Cobertura jornalística enviesada, que retrata a vítima como algoz, só contribui para perpetuar o problema
Por Claudia Belfort, na Ponte
Existe uma preocupação esporádica e seletiva no que tange ao indecente índice de homicídios do Brasil. Dados do relatório anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que serão divulgados em novembro, antecipados hoje (28/10) pelos principais veículos de comunicação do País, mostram que, em números absolutos, o Brasil registrou mais homicídios em 2015, com 58,3 mil casos, que a Síria, com 55.219 ocorrências.
Google, o delator
A mesma pesquisa usando a palavra “homicídio” revela que, além de esporádico, o problema é tratado de forma fria e distante. O resultado traz, com poucas variações, uma lista notícias sobre números e índices, oriundos de relatórios elaborados por governos ou organizações não governamentais.
Os motivos para tal descaso dão seus sinais no perfil dos grupos mais suscetíveis às mortes por homicídio. O Atlas da Violência 2016, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e também pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FPSP), mostra que jovens negros e com baixa escolaridade já sabem: são eles as principais vítimas. É a violenta morte deles que eleva o Brasil ao vexatório primeiro lugar em assassinatos no mundo. Fato corriqueiro, e por isso mesmo escandaloso, ignorado cotidianamente no nosso noticiário.
Lucas não mora em Baltimore, logo não existe
A crueldade do desprezo pelo assassinato de indivíduos desse grupo social pode ser comprovada também numa outra busca via Google e sites de veículos de imprensa. Pesquisar a frase “jovem negro é assassinado” trará majoritariamente ocorrências nos Estados Unidos, onde parte da sociedade protesta contra esse tipo de crime, levando governadores ou até o presidente a se pronunciar. Aliás, é bem o oposto do que se passa no Brasil, sem a cobrança da imprensa, nossas autoridades simplesmente se calam. Se falam, criminalizam a vítima. E é essa narrativa que ganha espaço no noticiário convencional, especialmente nos sensacionalistas.
Nas eventuais ocasiões em que se fala sobre assassinatos de negros no Brasil, o fato é tratado a partir de estatísticas divulgadas por organizações comprometidas com a redução do número de homicídios. Dados do Mapa da Violência, elaborado desde 1998 pelo sociólogo Julio Waiselfisz, por exemplo, revelam que 23,1 mil jovens negros de 15 a 29 anos foram assassinados em 2012, 63 por dia, “um a cada 23 minutos”. O título viralizou. E só. Falou-se muito do quê, sem mostrar quem. Nesses números estão Matheus, Allan, Lucas, jovens, negros, mortos pelo Estado, invisíveis para a população brasileira. Eles não vivem em Baltimore, nem em Fergusson, suas histórias não chegam prontas das agência de notícias.
Matheus, que Matheus?
No dia 01 de outubro, a polícia de Los Angeles matou a tiros um jovem negro, de 18 anos, Carnell Snell. No dia 01 de outubro, a polícia de São Paulo atirou num jovem negro de 24 anos, Matheus Freitas, morador do Grajaú, que morreu dois dias depois. Carnell foi notícia em todo país. E Matheus? Com exceção de nós, da Ponte Jornalismo, e de alguns veículos que republicam nossos textos, ninguém se importou.
Ao tratar a questão dos homicídios no Brasil dessa maneira, nossa imprensa serve-se do árduo trabalho de pesquisadores, que se debruçam anualmente a elaborar relatórios e índices, para conferir a ela mesma um lustre de preocupação social. Uma falácia que se desnuda em editoriais de apoio à redução da maioridade penal, cujo alvo é o grupo dos que mais morrem e dos que menos matam, e na cobertura de violência que confere aos brancos e ricos o papel de vítimas e aos negros e pobres o de carrascos.
Pacto para uma cobertura honesta
As estatísticas gerais são importantes, chamam atenção das autoridades para a urgência de um pacto nacional de redução de homicídios – iniciativa tratada com desdém pelo atual ministro da Justiça, Alexandre de Moraes – e para elaboração de políticas públicas. Já a combinação da divulgação de dados assustadores com uma cobertura jornalística enviesada, que repetidamente mostra as vítimas como algozes, é um perigoso fermento para o racismo, para criminalização das periferias, para a letalidade policial, para exclusão social e para a manutenção dos índices de homicídios. Um pacto nacional para redução de homicídios precisa também de um pacto nacional para uma cobertura honesta das partes que compõem o todo.
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Adão, cansado de ver PMs matando jovens negros. Foto: Daniel Arroyo/Ponte.