Por Leonardo Fuhrmann, no CEERT
Especialista na história de quilombos e mocambos nas Américas, o professor de História Social do Trabalho Flávio dos Santos Gomes destaca que existem no Brasil netos de negros que foram escravizados, continuam vivos e ouviram as histórias do tempo em que seus antepassados eram cativos.
Por isso, aponta as memórias desse período como vivas em nossa sociedade. Em seu livro mais recente, Mocambos e Quilombos – uma história do campesinato negro no Brasil – o professor, que dá aulas nos programas de pós-graduação de arqueologia do Museu Nacional e de História Comparada da UFRJ, traz a história de formação dessas comunidades até o presente, para explicar como esses povos remanescentes permaneceram vivos com sua identidade cultural própria, mesmo com as influências de outras manifestações que se incorporam. “A música de Pena Branca e Xavantinho é tão expressão da cultura afrobrasileira quanto os blocos de Salvador, como o Ilê Aiyê e o Olodum”, comenta.
Fórum – Como você vê o número de comunidades remanescentes de quilombos existentes hoje?
Flávio dos Santos Gomes – Muita gente me pergunta sobre o grande número de comunidades remanescentes de quilombos existentes hoje. O governo e as ONGs que atuam na área falam em cerca de 5 mil. É certo que você não vê tantas notícias sobre elas nos jornais das décadas de 1860, 1870 e 1880. Mas havia muitas comunidades pequenas, algumas delas com entre 40 e 80 famílias, num total de 150 a 800 pessoas. Dentro desses grupos, era difícil saber quem havia sido escravo e era considerado fugitivo. A experiência de aquilombamento no Brasil é diferente do que foi no Suriname, por exemplo, e mais próxima da Colômbia. Houve a formação de um campesinato negro, que contava não só com os fugitivos.
Fórum – E como esses grupos permaneceram?
Gomes – No período pós-emancipação, esses grupos migraram, inclusive atrás de proprietários rurais que lhes ofereciam melhores condições de trabalho. O que era um quilombo se mistura, passa a ter outras dimensões. Os próprios nomes dessas comunidades são muito significativos, com expressões como negros, crioulos e pretos no nome, além de santos típicos da devoção dos afrobrasileiros. É preciso lembrar que o cristianismo já havia chegado na África nesse período e muitos tinham influência do catolicismo antes de vir para o Brasil.
Fórum – Por que não tivemos a visibilidade desses grupos?
Gomes – Nós temos um movimento popular importantíssimo no meio rural que é o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Mas ainda existe uma dificuldade muito grande de discutir o componente étnico e racial da questão agrária. Na verdade, não é só com o campesinato. No meio urbano, problemas de moradia, violência, educação e saúde atingem a população negra de uma forma diferente dos demais grupos, mais grave. Os remanescentes de quilombos têm um papel importante na formação de um campesinato no Brasil inteiro, tanto que hoje temos comunidades reconhecidas do Rio Grande do Sul ao Amapá.
Fórum – Os grupos de quilombolas continuaram se formando depois da emancipação?
Gomes – Existia um campesinato itinerante, com grupos de famílias ou pessoas que buscavam oportunidades em outros lugares. Isso mesmo depois da emancipação. Existe o exemplo da experiência de Valença (RJ), quando, em 1891, ex-cativos deixaram uma fazenda onde eram tratados de forma violenta e se mudaram para outra que havia sido recém-comprada. Havia quilombos que eram volantes, sobre os quais é muito difícil ter um registro mais preciso. Dois negros fugiam de uma fazenda e se encontravam com outros cinco que vinham de outra, depois se dividem em três. Só aí são cinco núcleos diferentes.
Fórum – O que faz com que um grupo possa ser considerado remanescente hoje?
Gomes – O que caracteriza essas comunidades é o trabalho coletivo e familiar, além da dimensão cultural. Mas isso não pode ser visto de forma folclorizada. O jongo, por exemplo, é uma marca de identidade dos quilombos do Sudeste. Você não vai ver essa manifestação da mesma forma na Bahia e em Pernambuco. Um ponto em comum é a religiosidade popular, com uma característica de intimidade com os santos. Você tem aquele caso curioso do Cafundó, a pouco mais de 100 quilômetros do centro da cidade de São Paulo, onde ainda sobrevive um vocabulário de origem africana, usado para rituais.
Fórum – Como alguns quilombos sobreviveram em regiões valorizadas?
Gomes – Havia uma situação de terras devolutas no século XIX que pode soar quase surrealista nos dias de hoje. A região dos Lagos, no Rio de Janeiro, tem 15 comunidades. A gente pensa que lá só tem argentinos, mas existe uma economia camponesa. Uma economia baseada em pequenas roças. As pessoas têm uma noção de que os quilombos historicamente eram isolados, mas os estudos recentes os reconhecem como integrados a sociedades locais, com trocas e negócios com outros grupos e comerciantes.
Fórum – Por que alguns sobreviveram inclusive em grandes cidades?
Gomes – A escravidão era um fenômeno eminentemente rural, pois eles [escravos] foram trazidos para o Brasil para trabalhar nas lavouras.
Mas é preciso lembrar que o Brasil recebeu entre 40 e 45% dos africanos que foram mandados para as Américas pelo tráfico negreiro. O total de vítimas desse tráfico é estimado entre 15 milhões e 20 milhões de pessoas. Por isso, havia também cidades escravistas, como o Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Era algo que acontecia também em Havana (Cuba), San Jose (Costa Rica) e Lima (Peru). Havia mão-de-obra escrava no setor serviços. Por isso, havia também uma fuga de escravos para regiões suburbanas. Quando lecionei na Universidade Federal do Pará (UFPA), tínhamos dados sobre o aumento das fugas na época do Círio de Nazaré. Eles fugiam para participar das festas. Havia os casos dos que fugiam e voltavam, saíam para passar o fim de semana. Mas você tem regiões que na época eram fora do centro das cidades onde hoje há comunidades quilombolas. É o caso do Sacopã, na Lagoa Rodrigo de Freitas (RJ). As cidades foram crescendo e incorporaram seus arrabaldes.
Fórum – Houve um redescobrimento de comunidades tradicionais?
Gomes – Com o êxodo rural, grupos menores passaram a ser formados basicamente por crianças e idosos. Quando essas crianças cresciam, também se mudavam para as cidades. Isso provocou o desaparecimento de muitas comunidades tradicionais, mas o Poder Público na época não enxergava esses agrupamentos como tal. É um fenômeno que pode ser verificado também com os indígenas. Muitas comunidades consideradas de caiçaras, por exemplo, são de antigas tribos. Nos anos 1980, eram 200 mil indígenas no Brasil oficialmente. Hoje, são 1 milhão. Além da diminuição de mortes por epidemias, existe um reconhecimento que o índio não é só aquele que usa os trajes rituais do Alto Xingu. Além de ser característica específica de um determinado povo, aquela imagem dos índios pintadores é de um ritual que acontece apenas uma vez por ano.
Fórum – Como se deu a formação de novos grupos aquilombados após a emancipação?
Gomes – O crescimento de Canudos foi um exemplo das migrações de antigos escravos. Como o Antônio Conselheiro era contra a escravidão, muitos quilombolas se concentraram em torno dele. Da mesma forma com o Contestado no Sul. Era uma população que juntava negros, indígenas e alguns brancos. Assim como Cuba, o Brasil tinha uma grande população de negros livres, de alforriados e filhos libertos. A partir de 1871, tinha os que não eram escravos por conta da lei do Ventre Livre. Quando a escravidão termina oficialmente, eles já estavam próximos de completar 18 anos. Não era evidente quem era escravo fugido e quem era livre.
Fórum – Qual a importância de Palmares nessa história?
Gomes – O quilombo que mais durou como comunidade de resistência nas Américas foi Palmares. Mas San Basílio de Palenque, na Colômbia, além de ser o segundo mais longevo, se mantém vivo até hoje.
Fórum – Como você vê as reações às demarcações de terras para os povos tradicionais?
Gomes – Existe um debate político, sem dúvida, com pessoas que acusam os outros de inventarem que são remanescentes de quilombos, como existe com a política de cotas, aliás. Mas não é verdade. Tanto que as denúncias de fraudes são raríssimas em relação à amplitude dessa política. Mas a experiência da escravidão ainda é muito viva em nossa sociedade. Você imagina que qualquer pessoa de origem negra que tenha hoje em torno de 80 anos pode ter convivido com um avô que foi escravo. Ter ouvido histórias dele do tempo em que foi cativo. Uma pessoa que nasceu em 1870 ainda era escrava. Suponha que ela morreu aos 80 anos, em 1950. Um neto nascido em 1935 conviveu com essa pessoa por quinze anos, ouviu suas histórias. Hoje, é uma pessoa de 80 anos. Ou seja, não é algo tão distante temporalmente de nós como parece.
Fórum – Por que falamos em cultura africana e não em culturas?
Gomes – As pessoas costumam dizer que Salvador é a África no Brasil, mas não é bem assim. A maior concentração de escravos no começo do século XIX era no interior de Minas, quando, depois da decadência das minas, a região passa a se dedicar à produção agrícola. A música dos irmãos Pena Branca e Xavantinho – nascidos, respectivamente, no interior de São Paulo e Minas – é tão expressão da cultura afrobrasileira quanto os blocos de Salvador, como o Ilê Aiyê e o Olodum. Todos são invenções culturais da diáspora, como o reggae jamaicano e o jazz norte-americano. Os escravos trazidos para o Brasil eram das três regiões de onde os negros eram traficados. A diferença entre essas manifestações está na maneira como elas se desenvolvem no continente americano. A capoeira, como conhecemos, não existia na África. Tampouco nas comunidades rurais, foi algo que se desenvolveu dentro da sociedade urbana. As manifestações ancestrais não se apagam na expressão das populações, mas também não ficam isoladas. Agora, por exemplo, a gente tem um crescimento do movimento evangélico e eles, bem ou mal, vão receber influências da cultura afrobrasileira quando estiverem inseridos dentro de uma comunidade negra.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.