públicos com as indenizações, servem ao propósito de desmobilizar os moradores na luta pela valorização de seus bens. Sabe-se que os moradores que primeiro assentem com os valores oferecidos pelos poderes públicos recebem as menores indenizações, até por desconhecimento de quanto o Município despendeu ou pretende despender para indenizar os demais moradores”.

Dois dias para desocupação – Moradores também reclamam dos prazos extremamente curtos que a URBEL concede às famílias para desocuparem seus imóveis, sob pena de pagamento de multa superior a mil reais.

Na maioria das vezes, as notificações chegam com apenas dois dias de antecedência, o que, segundo a ação, é “tempo obviamente insuficiente, além de desrespeitoso à pessoa notificada, para que as famílias se reorganizem em torno de nova alternativa habitacional”.

É preciso ressaltar que a Relatoria Especial para o Direito à Moradia Adequada da ONU prevê prazo de 90 dias, com aviso prévio, nos casos de remoções forçadas.

E se as dificuldades são enormes para quem é dono de seu imóvel, imagine a situação de quem vive de aluguel. De fato, os critérios utilizados pelo Programa Vila Viva excluem os locatários de qualquer política de reassentamento ou indenização. Os locatários tampouco contam com qualquer apoio técnico e social da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte para encontrar nova moradia.

“A locação, no entanto, é uma relação jurídica que não pode ser ignorada nas favelas – sob pena de mais uma vez ser violado o direito social à moradia (art. 6º, CF/88) –, mesmo porque os locatários são geralmente os moradores mais vulneráveis do local. Não se pode conceber que um programa voltado à redução do déficit habitacional torne-se responsável por sua reprodução e pela deterioração da qualidade de vida e das condições de moradia da população pobre”, afirma a ação.

Descumprimento das condicionantes – O MPF ressalta que muitos dos problemas relatados na ação já haviam sido previstos pela própria Prefeitura na época do licenciamento ambiental do empreendimento. Os estudos feitos à época apontaram a necessidade de cumprimento de várias condicionantes socioambientais, que, agora, estão sendo solenemente ignoradas.

Uma delas é a necessidade de monitoramento e de acompanhamento social das famílias removidas, os quais devem ser feitos tanto em relação àquelas que são reassentadas em unidades habitacionais construídas no âmbito do Programa como em relação às que são indenizadas. Nada disso vem sendo feito. Os próprios técnicos da URBEL admitem que o contato com as famílias termina quando elas se mudam de suas casas.

A ação destaca que tal postura contradiz não só a legislação brasileira como a internacional. Afinal, o direito à moradia é reconhecido como um direito humano fundamental na Constituição Federal (art. 6º) e em diversas declarações e tratados internacionais de direitos humanos de que a República Federativa do Brasil é parte, em especial na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (art. 25), no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 17), no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (art. 11), na Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 (art. 21), na Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver, de 1976, na Agenda 21 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (Capítulo 7).

No caso específico, devem ser observados ainda normativos que obrigam o administrador que emprega recursos federais em obras e empreendimentos voltados ao desenvolvimento urbano, especialmente quando esses recursos advêm do Programa de Aceleração do Crescimento.

Proibição do retrocesso – Por fim, o MPF defende que os pedidos feitos na ação nada mais objetivam do que impedir o retrocesso nas condições de vida atual da comunidade.

De acordo com o Supremo Tribunal Federal, “O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive”.

Portanto, o projeto de reurbanização, “que explicita o objetivo de melhorar a qualidade de vida da população atingida, não pode, contrariamente a seus fins, piorar a situação em que as famílias hoje se encontram. As moradias perdidas devem ser repostas em níveis superiores ou pelo menos iguais aos existentes, sob pena de violação ao princípio da proibição do retrocesso. Os moradores não são meros beneficiários de um favor do Estado, são sujeitos de direitos”, afirma o MPF na ação.

Além de pedir o restabelecimento e manutenção do fornecimento de energia elétrica em todas as vias públicas do Aglomerado Santa Lúcia, a ação também pediu a imediata e completa remoção dos entulhos provenientes das demolições.

Foi pedido ainda que a Justiça Federal determine que a PMBH disponibilize na internet amplas informações sobre o Programa, incluindo valores de indenizações, critérios de escolha dos beneficiários, prazos para desocupação, que não poderão ser inferiores a 90 dias, e parâmetros de avaliação dos imóveis.

Ao final do processo, o MPF espera que a Prefeitura, a Urbel e a Cemig sejam condenadas a indenizar os moradores por dano moral coletivo.

O procurador Edmundo Dias afirma que a conduta das rés “causou danos aos moradores do Aglomerado Santa Lúcia que vão muito além do que possa ser restaurado, mitigado ou compensado. Não é necessário frisar que a interrupção, realizada pela CEMIG, de um serviço público universal – como o de iluminação pública – provocou, nos moradores das regiões que passaram a conviver com o breu e o descaso, um sincero sentimento de inferiorização diante da situação que lhes foi imposta. Não é menos sofrido o sentimento imposto aos moradores do Aglomerado Santa Lúcia em decorrência da imposição de uma convivência com o lixo e com os entulhos acumulados, que provieram das demolições empreendidas pelo Município de Belo Horizonte e pela Urbel, que não os recolheram a tempo e modo”.

Clique aqui para ler a íntegra da ação.

Foto: Programa Pólos de Cidadania da UFMG

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