A esquerda precisa de um “impulso de despressurização”. Entrevista especial com Bruno Cava

Patricia Fachin – IHU On-Line

Um dos problemas centrais da esquerda brasileira não é a sua “desunião” ou o fato de “estar perdida”, ao contrário, há unidade em “excesso”, e basta ver que a “esquerda brasileira ainda é muito petista”, diz Bruno Cava à IHU On-Line. Nos dias de hoje, essa unidade, critica, “se pretende construir com base num clima de pânico moral, que vem saturando o ambiente de ativismo e movimento, e que converte a ação e discussão políticas numa grande moral de pertencimento e terapia coletiva, a que a todo instante se tem de prestar contas e estar em dia”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Cava reflete sobre a atuação da esquerda na última década no país e frisa que, “ironicamente, essa guinada vermelha nos últimos anos foi tão cheia de adesões quanto mais vazia era a guinada à esquerda dos governos”, o que levou a um “abismo entre realidade e discurso”. Como consequência desse processo, destaca, “em vez de olhar para os próprios problemas, a esquerda prefere atribuí-los a causas externas, projetando um inimigo terrível que sempre parece emergir de alguma profundeza sinistra”. E ironiza: “Diante desse monstro do pântano, a unidade deveria ser imposta como necessidade histórica a qualquer um que preze os direitos, a democracia, o mundo: contra uma onda conservadora, contra a chocadeira de um fascismo originário, contra o Partido da Imprensa Golpista, contra um golpe imperialista norte-americano e a restauração do Consenso de Washington. Não importa, é sempre alguma entranha que é orgânica à sociedade, que estaria vindo à tona para ameaçar a civilização das esquerdas e a sua missão pedagógica”.

Para ele, a retórica acerca da “nova direita” tem sido utilizada “para se repetir o velho esquema na América Latina dos anos 1990 entre neoliberais globalizantes e progressistas nacionalistas, que ainda se manteria sob nova roupagem”. Porém, adverte, “na realidade, é possível identificar mais nuances e tendências amalgamadas num Mauricio Rodas (Equador) ou numa Soledad Chapetón (Bolívia), ou em Marina no Brasil, do que nas assumidas ‘novas esquerdas’, que parecem seguir numa linha reta a partir do velho progressismo, desenvolvimentista e hegemonista, uma linha reta sem nem sequer olhar para os lados”.

Cava também comenta as ocupações que têm se proliferado não só nos colégios, mas também nas universidades, e adverte que o “desafio” e o “impasse” nessas manifestações “é como lidar com aparelhamentos vindos de grupos ligados à União Brasileira dos Estudantes Secundaristas – UBES, União Nacional dos Estudantes – UNE, União da Juventude Socialista – UJS, estruturas hierárquicas e engrenadas no sistema político, e cuja chegada pode acabar drenando as energias e interrompendo o processo”.

Bruno Cava é graduado e pós-graduado em Engenharia de Infraestrutura Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA, graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e mestre em Direito na linha de pesquisa Teoria e Filosofia do Direito. É blogueiro do Quadrado dos loucos e escreve em vários sites; ativista nas jornadas de 2013 e nas ocupas brasileiras em 2011-2012; participa da rede Universidade Nômade e é coeditor das revistas Lugar Comum e Global Brasil.

Nesta quarta-feira, 30-11-2016, ele estará lançando seu novo livro, intitulado “A Terra Treme; leituras sobre o Brasil de 2013 a 2016” (AnnaBlume, 2016), organizado conjuntamente com Marcio Pereira. O lançamento será no Museu da República, no Rio de Janeiro.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que leitura você está fazendo da ou das esquerdas hoje no país? Concorda com aqueles que dizem que a esquerda está perdida? Por quais razões isso acontece?

Bruno Cava – O problema não é que está perdida, é que nos últimos anos “se achou demais”. Da mesma maneira que o problema das esquerdas não é que haja unidade de menos, mas em excesso, está unida demais. Essa unidade hoje se pretende construir com base num clima de pânico moral, que vem saturando o ambiente de ativismo e movimento, e que converte a ação e discussão políticas numa grande moral de pertencimento e terapia coletiva, a que a todo instante se tem de prestar contas e estar em dia. Recentemente, a esquerda se reencontrou enquanto tal, e isto se deu numa reunião em nome da defesa abstrata de bandeiras e símbolos. Nisso, se reconciliou inclusive com a figura paterna de sua história, o PT, precisamente no ponto mais baixo de sua trajetória.

O marco inicial dessa grande reunião inter-esquerdas foi a grande manifestação de 20 de junho de 2013, que se espalhou por centenas de cidades. Naquela manifestação-monstro, em meio às jornadas de junho, ficou claro que muitos dos indignados nas ruas e redes não estavam compartilhando as bandeiras tradicionais das esquerdas, e que buscavam outros referentes para apoiar as demandas, insatisfações, angústias. Ao contrário, essas bandeiras eram rechaçadas, às vezes, com violência. Nos protestos de 2013, a tentativa de adesão ostensiva de grupos organizados de esquerda estava sendo processada como mais um signo do mesmo sistema político-representativo em estado de falência, como uma tentativa de aparelhamento, de corrupção de um movimento autônomo, de pretensão a guiar as massas. A atitude das esquerdas foi bastante paradoxal: quando a revolta não passa pelos canais homologados por seus discursos, líderes e identidades, se condena… a revolta. O caso reforçou a denúncia de junho por parte da esquerda de governo, que viu seus índices de popularidade despencarem junto com os de toda a classe política. A multidão de junho estava em aberto, em estado de fluxos, mas justamente essa polivalência, essa fluidez, foi interpretada de primeira hora como um sério defeito, um “perigo”, em especial por intelectuais e analistas que sequer estiveram presentes.

Slogans reativos

Dali por diante, começa a história da “guinada vermelha” como reação a junho, o que vai engrossar a campanha de reeleição de Dilma num momento decisivo do segundo turno, protagonizar as culture wars [guerras culturais] entre petistas e coxinhas nos três anos seguintes, a “campanha contra o golpe” em 2016 e vários slogans reativos e defensivos que não param de se multiplicar em modo contínuo. Ironicamente, essa guinada vermelha nos últimos anos foi tão cheia de adesões quanto mais vazia era a guinada à esquerda dos governos, abrindo um abismo entre realidade e discurso. Isto levou à passagem de uma difícil gestão de expectativas a uma impossível gestão de frustrações, montando um mecanismo infernal no plano de afetos, que a partir daí levou as esquerdas a darem voltas sobre si numa sequência impressionante de duplos impasses, de alternativas igualmente piores. O horizonte se rebateu para o negativo e as expressões descritivas ganharam ares catastróficos: queda livre, tempestade perfeita, golpe de estado, fim do mundo. Tudo isso ofuscou a análise, o que derrubou ainda mais a consistência das que são feitas à esquerda do espectro político.

O inimigo

A consequência foi que, em vez de olhar para os próprios problemas, a esquerda prefere atribuí-los a causas externas, projetando um inimigo terrível que sempre parece emergir de alguma profundeza sinistra. Diante desse monstro do pântano, a unidade deveria ser imposta como necessidade histórica a qualquer um que preze os direitos, a democracia, o mundo: contra uma onda conservadora, contra a chocadeira de um fascismo originário, contra o Partido da Imprensa Golpista, contra um golpe imperialista norte-americano e a restauração do Consenso de Washington. Não importa, é sempre alguma entranha que é orgânica à sociedade, que estaria vindo à tona para ameaçar a civilização das esquerdas e a sua missão pedagógica. Uma explicação que não explica nada. Ao contrário, reduz a complexidade histórica, o desencadeamento dos fatos em múltiplas temporalidades, a uma simplória dicotomia normativa entre “nós” e “eles” que, por isso mesmo, ganha difusão fácil entre os já convencidos da teodiceia implícita que a anima. A realidade é assim dobrada em dois mundos, o mundo real das relações de força, e o mundo fantasmático da luta do bem (esquerda) contra o mal (direita), o que trucida o desejo de resistir e lutas, porque ele deixa de ser uma paixão sensível conectada ao real para tornar-se um afeto angustiado, paranoico, um eu cercado por espectros em todo canto, um desejo rebaixado que se torna facilmente histérico e choramingão quando se é virtualmente “esmagado” pelos fatos.

Enquanto isso, outros grupos políticos, que não estavam em junho de 2013, como o Movimento Brasil Livre – MBL ou o VemPraRua, resolveram produzir novas superfícies a partir dos abalos do terremoto de junho, e conseguiram canalizar pelo menos uma parte da insatisfação generalizada, da justa indignação. Assim como conseguiram aqueles que se construíram eleitoralmente sobre o sentimento antipolítico (e não contra ele), como João Dória, em São Paulo, ou Alexandre Kalil, em Belo Horizonte, apenas para citar dois. É duro, mas necessário, reconhecer que eles tiveram um mérito, e que as esquerdas têm algo a aprender com um MBL ou um Dória. Mas o mais triste da nossa conjuntura é presenciar como o desdém pelo “politicamente correto”, a denúncia de uma ética solidária pelos pobres e dos programas sociais, e até o anticomunismo, tudo isso que tradicionalmente é uma arma da direita, ganharam um momento de verdade, na medida em que foram mobilizados da maneira mais cínica possível para alimentar a “guerra das narrativas” a que a esquerda se entregou de corpo e alma. Uma “guerra de narrativas” que já nasceu perdida, porque se enredou na própria ficção. Não dá para esquecer a história do governo Dilma e tentar buscar alguma verdade abstrata do que deveria ou poderia ter sido, como se houvesse um ideal mais valioso a ser resguardado apesar de tudo. A maioria não está caindo nessa, talvez porque tenha problemas o bastante para se dar ao luxo de não ser pragmática com a verdade. Me parece que não é hora de continuar no círculo vicioso das lamentações, mas sair do circuito de imagens idealizantes e partir para o terreno da reinvenção. Mas para isso, também é preciso perder-se, desunir-se, desorientar-se conscientemente de ídolos engessados demais, pesados demais.

IHU On-Line – Recentemente você mencionou que “a nova esquerda se fechou numa bolha e não soube dialogar; caiu na guerra de narrativas e acabou isolada”. Em que sentido o diálogo falhou?

Bruno Cava – Os anúncios de uma nova esquerda para renovar o cenário não estão conseguindo bancar a aposta, não atingem velocidade de escape para sair da órbita da existente. É curioso porque, com o desmoronamento do ciclo progressista na América do Sul, alguns analistas de política adotaram a chave fácil da ascensão da “nova direita“, isto é, o surgimento de uma versão pós-moderna para os mesmos arranjos político-econômicos antipopulares entre elites nacionais e o capitalismo global.

Velhos esquemas

No fundo, fala-se em “nova direita” para se repetir o velho esquema na América Latina dos anos 1990 entre neoliberais globalizantes e progressistas nacionalistas, que ainda se manteria sob nova roupagem. Porém, na realidade, é possível identificar mais nuances e tendências amalgamadas num Mauricio Rodas (Equador) ou numa Soledad Chapetón (Bolívia), ou em Marina no Brasil, do que nas assumidas “novas esquerdas“, que parecem seguir numa linha reta a partir do velho progressismo, desenvolvimentista e hegemonista, uma linha reta sem nem sequer olhar para os lados. Mais que diálogo, o caso é capacidade de renovação, porque as condições materiais para essa renovação já estão presentes: uma lógica social mais intensa, conjuntiva e de mobilização permanente, tendendo frequentemente ao tumulto em meio à última versão da crise do capitalismo, que se agrava. Ao se apresentar já formatada, armada e vestida dos pés à cabeça tal qual Minerva, com plataforma eleitoral e tudo, com um lacaniano “candidato suposto”, para então “trazer”, obter a adesão de grandes números de eleitores, com isso já se está inviabilizando qualquer diálogo produtivo, qualquer abertura para um preenchimento pelas próprias dinâmicas do tecido social, que não se veem representadas por esse caminho.

O mesmo vale para as dinâmicas de mobilização que repetem as mesmas fórmulas, as mesmas dicotomias, infatigavelmente, como se fosse possível inaugurar um ciclo de lutas por decreto. Não adianta proclamar o cataclisma da semana e urgir para que todos acorram às ruas senão… Deleuze tinha uma frase ótima sobre isso: mexer-se demais também pode espantar os devires.

IHU On-Line – Que leitura você faz das eleições municipais no Rio de Janeiro e da ascensão de Crivella? A eleição de Crivella pode ser explicada por conta desse isolamento da esquerda?

Bruno Cava – Crivella se estabeleceu dos arranjos políticos do projeto lulista no Rio de Janeiro, ao longo da década de 2000. Freixo vem de uma dissidência do PT no mesmo período, e de lá para cá se firmou como uma das principais vozes opositoras à coalizão liderada pelo PMDB-PT que governa o município, bem como uma referência para as lutas na cidade e a recusa da lógica miliciano-capitalista de controle dos territórios. Em 2012, a campanha de Freixo interceptou correntes de indignação que estavam já apontando para o levante de junho do ano seguinte, e ele representava, ainda que no limitado plano eleitoral, um elemento antissistêmico. Vale lembrar que, em 2014, a soma dos nulos/brancos e abstenções já havia ficado à frente do primeiro lugar na eleição para governador, e o candidato Tarcísio, pelo mesmo PSOL, havia emergido praticamente do nada a mais de 10% dos votos válidos.

A bolha universitária e cultural

Como é possível que, dois anos depois, numa conjuntura em que o rechaço àquela coalizão de governo e no ápice do sentimento antipolítico, Freixo pode ter sido derrotado por um candidato em boa medida insider ao poder constituído? Em parte, a adesão que Freixo e o PSOL no Rio de Janeiro prestaram à “guerra de narrativas” do final do governo Dilma e do PT agonizante, o colocou na contramão de toda a imagem de oposição outsider que ele havia conquistado. Esse partido ainda nutre uma relação estranha, quase edipiana, de amor e ódio com o PT, e a oscilação entre um e outro acaba prejudicando-o nas duas pontas. E em parte, a própria dinâmica cada vez mais autocentrada da esquerda, presa numa identidade narcísica e paranoica, e no Rio isto significou a formação de uma bolha universitária e cultural, com poucas exceções.

A percepção nesta última eleição do Rio, é que ou você votava em Freixo ou era burro, irresponsável, estúpido, cúmplice fascistoide, ou um fantoche das igrejas evangélicas, das milícias: essa foi a mensagem transmitida pela campanha freixista. Um duplo impasse, porque Freixo teve as suas melhores votações nos bairros mais ricos, os que nos anos anteriores concentraram os panelaços anti-PT, justamente o que seus apoiadores não cansaram de ridicularizar, de desprezar, de tachar de coxinha, e as piores votações nas regiões mais pobres, que a esquerda, no discurso, propõe considerar como áreas prioritárias de governo. Sobre isso, remeto às análises bem ponderadas de dois entrevistados aqui no IHU, Marcelo Castañeda e Roberto Dutra Torres Júnior. Então, apesar da conjuntura originalmente favorável, e de ainda contar com o reforço de última hora da Globo, a candidatura de Freixo não magnetizou a indignação contra o establishment, nem o sentimento antipolítico, e muito menos dos mais pobres. Novamente irônico, porque as esquerdas atribuem aos pobres que não votam nela uma “alienação ideológica”, enquanto padece de um processo de alienação real, em relação às forças populares. O PSOL desperdiçou uma grande oportunidade.

IHU On-Line – Ainda sobre as eleições municipais, muitos consideram que a derrota do PT representou e, de certo modo, gerou uma crise para a esquerda em geral. Qual é o peso do resultado das eleições para a esquerda?

Bruno Cava – A pergunta usa uma palavra muito precisa: peso. Gerou uma crise porque a esquerda brasileira ainda é muito petista. O fato da crise do PT ser sentida como crise das esquerdas, levando a todo tipo de angústia, é sintomático. O antipetismo é policiado, mesmo quando vem da própria esquerda, dos anarquistas, dos autônomos. Existe uma obsessão interna às esquerdas de não ser identificado à direita, de ainda pertencer a uma imaginada comunidade em que todos nutririam alguns princípios comuns. O petismo sabe mobilizar essa percepção, ainda que durante 13 anos tenha governado no mais desencantado realismo político, sem qualquer concessão a “minorias com projetos ideológicos irreais”, para citar a ex-ministra chefe de Dilma. É dessa premissa principiológica que hoje ainda se escuta, apesar de todos os sinais, a insistência em “traçar a linha”, em não abrir a guarda aos fascismos. Dá-se demasiada importância a um suposto poder maligno dos fascistas de corromper as mentes e nos tirar da linha justa, o que por sua vez acaba assanhando políticos e intelectuais que performam essa direita raivosa, estabelecendo uma dialética vazia com a esquerda cuja soma é zero.

Depois da eleição, o que se vê, de um lado, é reorganizar-se para 2018 com a aposta que o agravamento da crise vai gerar novas oportunidades para a população descontente; de outro, um segmento mais jovem do PT pretende reunificar uma nova esquerda a partir de uma agenda eleitoral. A miséria dessas tentativas pode ser medida pelo fato que ambas as iniciativas convergem em Lula como candidato natural para realizar esse “retorno às origens” redentor. O plano B é Ciro Gomes. Nesse sentido, as “novas esquerdas” brasileiras ainda estão distantes mesmo de tentativas como a do Podemos, na Espanha, que apesar de tudo trouxe caras novas, uma gramática diferente e alguma conexão com a ecologia de movimentos do ciclo global de lutas.

IHU On-Line – Que narrativas ou ações a esquerda ou as esquerdas têm que adotar para sair dessa “bolha” de isolamento ou da crise?

Bruno Cava – Eu diria que não só as esquerdas, mas todos que lutamos pela transformação do mundo precisamos de um impulso de despressurização. O ambiente de ativismo e organização está saturado de sobrecargas paranoicas, de cobranças, de angústias, de maneira que qualquer passo está sempre errado, sempre carregado de culpas. Um pouco de possível, por favor, diria Deleuze. É um momento tropicalista, de esquecimento ativo, o que envolve práticas de reinvenção conjugadas com provocações dolorosas, e que terá seu custo de desunião, dissenso e polêmica. Não se vai reinventar nada preso a círculos terapêuticos que buscam reconciliar pontes de maneira obsessiva, como uma moral de rebanho. É preciso também sustar o cheque em branco que o PT sempre teve, em maior ou menor grau, diante das esquerdas, de maneira que o PT nas eleições e no poder pode tecer as alianças que bem entender, adotar qualquer tipo de governabilidade, e até esmagar lutas e reprimir manifestantes, mas só ser criticado até certo ponto, até o ponto que não lhe cause dano, ao mesmo tempo que pode nos acusar o tempo todo de fazer o jogo da direita, de sucumbir ao neoliberalismo, de ser ressentido porque o critica.

Por essa lógica, todas as alternativas se afunilam para 2018, numa convergência novamente eleitoral ao redor do PT, o que vai apenas dar mais uma volta nos parafusos que comprimem os nossos cérebros, como diria Marx. Giuseppe Cocco, que viveu na pele as perseguições apoiadas pela esquerda no poder na Itália dos anos 1970-80 e, em menor medida, uma campanha de difamação desde 2014 por parte da esquerda petista no Brasil, resgata a crítica antiestalinista que identificava um processo perverso de dissociação: não se pode ser a favor do impeachment ou da Lava Jato no Brasil, porque são parte da orquestração de um golpe, mas Maduro pode promover um autogolpe com respaldo militar e governar em estado de exceção na Venezuela, que está tudo bem, que não há contradição…

IHU On-Line – Por que você diz que Marx ainda continua sendo uma alternativa teórica para a esquerda, especialmente nesse momento de crise?

Bruno Cava – A sensibilidade marxiana ainda é afiada. Ela se baseia em duas percepções conjugadas. Primeiro, a percepção de uma grande transformação, de uma revolução incessante da vida que desmancha velhas formas sociais e instaura novas, formando um imenso e alucinado metabolismo de mediações naturais e sociais que se sobrepõem, quadriculando cada metro quadrado do globo como signo desse artifício. Segundo, a percepção que esse desenvolvimento das forças produtivas não leva à libertação, ao contrário, intensifica a exploração, reelabora o arcaico no moderno, o oligárquico no liberal, as violências e os racismos nas novas liberdades e mercados, em suma, percebe a violência do progresso e o fato que uma classe suporta o peso do mundo capitalista.

Tensionado por essa inquietação, Marx elabora o problema da superação do capitalismo, que envolve acoplar-se a dinâmicas reais de transformação e fazer o novo mundo brotar de dentro das entranhas do mundo atual, sem recorrer a modelos utópicos ou tábuas de valores de salvação. Essa sensibilidade, essa inquietação e esse problema ainda são cortantes para o nosso tempo, de uma perspectiva de transformação, ao mesmo tempo indignada com a realidade e desejante por mudança. Faria muito bem às esquerdas, que incorrem em problemas mal colocados, muitos dos quais bastante semelhantes àqueles que Marx criticou nos interlocutores de seu tempo, sejam os economistas políticos (Smith, Mill, Ricardo, Malthus), os socialistas utópicos (Saint-Simon, Fourier, Proudhon) ou os jovens metafísicos de esquerda (Bauer, Ruge, Feuerbach).

IHU On-Line – O que seria o marxismo à “moda tropicalista” ou um marxismo oxigenado, como você diz? Por que e como você acha que é possível avançar ao criticar o marxismo pelo marxismo?

Bruno Cava – O tropicalismo combinou estratégias políticas com estratégias de mercado, vanguardismo estético com assimilação do kitsch, crítica da esquerda e da direita, em suma, foi um enorme esforço contra a impotência de uma geração que se via esmagada pelas grandes narrativas e a saturação do ambiente político-cultural na segunda metade dos anos 1960. Estava inscrito num momento sessentaoitista que também incluía as lutas operárias, culturais, minoritárias, estudantis e a revolução cultural chinesa (sobretudo, a sua recepção extremamente estilizada no ocidente, como no filme “A Chinesa“, de Godard). Um livro que capta bem essa constelação é o “Anti-Édipo”, de Deleuze e Guattari, cujo quarto capítulo propõe uma clínica das organizações, uma crítica simultaneamente da grande organização esquerdista que emula o Estado, quanto das igrejinhas sectárias e vanguardistas, seus problemas libidinais e organizativos. Deleuze e Guattari chamaram o método proposto no “Anti-Édipo” de esquizoanálise, situado entre a militância e a psicanálise, e direcionado a enfrentar os duplos impasses, por exemplo, entre a apologia do espontaneísmo anarcoide das massas e a codificação burocrático-eleitoral pelos partidos. Eu diria que um retorno criativo à Tropicália e ao “Anti-Édipo”, como gesto de descompressão, é um bom começo para sair da esquerda sem ser pelos meios da direita.

IHU On-Line – Muitos intelectuais de esquerda têm visto com bons olhos as ocupações dos secundaristas, e afirma que esse é um dos principais movimentos de resistência no país. Que leitura você faz desse tipo de manifestação?

Bruno Cava – Não estive acampado nesse ciclo dos estudantes, mas tenho conversado com vários ocupantes de algumas e acompanhado o que se escreve e pesquisa a respeito. Eu diria que o desafio das ocupas é duplo. Por um lado, tem de lidar com a própria sobrevivência, o que envolve a capacidade de manter o ambiente são, seguro, habitável, além de resistir às forças da ordem educacional e policial que a todo momento pretendem despejá-los. Por outro lado, precisam manter a vitalidade em alta, têm que conseguir manter a chama viva de energias e desejos, do contrário perdem a própria razão de ser. Neste último desafio, um dos impasses é como lidar com aparelhamentos vindos de grupos ligados à União Brasileira dos Estudantes Secundaristas – UBES, União Nacional dos Estudantes – UNE, União da Juventude Socialista – UJS, estruturas hierárquicas e engrenadas no sistema político, e cuja chegada pode acabar drenando as energias e interrompendo o processo. O que eu poderia dizer, a partir de minha experiência no ciclo de ocupas de 2011-13 no Rio de Janeiro, é que essas ocupações não deveriam se preocupar tanto em suprir necessidades imediatas para além da sobrevivência, devendo desburocratizar procedimentos e evitar a formação de uma linha clara entre o dentro e o fora.

A cidade no entorno precisa ser vista como uma grande fonte de energia e potência e, em maior prazo, a relação com ela é mais importante do que a relação dos ocupantes consigo mesmos, porque é o que vai preencher a ocupação de atividades e pautas. Isto, por outro lado, traz novos problemas e novos desafios, mas não vejo como escapar do fechamento autocentralizador senão abrindo-se, porque uma ocupação sozinha não tem vida longa, mas um ecossistema de vasos comunicantes já é um grande movimento, um devir revolucionário. Então eu colocaria, assim a meia distância, que não basta apostar no processo em si nem na idade mais fresca dos ocupantes. Otimismo “processista” ou romantismo geracional não contribuem de fato. É preciso problematizar as práticas e realizar as autocríticas necessárias para levar o movimento mais adiante, para conferir-lhe a potência que é a única garantia da sobrevivência e da autonomia.

IHU On-Line – Como você está compreendendo a eleição de Trump nos EUA? Que desafios a eleição dele coloca para a esquerda, considerando uma perspectiva mundial?

Bruno Cava – Gostei bastante da entrevista que Idelber Avelar deu sobre a eleição nos Estados Unidos. Não gostei das reações das esquerdas pelo globo, que novamente parecem se fechar em diagnósticos do fim do mundo, como se o mundo para a maioria já não fizesse nenhum sentido. Há uma efusão de instinto de morte decorrente do giro em falso da crise do capitalismo, que não encontrou saída nem por dentro do ciclo global de lutas de 2011-15, que terminou restaurado violentamente, nem da parte do próprio capital, com o engendramento de uma nova regulação para substituir o fracasso do pós-fordismo.

A morte do mundo

Para alguns analistas, como Maurizio Lazzarato e Éric Alliez (em “Guerres et capital“, ed. Amsterdam, 2016), como o capitalismo é continuação da guerra por outros meios, vamos acabar voltando à sua condição estrutural, ou seja, à guerra generalizada. Outros estão caindo no atalho de postular tsunamis fascistas apenas para clamar por unidade das esquerdas, numa síndrome de Weimar que é outro nome para a impotência. O repúdio das esquerdas ao Zizek que, por piores que sejam alguns de seus textos, é uma voz provocativa e de dissenso relevante, mostra o grau de gregarismo psicanalítico em que se está incorrendo, o que só agrava o isolamento, porque justifica-o, dá a ele uma boa consciência imunizada às críticas. Andrew Culp acabou de lançar um livro bastante instigante, chamado “Dark Deleuze” (Minnesota Un. Press, 2016), em que sugere ativar um Deleuze por assim dizer das trevas, da negatividade, do ódio de classe, contraposto aos deleuzismos que se limitam a festejar as diferenças, os devires, os fluxos. Ele diz que o século 19 foi da morte de Deus (por Nietzsche), o 20, do Homem (por Foucault) e que agora é a vez da morte do Mundo.

Assim como Nietzsche e Foucault, não se trata de decretá-la ou promovê-la, mas de constatar que ela já aconteceu e que o niilismo é exatamente a incapacidade de levar a vida adiante para além do desejo de transcendência. Reconhecer que o mundo acabou, portanto, implica sair de todas as tentativas débeis de convocar a unidade de defesa do mundo diante de seu fim, o microcosmo das esquerdas, o mundo da civilização ocidental iluminista, o mundo dos valores da democracia liberal, evitando assim cair nas utopias negativas, do tipo katechon, que animam as esquerdas residuais no Brasil, nos EUA, na Europa.

O fato é que o capitalismo levou a situação global a um ponto tal de violência disseminada que, para a grande maioria, o mundo é algo que os oprime, algo que lhe parece inaceitável, e que, portanto, contra o mundo dirige um instinto de morte, pois deseja destruí-lo por inteiro. Toda essa negatividade despejada pelo fracasso do projeto capitalista, assim, encontra um ponto de apoio que é a destruição daquilo que nos destrói em primeiro lugar, uma angústia de morte que traz uma ambiguidade. Promessas de meras reformas não terão apelo. Assumir que já se deu a morte do mundo, então, significa passar para o outro lado do niilismo, e ver na potência e na atividade que essa vontade destrutiva trazem uma matéria para o trabalho de transformação, para a organização afetiva, para a esquizoanálise. Como dizia Nietzsche, não há como sair do niilismo de maneira reativa e defensiva, só há saída do outro lado dele, é preciso caminhar. Ainda não pensei o suficiente sobre o livro de Andrew, mas algo nele, à parte dos arroubos líricos, me parece fundamental. O niilismo é um deserto a ser conquistado.

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