A Arábia Saudita é aqui

Por Guilherme Arruda Aranha, em Justificando

Em março de 2014, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou o resultado de um trabalho segundo o qual 58,5% dos brasileiros acreditam que “se mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros” e 26% (1/4 da população brasileira) entendem que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”.

Agora, em setembro de 2016, uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha revela um cenário ainda pior. Trinta por cento dos brasileiros, entre homens e mulheres (quase 1/3 da população), concordam com a frase: “A mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”. Trinta e sete por cento, concordam que “Mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”.

Os comentaristas de plantão das redes sociais e sites de notícias confirmam a banalização da barbárie. Mesmo quando não fazem a apologia direta do estupro (e alguns fazem), tendem a culpabilizar a vítima em alguma instância. Já li, por exemplo, que “a culpa pelo estupro é do estuprador, assim como a culpa pelo assalto é do assaltante, mas nem por isso dormimos com a porta destrancada”, dando a entender, por analogia, que as mulheres não devem mesmo “facilitar” usando roupas insinuantes.

Há, também, aqueles que ignoram o que é a política, o direito e a moral e, ingenuamente, acreditam que a única forma de resolução dos conflitos sociais é a força bruta: bastaria colocar as mulheres no judô, bastaria que aprendessem umas técnicas de autodefesa (como se todas quisessem ou pudessem fazê-lo) ou, quem sabe, que comprassem uma arma e saíssem por aí atirando nos estupradores como se a vida fosse um filme de ação. Ignoram que não há soluções individuais para problemas coletivos. Isso sem mencionar os que ressuscitam humoristas sem talento para fazer troça, afirmando que se a mulher for feia então o estupro não é um crime mas uma generosidade.

Uma parcela expressiva da população parece ser incapaz de perceber que as causas do elevado índice de estupro em nosso país (um a cada 11 minutos, em uma estimativa conservadora já que nem todas as vítimas têm coragem de denunciar a agressão da qual foram vítimas) não são o resultado da mente doentia de psicopatas e delinquentes sexuais incontroláveis. O estuprador comum não é um doente, mas apenas um machista. Em outras palavras: a maioria dos estupradores não age por compulsão sexual doentia mas são homens “comuns”, respaldados por uma mentalidade machista que banaliza um crime grave, contra a liberdade sexual, definido no art. 213 do Código Penal.

Continua intacta, em nosso país, a lógica perversa que trata a vítima como culpada e considera o estupro um “corretivo” para as mulheres “que não se dão ao respeito”. E o que seria a mulher que não se dá ao respeito? Na visão machista, toda aquela que não se encaixa no estereótipo de gênero, toda aquela que não é mãe, esposa, recatada e do lar. Toda diversidade é, assim, excluída do merecimento de respeito.

O que se esconde atrás dessa lógica é simples: a sociedade machista não suporta que as mulheres vivenciem a sua liberdade sexual com autonomia, ainda que se trate do exercício de direitos juridicamente protegidos. As que ousam fazê-lo são logo rotuladas de “vulgares”, “vadias”, “vacas”, “periguetes” e, num piscar de olhos, são transformadas em co-autoras das agressões que vierem a sofrer.

Em pleno século XXI nós, brasileiros, permanecemos inacreditavelmente mais próximos da ditadura teocrática saudita do que das democracias ocidentais. Duvida? O instituto Pew Research Center publicou pesquisa em janeiro de 2014 revelando que 53% dos sauditas entendem que uma mulher não pode escolher livremente o que vai vestir e 63% deles acreditam que a roupa mais apropriada para as mulheres em público é o niqab, véu que cobre todo o corpo deixando apenas os olhos de fora. Ainda que ninguém, por estas bandas, esteja defendendo o niqab (melhor não dar ideia), não se pode negar a semelhança do discurso. As roupas são outras porque outras as culturas, mas a estrutura do pensamento machista é essencialmente a mesma.

A modificação de padrões sócio-culturais da conduta de homens e mulheres, com o objetivo de eliminar preconceitos e estereótipos, de reverter o machismo brasileiro e de erradicar o estupro em nosso país, associa-se a uma outra luta, igualmente dura, pela construção e solidificação da cultura democrática. O pensador italiano Norberto Bobbio (1909-2004) já sabia disso. Em texto de 1984 afirmava: “apenas a democracia permite a formação e a expansão das revoluções silenciosas, como foi por exemplo nestas últimas décadas a transformação das relações entre os sexos – e que talvez seja a maior revolução dos nossos tempos”.

Mudar mentalidades e padrões comportamentais, porém, não é fácil. Requer espírito crítico e capacidade de reflexão, afinal somente a sociedade que exerce a arte de questionar pode encontrar respostas para os problemas que a afligem. Esse processo, contudo, exige persistência. Sua escala não é a dos dias e a dos anos, mas das décadas e, às vezes, dos séculos. Isso não é motivo para desânimo. Sigamos em frente por mais democracia, igualdade e respeito à dignidade das mulheres. Sigamos em frente por um mundo livre do machismo e sem o estupro de uma única mulher, mesmo que ela esteja andado pelada em plena Avenida Paulista.

Guilherme Arruda Aranha é professor da Faculdade de Direito e do Curso de Relações Internacionais da PUC/SP, autor do livro “Introdução Crítica ao Direito” (Ed. Paulus).

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