Uma crônica sobre uma cidade e um filme

Por Toinho Castro

Lembro quando Aquarius começou…

Eu era uma criança e estava indo para a praia no fusca L, bege, com a minha mãe. No caminho, à nossa direita, vimos uma grande construção sendo erguida. Sabíamos que estava ali, avançando há algum tempo, mas de repente nos pareceu enorme. Se fez presente e comentamos sobre o que viria a ser. Por causa, certamente, da placa do Bompreço, rede de supermercados do Nordeste, concluímos que talvez fosse um novo supermercado. “Muito grande”, completou minha mãe. Seguimos para a praia e em muitos passeios como esse testemunhamos a construção do Shopping Center Recife, o primeiro da cidade, que cresceu pondo fim a um imenso manguezal que ocupara a área; como quase tudo que existia ali. Desde então Recife só cresceu; e, ironicamente, desapareceu.

Olhando daqui, da minha janela no Rio de Janeiro, para onde vim há 20 anos, arrisco dizer que tudo começou ali. Depois vieram os prédios ao redor do shopping, os condomínios, as portarias, as grades, as casas sumindo, os pequenos edifícios sumindo e a memória sendo sumariamente varrida do mapa. Aquilo espalhou-se como um vírus, num surto histérico abarcando bairro a bairro e culminou com a construção das duas torres gêmeas que hoje assombram a planura da bacia do Pina, um monumento ao descontrole imobiliário que destruiu o horizonte da cidade. Não vou nem entrar aqui no mérito das tenebrosas transações que movem tal mercado.

Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, é o filme da geração que testemunhou a cidade ser roubada pelas imobiliárias em detrimento da preservação da memória afetiva e cultural (separando as duas coisas só para ser mais enfático) do velho Recife dos sobrados assombrados de Gilberto Freyre, dos quintais com mangueiras, goiabeiras e pés de carambola. O Recife da batalha de Clara, a personagem de Sônia Braga (e Bárbara Colen, que interpreta a jovem Clara) que recusa-se a ceder o espaço da sua vida, aqueles metros quadrados infinitos como um aleph de Borges, à sanha ensandecida dos homens do business, os homens cinzentos de que fala o livro de Michael Ende, Momo e o Senhor do Tempo. Os homens.

Clara, ao negar e negar e negar que seu apartamento dê espaço ao “novo Aquarius” parece-me então uma dervixe, girando em torno do eixo da própria memória e repetindo não o nome de Deus mas os nomes dos seus, num rito de proteção. Seu marido morto, tia Lúcia morta, seus filhos enredados nas necessidades que o mundo impõe, seu irmão… não são apenas paredes e janelas que Clara, sozinha, protege. Ela protege um legado, um mundo que não quer morrer; ou que morrerá com ela. É sintomático que ela não permita que os homens da construtora atravessem o portal da sua casa. Eles ficam à porta, eles orbitam ao redor do apartamento, com sua pesada gravidade influenciam os acontecimentos na vida de Clara mas não penetram. Talvez em pesadelos, talvez sorrateiramente, à sua revelia, mas nunca com sua anuência.

Todos ali são parte de um sistema complexo, a família pernambucana, que engordou do açúcar dos canaviais. Em algum ponto foram todos moldados na máquina silenciosa da Casa Grande, preocupados com as joias da família… Numa sequência no tradicionalísssimo restaurante Leite Clara conversa com um amigo jornalista e vemos se descortinar as perigosas relações que contaminam as famílias, empresas e estado num contínuo cruzamento de linhas e linhagens. Memorável a cena em que o amigo de Clara sussurra que o jovem empreendedor da construtora é envolvido com igreja e diz isso como se estivesse falando da máfia. Porque está.

Mas enquanto uns são engrenagem outros fazem da própria vida um questionamento e um desmonte dessa máquina. Clara está no segundo grupo. O gosto pela arte, a independência, a marca do câncer, os discos na estante, o Clube das Pás fazem de Clara uma mulher contra as expectativas. Clara, a louca do Aquarius. O mundo terá que mudar ao redor dela porque ela não mudará. Numa cena emblemática Clara vê no cemitério uma ossada sendo recolhida de sua sepultura. Fim de tudo. Talvez ela pense “poderia ser eu”. Talvez pense “não sou eu”! Nick Cave, no seu brilhante 20.000 dias sobre a terra sentencia: Porque a memória é o que somos e a nossa alma e a própria razão de estarmos vivos estão atados à memória.

O prédio em que cresci, o edifício Inês, ainda resiste lá no Recife, com minha mãe e meus irmãos dentro porque a área ainda não é de interesse imobiliário. Mas é uma questão de tempo. Recordo que certa noite vimos um caranguejo atravessar solene a sala enquanto víamos TV. Aquilo me faz lembrar que ali mesmo era um mangue e aquele apartamento de térreo e primeiro andar o soterrou. Aquele quarto que eu amava, meu refúgio em que ouvi músicas e conversei com meus amigos, com Roberval, Ronaldo Bispo e o próprio Kleber era já algo que deixava para trás uma ruela de poucas casinhas mal iluminadas, a terra escura do mangue e os xiés.

Um filme como Aquarius pertence a cada um. Cada um fará sua leitura e descobrirá suas conexões. Aquarius é um filme que pede que contemos histórias, que falemos sobre nossas vidas e que, sobretudo, olhemos para as nossas vidas de um ângulo único, para refletir sobre onde e quando tudo começou a dar errado à nossa volta e sobre como, a despeito da dureza que nos cerca, poderemos resistir.

PS. Quantos textos diferentes eu poderia escrever sobre Aquarius?!

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