Imagine uma comunidade em que 100% das famílias encontram-se em algum grau de insegurança alimentar e nutricional. Para ter uma ideia do que isso significa, considerando o país inteiro, o índice é de 22,6% da população.
Isso seria uma tragédia sem comparações, motivo para governos serem obrigados a se justificarem e ao país – como um todo – ser espinafrado pela mídia nacional e internacional.
Seria. Se as comunidades afetadas não fossem indígenas. Que, como sabemos, são invisíveis.
A Fian Brasil, em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), realizou uma pesquisa para medir a insegurança alimentar e nutricional em três comunidades Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul – Guaiviry, Apyka’i e Kurusu Ambá. As três são palco de disputas por territórios tradicionais e tiveram lideranças assassinadas.
Em 2013, 4,8% dos domicílios brasileiros com pessoas com menos de 18 anos se encontravam em insegurança alimentar grave. Enquanto isso, nas comunidades indígenas avaliadas, esse índice era de 28%.
Em 76% dos domicílios da pesquisa, a pessoa entrevistada afirmou que, no mês anterior a setembro de 2013, houve ocasião em que crianças e jovens da casa passaram um dia todo sem comer e foram dormir com fome, porque não havia alimento.
Menos de 40% recebiam o Bolsa Família.
A análise dos dados, que está sendo divulgada agora, aponta como causas estruturantes do problema de acesso aos alimentos, a falta de respeito, proteção e promoção dos direitos ao território e à sua identidade cultural.
Cerca de 98% das terras indígenas brasileiras estão na região da Amazônia Legal. Elas reúnem metade dos povos indígenas. A outra metade está concentrada nos 2% restantes do país. Sem demérito para a justa luta dos indígenas do Norte, o maior problema se encontra no Centro-Sul, mais especificamente no Mato Grosso do Sul – que concentra a segunda maior população indígena do país, só perdendo para o Amazonas. Há anos, eles aguardam a demarcação de mais de 600 mil hectares de terras, além de algumas dezenas de milhares de hectares que estão prontos para homologação ou emperrados por conta de ações na Justiça Federal por parte de fazendeiros.
Ao longo dos anos, os Guaranis Kaiowá foram sendo empurrados para reservas minúsculas, enquanto fazendeiros, muitos dos quais ocupantes irregulares de terras, esparramaram-se confortavelmente pelo Estado. Incapazes de garantir qualidade de vida, o confinamento em favelas-reservas acaba por fomentar altos índices de suicídio e de desnutrição infantil, além de forçar a oferta de mão de obra barata. Pois, sem alternativas, tornam-se alvos fáceis para os aliciadores e muitos acabaram como escravos em usinas de açúcar e álcool no próprio Estado nos últimos anos.
E isso quando esse “território” não se resume a barracas de lona montadas no acostamento de alguma rodovia com uma excelente vista para a terra que, por direito, seria deles. Em outras palavras, no Mato Grosso do Sul, a questão fundiária envolvendo comunidades indígenas provoca fome, suicídios e mortes.
O relatório “O Direito Humano à Alimentação Adequada e à Nutrição do povo Guarani e Kaiowá” será apresentado, nesta terça (16), às 14h, no Auditório 1 da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília.